Folha de S. Paulo


Livro romanceia o exílio do líder soviético Leon Trótski no México

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo faz parte do livro "Viva!", do francês Patrick Deville, que a editora 34 lança no Brasil na segunda quinzena de janeiro. O volume, que saiu originalmente em 2014, romanceia o exílio do líder soviético Leon Trótski no México, no fim da década de 1930, período em que o país também acolheu o escritor inglês Malcolm Lowry.

Zansky

Ao pé da escada do Ruth, petroleiro norueguês em lastro, devolve-se ao proscrito Trótski a pequena pistola automática confiscada no embarque, três semanas antes. Aquele que comandou um dos exércitos mais poderosos do mundo guarda num dos bolsos todo o poder de fogo que lhe resta. É um homem maduro, 57 anos, cabelos brancos revoltos, a seu lado a mulher de cabelos grisalhos, Natália Ivánovna Sedova. Estão pálidos, ofuscados pelo sol depois da penumbra da cabine. Numa foto, vê-se Trótski de boné de golfe branco, pouco marcial. No cais, são acolhidos por um general de uniforme de gala e alguns soldados, uma jovem de cabelos pretos trançados e presos num coque. Vamos com eles até a estação ferroviária de Tampico.

Agora são quatro no vagão revestido de lambris. Diante deles o general Beltrán, de uniforme escuro e expressão severa, e a jovem de blusa indígena multicolorida na qual predominam os amarelos. Suas sobrancelhas muito escuras se unem na base do nariz como as asas de um melro. O Hidalgo é o trem pessoal do presidente Lázaro Cárdenas. O pintor muralista Diego Rivera convenceu-o a conceder um visto ao proscrito e a salvar sua vida. Estamos em 1937, três anos depois do assassinato de Sandino em Manágua pelos esbirros do general Somoza. A notícia chegara com atraso à França, mais precisamente a Barbizon, onde Trótski estava escondido. A ditadura de Somoza está instalada na Nicarágua, o fascismo, na Itália, o nazismo, na Alemanha, e o stalinismo, na Rússia. A Espanha está em guerra, logo virá a derrota dos republicanos e a vitória do franquismo. Há dez anos, Trótski é um vencido a errar sobre o planeta. A locomotiva solta um jato de vapor. Ei-lo de novo a bordo de um trem. Pela primeira vez a bordo de um trem mexicano.

Conhece as imagens dos homens de Pancho Villa sentados sobre o teto dos vagões, cartucheiras cruzadas sobre o peito e sombreros. Conhece o México rebelde de John Reed, o jovem escritor que depois escrevera "Dez Dias que Abalaram o Mundo" e louvara a Revolução Russa. Revê os trens a bordo dos quais atravessou a Europa a caminho de seus sucessivos exílios. Seu próprio trem blindado com a estrela vermelha correndo pela neve, o trem que mandara construir em seus tempos de Comissário do Povo para a Guerra, quando comandava cinco milhões de homens, antes de tornar-se esse mero proscrito em fuga, sentado numa banqueta diante da jovem de cabelos negros presos por fitas e pentes de madrepérola, o belo pássaro multicor que talvez já o faça lembrar de Larissa Reisner e da tomada de Kazan, a primeira vitória do Exército Vermelho, há quase 20 anos.

Frida Kahlo fita os olhos muito azuis do proscrito atrás dos óculos redondos e sorri para ele. Ainda não completou 30 anos. O marido, Diego Rivera, é famoso no mundo todo, mas aquele que ali está é ainda mais famoso. Dividiu a História em duas. O trem acompanha o rio Pánuco e depois as lagunas na saída da cidade. O avanço é lento. O Hidalgo é menos possante que o trem blindado a bordo do qual ele viveu mais de dois anos, indo dos fronts de Moscou até a Crimeia, rechaçando o Exército Branco de Wrangel. A paisagem desconhecida vai se tornando mais árida à medida que a via férrea se afasta da costa e entra pelos planaltos, afasta-se das ribanceiras tropicais de Tampico, do mar agitado e verde do Caribe, ao acaso das cidades por que passam, das ruas poeirentas, das casas de madeira, dos armazéns, dos bricabraques, um rio, barcos carregados de mercadorias, rebanhos de vacas. É um encerro de algumas horas no trem de lambris envernizados, cada um perdido em seus pensamentos. Trótski e Natália Ivánovna acabam de escapar da morte na Noruega. Recearam ser jogados no mar ou ter a morte transformada em suicídio. Ignoram o que os espera.

Se ainda lhe fosse possível gozar do anonimato, Trótski desembarcaria numa daquelas pequenas estações que Tolstói apreciaria, no meio dos índios e dos peões. Conhece a vida de fazenda, o cheiro do feno, o rangido dos eixos das carroças e o horizonte vermelho sobre a planície. Ler livros, cultivar o próprio jardim. Muitas vezes precisou fazer um esforço para arrancar-se do retiro e dos livros, voltar à cidade e aos furores da História. Depois da Revolução, sim, depois do triunfo mundial da Revolução, desembarcar do trem, ler e escrever, caçar e pescar como fez em todas as vezes que foi derrotado. As caçadas nos pântanos em torno de Alma-Ata durante o exílio no Cazaquistão depois da vitória de Stálin, em seguida as pescarias matinais de barco em volta da ilha turca de Prinkipo, quando Stálin o expulsou para Istambul.

PATRICK DEVILLE, 59, escritor francês, é autor de "Pura Vida" (Escritos).

MARÍLIA SCALZO, 56, é jornalista e tradutora.

ZANSKY, 37, é ilustrador, artista gráfico e serígrafo.


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