Folha de S. Paulo


A noite da ocupação por sem-teto de um prédio abandonado em São Paulo

RESUMO O relato pincela impressões sobre os últimos preparativos da Frente de Luta por Moradia antes da entrada, semanas atrás, em edifício desocupado havia 20 anos. O autor também registra cenas dos primeiros momentos pós-ação que ilustram a organização interna dos ativistas e colhe fragmentos biográficos esparsos.

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Cada ruína é o testamento da nossa irracionalidade. Nos restos das velhas edificações, na linguagem muito expressiva dos escombros, parece se escrever nossa inconstância, a impermanência de todo avanço possível, a desrazão com que nos conduzimos pelos anos.

Caminhar entre ruínas pode ser um exercício tão impressionante quanto melancólico: entre resquícios ínfimos e grandiosos, na exuberante sintaxe dos destroços, lê-se com facilidade o histórico de erros que levaram ao declínio, testemunha-se a magnitude do nosso fracasso civilizatório.

Eu poderia estar falando sobre pirâmides egípcias, sobre a ágora grega, sobre o Império Romano, sobre cidadelas incas, mas não preciso ir tão longe. Enquanto escrevo, penso numa caminhada atenta pelas ruas do centro de São Paulo, penso em edifícios mortos cravados na cidade viva. Entre belos exemplares modernistas ainda conservados e feias torres envidraçadas, há uma infinidade de prédios abandonados, há um vasto cemitério de carcaças.

Enquanto caminho, enquanto escrevo, não posso senão me indagar: quantos dos corpos que vejo estirados nas calçadas, quantos dos cidadãos escorados nessas mesmas fachadas, não poderiam encontrar ali um abrigo melhor, não poderiam fazer das prévias ruínas as suas casas?

Sobre nada disso se falava na concentração convocada pela Frente de Luta por Moradia no dia 30 de outubro, horas antes de que se consumasse o Outubro Vermelho: uma ação conjunta de ocupação de diversos prédios vazios gastos pelo tempo. Ali, essas noções que eu apenas começava a intuir não precisavam ser expressas, não passavam de obviedades. Ali, a vivência do desamparo e da irracionalidade era algo corriqueiro para tantos dos presentes, era o passado cicatrizado em suas peles. A dor das noites nas ruas ninguém mencionava, a história traumática de despejos forçados, a itinerância infinita entre moradas precárias.

Em seus rostos, para a minha surpresa, nenhum desalento reinava. Animação era o que eles mostravam com seus sorrisos francos, com suas piadas constantes, com seus brados comunitários: quem não luta está morto!

Naquele espaço amplo que os corpos preenchiam por completo, naquele que já fora o saguão do luxuoso Hotel Cambridge, instituição fenecida já há algumas décadas, nada do que surgia daquela gente tão vivaz parecia fadado a fenecer. Visível em seus olhos, nenhum luto, nenhum vestígio das lágrimas do passado, apenas a ansiedade pelo início da "festa".

A FESTA

Trezentas pessoas participariam daquilo que tantas bocas chamavam festa, mas o convite era irrestrito: o movimento é inclusivo, repetia Carmen Silva, o movimento não tem gueto. Sob o incentivo incansável da líder, 300 pessoas subiam com pés céleres a rua Álvaro de Carvalho, na madrugada silenciosa de domingo, sem conhecerem ao certo o destino de seus passos.

Pouco havíamos nos afastado do Cambridge, não mais que três quadras, quando uma porta se franqueou num muro alto, convidando à contemplação da fachada mais sombria que já existiu nesta cidade. Rápido, rápido, sem tempo para observar aquele esqueleto enorme e ominoso, rápido, sem tempo de ter certeza se a pressa era necessária ou dramática, atravessamos enfim aquela porta.

Inaugurava-se naquele instante a mais nova ocupação da FLM, abriam-se os muitos planos de ação para aquela noite, iniciava-se uma batalha a mais daquela que a urbanista Raquel Rolnik chama de "guerra de lugares". A primeira medida para prevenir uma derrota era estabelecer uma barricada, contra o inimigo direto do momento, a polícia que poderia querer forçar uma saída imediata.

Por mais de uma hora, aquela porta era o centro das preocupações, vigiada por tantos olhares militantes, de dentro e de fora, cobiçada por policiais impacientes, descontentes com a missão que algum superior determinara. De nada valia a metáfora naquela hora, de nada o jargão político, mas aquela porta talvez materializasse, por um átimo, todo um universo de tensões sociais e disputas de classe.

Assegurada a entrada, era tempo de compreender onde estávamos. A jovem Preta Ferreira foi quem se incumbiu das explicações, num relato que conciliava o objetivo e o subjetivo, o íntimo e o histórico. Aquele não era somente um edifício que pertencera ao INSS, um amplo conjunto de escritórios do instituto encimado por garçonnières de seus dirigentes maiores, aquele não era um prédio qualquer, portentoso em seus 15 andares, abandonado havia mais de 20 anos.

Bruno Santos/Folhapress
Ocupação da Frente de Luta por Moradia (FLM) em antigo prédio do INSS, no centro de São Paulo

Aquele era, isso sim, o lugar cativo de sua infância, o chão de seus passos iniciais, o cenário de seus primeiros sonhos, ainda recorrentes em noites de inquietude. Preta viveu ali por seis anos, na primeira vez em que o prédio esteve ocupado. Preta foi expulsa em 2003, com a promessa nunca cumprida de que aquela sua casa seria reformada e logo restituída como moradia popular.

Àqueles que não cabia nem a função de defender o território, nem a missão de povoá-lo com rumores do passado, restava a tarefa efetiva de se estabelecer em seu presente, de tratar de convertê-lo em lar. Poucos minutos haviam sido precisos, pude constatar, para que os dois salões principais estivessem tomados de colchões novos, para que toda aquela gente de pés doídos pudesse descansar –para que as crianças começassem a cultivar os sonhos que relatarão alguma vez.

Ali, aos sussurros para não as incomodar, pude conhecer a triste história de Eliana e seus quatro filhos, um longo périplo de humilhações sucessivas em abrigos municipais. Ali, no breu que preservava o sono dos outros, ouvi muito desperto mais um episódio de abuso institucional: o sofrimento do peruano Demetrio Paiva em sua entrada no Brasil, forçado a tomar purgantes para provar que não traficava drogas. Não fosse a vergonha do insucesso, Demetrio voltaria ao Peru. Não fosse a acolhida do movimento, talvez estivesse nas ruas.

PARECE RUÍNA

Quando todos ou quase todos já dormiam foi que me pus a passear por aquele território em ruínas, a vasculhar os escombros em busca de algo incerto, a refletir sobre a desrazão de tantos destinos. Alguma coisa está fora da ordem, Caetano cochichava em meus ouvidos, agravando as imagens absurdas que eu descobria, os muitos colchões carcomidos, os sapatos avulsos atirados pelos cantos, pilhas de roupas puídas, utensílios e velhos objetos esquecidos, restos indigentes do mundo.

Parece paz, parece paz, entoava Caetano, referindo-se talvez ao silêncio, mas aquilo não podia ser mais do que os despojos de outra batalha perdida há muito tempo. Demorei quase uma hora para começar a reparar nas inscrições pelas paredes, vestígios ainda mais certeiros da vida que não cessara no prédio decadente. Agora me via a ler as listas de nomes nas laterais das portas, sem procurar o nome de alguém específico, apenas a lamentar aquele longo inventário de pessoas destituídas pelo despautério. Somos todos refugiados, lembrei que Carmen dissera, peruanos, haitianos, congoleses ou brasileiros, somos refugiados em nossa própria terra.

Quando já estava por partir, o círculo fraquejante da minha lanterna desvendou algo de inesperado, os traços de um desenho infantil sobre a parede cravejada pelos golpes de tantos anos perdidos. Era uma casa desenhada pelas mãos mínimas de uma criança desconhecida, uma casa onírica como todas as casas infantis, os contornos simples de uma convenção tomada de empréstimo, meros retângulos e triângulos e outros polígonos, e uma chaminé comprida a dissipar a fumaça daquele sonho impossível.

MAS É CONSTRUÇÃO

Na noite do dia 30 de outubro se deu a apuração do segundo turno das eleições municipais, a confirmação de uma derrota massiva da esquerda, a ascensão de uma direita cuja potência destrutiva se desconhece. Estivesse em casa, acordaria deprimido, mas naquela noite do dia 30 de outubro não dormi, e vi o dia amanhecer com uma profusão de braços e pernas a trabalhar incessantemente, famílias inteiras a limpar aquele espaço ruinoso e já a construir, como fariam nas semanas seguintes, o que um dia há de ser uma casa possível.

Desde então, frequento a ocupação do antigo INSS, tendo este texto como o pretexto que me resta, mas na prática me refugiando ali quando quero sentir algum alento político, uma esperança qualquer. Sou, como muitos, um refugiado em meu próprio país. Não me representam os homens que me governam, não me contemplam suas medidas retrógradas de suspensão de direitos, seu descaso com edifícios humanos, sua atenção exclusiva às torres envidraçadas do capital financeiro.

Ocupar, nesse contexto de abusos institucionais tão frequentes, parece ter se tornado um imperativo. Ocupar espaços materiais para tratar de reconstituir, insuficientemente, tudo de imaterial que nos tem sido destituído. Ocupar espaços diversos, escolas, institutos, prédios vazios, ocupar para povoá-los de vida e pensamento. Ocupar, talvez, apenas para estar ali, entre muitos, para recobrar alguma união em momento tão difícil.

Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem, Caetano sussurra pela última vez, apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis.

JULIÁN FUKS, 35, é escritor. Venceu o Prêmio Jabuti de romance e de livro do ano (ficção) por "A Resistência" (Companhia das Letras).


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