Folha de S. Paulo


A vida com a vovó Tatiana Belinky

Minha trajetória foi marcada pela música do mundo por mais de duas décadas. Com a chegada da maternidade, nasceu o impulso de iniciar um caminho no universo infantil, mais lúdico, pop, teatral.

Estava fascinada pela poesia de Ruth Rocha, seus escritos eram musicais. Entrei em contato com ela, que me mandou uma caixa de livros. Em 2008 nasceu "Na Casa da Ruth", meu primeiro espetáculo voltado para as crianças, dirigido por Naum Alves de Sousa, com músicas de Hélio Ziskind.

A sabedoria do Hélio, que me ensinou elementos preciosos para meu canto, foi marcante. Ganhei liberdade de palco e fiquei viciada no burburinho das crianças antes de abrir a cortina.

Dois anos se passaram, e sentia que deveria seguir adiante no universo da criança. Após algumas tentativas frustradas, eis que minha filha me traz da escola o livro "O Caso do Bolinho", de Tatiana Belinky. A estrada seguiria com a escritora.

Quando lhe telefonei, ouvi, surpresa: "Finalmente você chegou! Amo tua voz, estava te esperando fazia tanto tempo!".

Quando contei para ela sobre a minha ideia com Hélio Ziskind, disse-me que não via a hora de ouvir os seus poemas cantados. A partir de então, começou a gestação. Um tempo distinto se iniciou em mim.

Um tempo de contato verdadeiro com minha afetividade, com a possibilidade de seguir cantando músicas de conteúdo para crianças, tecendo uma verdadeira amizade com a vovó Tatiana, cheia de histórias malucas, começando pela sua. Recomendo a leitura de "Transplante de Menina", que descreve bem a vida da Belinky. Uma aventura e tanto!

Nilton Silva
A escritora Tatiana Belinky e a cantora Fortuna, na casa da primeira, em São Paulo, em 2010

Eu ia ao menos duas vezes por semana na casa da Tatiana no Pacaembu, e não sentíamos o tempo passar. Quem gosta de histórias não sente o tempo passar. Tatiana adorava contar histórias. Contou a sua, desde a Rússia até o Brasil.

Nesse convívio com Tatiana, saí do piloto automático. As conversas se estendiam por horas a fio, no silêncio de sua casa, só interrompido pelos telefonemas de seus amigos, além da presença de seus inseparáveis gatos. Entramos num outro tempo, regado pela afetividade, pela proximidade e pela possibilidade de rimar da forma como quiséssemos.

Hélio Ziskind, a quem ela chamava de doce criança solar, teve liberdade total para adaptar as letras e demorou um bocado de tempo até entregar as músicas do espetáculo "Tic Tic Tati", que estreou em 2012, dirigido pelo amigo querido Roberto Lage.

Tatiana nos recebia com café delicioso e vinho do Porto. Às vezes, almoçávamos juntas, mesclando um cardápio de comidas europeias e árabes: sopa de beterraba (borsht), truta defumada e homus, hareng, tabule de quinoa. Descobri que ela amava chupar limão! Ah, ela amava também os meus folheados de batata, os varenikes e o pão trançado tradicional do shabat. Era muito fiel a suas raízes.

Lembro que em 2011, na véspera do Yom Kippur, o dia do perdão da tradição judaica, fiz uma surpresa para Tatiana. Levei meu amigo Ventura para tocar shofar para ela. Foi marcante! Como ela já não saía de casa, emocionou-se muito, judia que era, com o toque profundo do instrumento de sopro.

Tatiana tinha uma forma irreverente de encarar a vida, totalmente despojada de artifícios. Seu respeito e dedicação ao ofício de lidar com Sua Majestade, a palavra, alimentavam sua rotina.

E assim compartilhamos nossa história, nossa afetividade, e concretizamos o projeto, realizado pelo Selo Sesc, "Tic Tic Tati", que virou CD, DVD e clipes animados, tendo ganhado vários prêmios.

Nesse trabalho, Hélio compôs "Tic Tati", que a descreve melhor do que uma fotografia:

"Vovó Tatiana senta, na sua poltrona/ Tem ao seu redor tudo que precisa/ Lápis papel óculos e lupa/ Telefone e luz de ler/ Parece um comandante de avião/ Sentado na cabine/ Tudo pertinho da mão/ Esperando um sinal/ Pra sair do chão.../ Lá vai a vó a voar....".

Nota: O espetáculo "Tic Tac Tati" volta em cartaz dia 5/2, no Teatro Vivo, em São Paulo.

FORTUNA, 59, é cantora e compositora.


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