Folha de S. Paulo


O feminismo de Nawal El Saadawi, a mulher e as leis do islã

RESUMO Veterana feminista egípcia, Nawal El Saadawi, 85, fala sobre diferenças entre as questões levantadas por feministas ocidentais e aquelas que se apresentam no mundo árabe. A ativista, que morou durante anos nos EUA, discorre sobre a circuncisão feminina, uma prática de que foi vítima e que ainda persiste em seu país.

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A feminista e escritora Nawal El Saadawi
A feminista e escritora Nawal El Saadawi

"Eu não sou enganada pela falsa noção de que as mulheres são livres para escolher cobrir-se ou despir-se. As mulheres são obrigadas pela má educação, desde a infância, a se vestir ou se desvestir de acordo com diferentes slogans", diz a feminista egípcia Nawal El Saadawi em entrevista à Folha.

Aos 85 anos e com o rosto contornado por sua icônica cabeleira branca, Saadawi é uma das principais intelectuais do Egito –por vezes vista como uma espécie de Simone de Beauvoir do mundo árabe. As décadas de ativismo e a popularidade entre jovens militantes a transformaram em figura quase intocável, apesar da crescente repressão do governo de Abdel Fattah al-Sisi. Ela vive no Cairo, onde opositores têm sido detidos e de onde também têm sumido.

Saadawi publicou mais de 50 títulos em árabe, entre ensaios, peças e romances. Diversos deles foram traduzidos. Seu nome consta, ao lado daquele do poeta sírio Adonis, nas eternas listas dos possíveis vencedores árabes do Nobel de Literatura. "Woman at Point Zero" (mulher no marco zero; 1975) e "The Hidden Face of Eve" (1977), dois de seus principais livros, foram recentemente reeditados em inglês. O segundo teve uma versão em português, "A Face Oculta de Eva"(Global).

"Woman at Point Zero" ganhou ainda um empurrão no começo deste ano, quando a cantora americana Ariana Grande lançou o álbum "Dangerous Woman" e creditou a escolha do título a um trecho do livro: "Eles dizem, 'Você é uma mulher selvagem e perigosa'. Estou falando a verdade. E a verdade é selvagem e perigosa", escreveu ela no Twitter, citando a egípcia ao lado de desenhos de coração.

Saadawi encontra, com a passagem do tempo, novas questões sobre as quais falar. A situação que ela combate –a opressão da mulher– persiste, afinal. Nos últimos meses, tem pensado sobre a polêmica do "burquíni", um híbrido de burca e biquíni que cobre todo o corpo, exceto o rosto e as mãos. Algumas cidades tentaram proibir o traje na França no último verão.

Ela critica as mulheres que se cobrem com véu ou "burquíni". Mas também se incomoda que, nas praias, elas precisem se despir. "O corpo da mulher é exagerado, quer seja coberto em nome da religião ou da castidade, quer seja despido em nome da modernidade", diz.

Circulou na França, nos últimos meses, a fotografia de um policial obrigando uma mulher a retirar seu "burquíni" na praia, em um gesto que foi condenado no próprio país. Comentando o ocorrido, Saadawi afirma que a solução para a crise não é a força. A saída, diz, é a educação na infância e a reeducação na idade adulta. "Elas sofreram lavagem cerebral por sistemas educacionais falsos. Precisamos ensiná-las a respeitar seus direitos."

FALSAS BATALHAS

Saadawi tampouco está contente com as mulheres não muçulmanas que vestiram o "burquíni" para protestar contra as proibições na França. "Elas foram enganadas pela mídia patriarcal capitalista. Gastam sua energia em falsas batalhas e se punem pelos defeitos dos outros", afirma. "O véu é um símbolo político do poder sexual, econômico, militar e policial masculino."

Saadawi nasceu em 1931 em Kafr Tahla, um vilarejo ao norte do Cairo, a segunda entre nove crianças. Incentivada ao estudo pelos pais, após escapar de um casamento aos dez anos de idade, ela graduou-se em medicina, com especialização em psiquiatria. A publicação de títulos polêmicos nos anos 1970 levou-a a ser perseguida pelo governo de Anwar al-Sadat (1970-81) e detida por meses, em 1981. Anos mais tarde, ameaçada por movimentos radicais religiosos, Saadawi decidiu exilar-se nos Estados Unidos, de onde retornou em 1996.

Em uma trajetória pouco comum no Egito, uma sociedade conservadora, Saadawi divorciou-se três vezes. Foi casada com o terceiro marido, Sherif Hatata, por 43 anos, e chegou a dizer que se tratava do único homem feminista no mundo. Mas se separou dele após descobrir uma traição.

Quando se debruçam sobre o mapa do Oriente Médio, feministas europeias e americanas costumam se concentrar na questão do véu. Mas uma das principais causas de Saadawi, em sua própria militância, é outra: o combate à circuncisão feminina, que recebe bastante menos atenção nos discursos políticos ou na cobertura da imprensa.

Essa prática afeta 97% das mulheres egípcias casadas, segundo um estudo realizado em 2000. Saadawi teve o clítoris cortado aos seis anos de idade, uma experiência narrada em "A Face Oculta de Eva" –no chão do banheiro, enquanto sua mãe sorria.

O descompasso entre a preocupação de observadores externos e as lutas das mulheres egípcias é um tema recorrente na obra de Saadawi. O feminismo tem que se adaptar às circunstâncias. Não pode ser apenas uma causa branca, de classe média e ocidental, diz.

"Nós não podemos ter apenas um tipo de movimento de liberação da mulher. Existem muitos conceitos e métodos, tanto em diferentes países quanto em diferentes classes sociais em um mesmo país. Divergências sociais, econômicas e culturais moldam as lutas."

De formação marxista, Saadawi repete durante toda a entrevista a sua convicção de que o feminismo não pode se desvincular da luta de classes nem do combate ao patriarcado. A opressão da mulher, para ela, precisa ser tratada de maneira simultânea à opressão de outras minorias. A divisão vem, diz, do que ela chama de "feminismo ocidental". "A maior parte das feministas americanas e europeias separou a opressão de classe da opressão da mulher. Em geral, porque elas eram mulheres de classe média sem consciência da opressão econômica", afirma. "Mas as mulheres revolucionárias na África, incluindo o Egito, conectaram classe, raça e patriarcado."

"Nós nos chamávamos, na Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes, de 'feministas socialistas históricas'", diz, referindo-se a uma entidade banida pelo governo em 1991. "Queríamos mostrar que a ideia de feminismo não é uma invenção ocidental, mas tem raízes na nossa história."

O feminismo não pode, assim, "apagar a diversidade das mulheres e de suas lutas". "Vivemos em um mundo dominado por um sistema religioso, patriarcal e racista. Mas o nível de opressão varia de acordo com o tempo e de um lugar ao outro, segundo o grau de consciência da maioria e os poderes políticos das mulheres e homens lutando por liberdade, justiça e dignidade."

Saadawi levou sua luta às ruas em 2011, quando egípcios derrubaram o regime de Hosni Mubarak. Em suas primeiras eleições democráticas, o país elegeu o islamita Mohammed Mursi, que foi deposto em 2013 pelo Exército. Abdel Fattah al-Sisi, o braço por trás do golpe, venceu o pleito seguinte.

Em uma entrevista recente, Saadawi supreendeu ao elogiar Sisi por ter retirado Mursi do poder –aparentemente ignorando o autoritarismo e a repressão que têm marcado esse governo.

PERSONAGENS

Saadawi tem um peculiar estilo de escrita. Parte de seu trabalho como feminista foi publicada em ficção. Por exemplo, a peça "God Resigns in the Summit Meeting" (deus renuncia no encontro da cúpula) é uma longa discussão entre figuras históricas e religiosas como a deusa egípcia Ísis, Jesus Cristo, Eva, os profetas e Satanás. Os diálogos reforçam a recorrente tese de que o patriarcado (seu arqui-inimigo) escanteou as mulheres.

À Folha ela cita a história de Khadija, primeira mulher do profeta Maomé. "Ela era a líder de sua família e se casou por vontade própria", diz. Khadija já era viúva quando se uniu a Maomé. Ela era mais velha e controlava sua própria caravana –um exemplo que não costuma constar das visões estereotipadas da mulher muçulmana, assim como é esquecida a história de outra das mulheres do profeta, Aisha, que liderou um Exército montada em um camelo. "Antes do islã", diz Saadawi, "havia tribos matriarcais em que as mulheres transmitiam seus nomes a seus filhos".

Uma visão talvez romantizada do passado na península Arábica. Apesar das críticas, o islã é creditado por alguns avanços na situação da mulher no século 7 –por exemplo, na regulamentação das heranças e no combate ao infanticídio. Mas a avaliação de Saadawi coincide com uma carreira desconfiada de todas as religiões.

Não deixa de ser uma consequência de sua infância, quando foi preterida pelo irmão mais velho. "Acho que a maior parte das meninas sente cedo em suas vidas que Deus não é justo, porque ele discrimina entre garotos e garotas. Crianças de famílias pobres e classe trabalhadora sentem que Deus discrimina entre ricos e pobres", afirma.

É como diz o personagem do profeta Maomé na peça "God Resigns", dirigindo-se a Deus: "[As pessoas] oprimem as mulheres em seu nome e no meu. Elas oprimem as mulheres e os pobres, acumulam ouro e prata e o dinheiro que vem do petróleo".

DIOGO BERCITO, 28, é correspondente da Folha em Madri e assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site do jornal.


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