Folha de S. Paulo


A virada na crítica do último Paulo Emílio Sales Gomes

RESUMO Acusado por Glauber Rocha e outros de não participar da fortuna crítica do cinema novo, Paulo Emílio Sales Gomes, cujo centenário celebramos no próximo dia 17, dedicou, sim, escritos ao movimento. Porém, com a irrupção do cinema marginal, o crítico vislumbra uma outra possibilidade para a produção nacional.

Acervo da Cinemateca Brasileira
Paulo Emílio Sales Gomes recebe homenagem no clube dos artistas, em São Paulo, na década de 1970
Paulo Emílio Sales Gomes recebe homenagem no clube dos artistas, em São Paulo, na década de 1970

Paulo Emílio é, às vezes, criticado por não haver pagado seu tributo ao jovem cinema novo dos anos 1960. Ele não teria assumido a parcela da liderança devida, ou se debruçado sobre filmes chaves do movimento.

Colocado em perspectiva, no entanto, salta aos olhos sua precoce adesão ao jovem cinema, principalmente se o compararmos com outros de sua geração, como Alex Viany (1918-92), mais tardio em aderir de corpo e alma. Ou mesmo a crítica mineira da "Revista de Cinema" que, para o espanto do jovem Glauber Rocha, ainda discutia roteiro e o "específico fílmico" no final dos anos 1950.

Quando estoura a nova geração cinemanovista, Paulo Emílio estará logo em seu front, já como crítico maduro, com coluna semanal e espaço de reflexão único (pela extensão e repercussão) no "Suplemento Literário" do jornal "O Estado de S. Paulo".

Flexionando a crítica nessa direção, recebe rapidamente o reconhecimento dos jovens, inclusive Glauber Rocha. Também foi ele que, ainda influenciado pela cinefilia francesa e pelo realismo pós-guerra baziniano, sustentou a redescoberta de Humberto Mauro e sua colocação no primeiro lugar do novo panteão do cinema brasileiro.

A sensibilidade de Paulo Emílio com seu tempo, no entanto, irá além. É significativo acompanhar o deslocamento de seus escritos, partindo do universo mais clássico do mudo e dos grandes autores das primeiras décadas do século 20 até seu último fôlego crítico em "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" (1973). Avançando pelo pós-1968, encontra ferramentas para abordar vereda que o levará até próximo do tropicalismo, convivendo à vontade com o veio mais forte que deriva do cinema novo e adentra o cinema marginal.

GUINADA

Mas, para fazer o percurso até o final, devemos realçar a primeira guinada na crítica de Paulo Emílio, ainda em novembro de 1960, quando deixa para trás definitivamente a sensibilidade estética da primeira metade do século 20 com a publicação do ensaio "Uma Situação Colonial?". Este é o texto no qual cai definitivamente a ficha do cinema brasileiro.

Tal encontro tem a forma das paixões da maturidade. A partir da descoberta, abandonará todas as outras amantes e só terá olhos para a jovem escolhida. A correspondência é mútua e se retroalimenta.

O cinema brasileiro desponta com novo brilho a partir de 1961 e encontra em Paulo Emílio um quarentão avançado em meados século 20 de braços abertos para recebê-lo. A nova paixão pede exclusividade e ele não hesitará em concedê-la, inclusive porque a beleza juvenil que desponta chama a atenção de todos.

Acervo Cinemateca Brasileira
Paulo Emilio Sales Gomes
Paulo Emilio Sales Gomes

O mais interessante, e que justifica as posteriores reclamações da nova amante, é que Paulo Emílio findará por abandoná-la, meio ao pé do altar, no auge de seu esplendor. Escolhe para nova diva sua prima mais pobre, a rejeitada pornochanchada (ou mais especificamente o "filme ruim" nacional).

Mas, em "Uma Situação Colonial?", a bela cinema novo estava apenas começando a despontar fulgurante. O ensaio se caracteriza por descrever o clima depressivo no cinema nacional da época, dragão da maldade nutrido pela "amargura envenenada", pela "alienação", pela "secura" e pela "humilhação" (todos termos do artigo), fazendo valer o domínio da "mediocridade".

Ainda não se definiu no horizonte a irrupção da primeira produção cinemanovista de 1961/1962, com "Barravento" e "Porto das Caixas" (longas iniciais da nova geração, mais "Os Cafajestes") nem a afirmação do movimento com a eclosão de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1964, filme que, juntamente com "Vida Secas" e "Os Fuzis", faz estourar na praia a onda que Paulo Emílio ajudou gestar.

Quando o cinema novo e os jovens, que tanto havia estimulado em 1960/1961, se afirmam, em torno de 1964, Paulo Emílio estará às voltas com outros problemas pessoais. Entre Brasília e São Paulo, dá a impressão de não estar tão concentrado na crítica, ou aberto para se entusiasmar com o reconhecimento estrondoso do cinema que havia pressentido e no qual havia apostado. Quando retorna e se debruça sobre o assunto, após a tese acadêmica sobre Humberto Mauro, já se está mais próximo dos anos 1970 e o contexto é outro.

ABANDONO

Ao abandonar a noiva consagrada no altar, Paulo Emílio busca novo fôlego na vida e na crítica. Aceita na maturidade, num modo recomposto, a influência da sensibilidade estética de seu primeiro mestre de juventude, Oswald de Andrade. Não mais como "piolho da revolução", termo que Oswald criou para responder a uma resenha crítica que escrevera. Também não era o "potro" que dava coices sem ainda ser cavalo para machucar, como ele mesmo descreve em passagem debochada de "Um Discípulo de Oswald em 1935": "Oswald, feliz, explicava para seus amigos que minha forma vital de expressão era o coice, mas que não houvesse engano, não se tratava de um cavalo, mas sim de um potro".

Agora, já crescido, mas com o ímpeto juvenil que marcou sua personalidade pela vida afora, Paulo Emílio parece ter redescoberto o prazer do coice, nutrindo proximidade renovada por quem conheceu na década de 1930 e chamou de seu primeiro mestre. Proximidade que é contemporânea à reavaliação da obra oswaldiana, proporcionada pelo ambiente ideológico do final dos anos 1960.

A rarefeita dialética do "não ser" e do "ser outro" pauloemiliana surge como ideia chave no texto de maturidade "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento", estabelecida como método para deixar para trás as dicotomias sobre nacionalidade que ainda respiram estanques em "Uma Situação Colonial?".

O filme brasileiro agora pode girar o motor da dialética entre "não ser" e "ser outro", ativando uma "incompetência criativa em copiar", nutrida por abertura que é singular ao Brasil, na qual "nada nos é estrangeiro, pois tudo o é". Singularidade também explorada como única pelo Mário de Andrade de 1926, em termos bastante similares, no primeiro prefácio, não publicado, de "Macunaíma". Esta é a trilha que o último Paulo Emílio descobre e reafirma em 1973.

É ela que lhe permite olhar para trás e ver trajetória no que quer descortinar. É fácil notar a absorção particular do discípulo das lições antropofágicas dos manifestos da década de 1920 do mestre Oswald. Paulo Emílio abandona, portanto, definitivamente, o realismo do pós-guerra e as ilusões desenvolvimentistas marcadas pela órbita do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) –inauguradas com "Uma Situação Colonial?", ainda presentes em "Trajetória"–, para caminhar progressivamente em direção à descoberta de que é possível afirmar a nacionalidade no avesso do filme ruim desde que deglutido em apetite antropofágico.

No final dos anos 1960 e início dos 1970, quando a sensibilidade de 1922 retorna à cultura brasileira mastigada pelo veio tropicalista e pela contracultura, Paulo Emílio não parece ter muitas dificuldades em se situar nos novos tempos.

Sua caixa de ferramentas, inclusive, tem instrumentos que servem agora com mais facilidade do que quando tentou encarar o cinema novo maduro, de tonalidades brechtianas, configurado a partir de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Isso talvez explique a sensação de distanciamento da geração cinemanovista para consigo depois de determinada altura (Saraceni é exceção) e as amargas palavras deixadas por Glauber no final da vida (em "Revolução do Cinema Novo"): "Paulo Emílio não consegue, como John Reed, criticar o fenômeno com quem convive e o chama para liderar. Recusa a coroa várias vezes, deixa o grupo sem o Comando Imperial (...) e quando da intentona udigrudista [como Glauber se refere à vertente marginal] de 1968, apoia os insurrectos como se o cinema novo fosse o Politburo".

A virada na crítica do último Paulo Emílio pode ser sintetizada pela abertura para o filme ruim e o produto da cultura de massa nacional (não chega ao internacional, como a geração mais jovem).

Ele agora é elemento chave para detonar a tensão da dialética entre "não ser" e "ser outro" que define nossa identidade de "ocupado". O crítico caminha de mãos dadas com a sensibilidade da novíssima geração e a radicalização da experiência tropicalista nas experiências extremas da curtição e da abjeção, da exasperação e do dilaceramento corporal.

A exaltação do "filme ruim", do "filme boçal", encaixa bem na estética intertextual deglutidora do cinema marginal. O crítico encara e vê bem o gosto pela representação do baixo no elogio do lixo, os "cortejos grotescos", o sarcasmo, o aviltamento, a "crueldade que se torna insuportável", a "inarticulada cólera", a "plebe que vira ralé", a "vocação suicida", todas qualificações de sua pena em "Trajetória", para definir com ânimo o "novíssimo" cinema do início dos anos 1970.

MANEIRISTA

A proximidade com o universo do cinema marginal reflete a postura maneirista de Paulo Emílio no final da vida, mantendo-se agudo e pulando de galho conforme a folhagem da paisagem se acomoda. Ao se sintonizar com o veio intertextual inerente ao elogio do "filme ruim", atrai a admiração da nova geração da Boca que estava fazendo o cinema do lixo.

Sua defesa do filme ruim como "boçalidade inseparável de nossa humanidade" caminha próxima ao cinema boçal do "Manifesto do Cinema Cafajeste", lançado durante a estreia de "As Libertinas" (1968), de Carlos Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro. Nesta órbita circulam também Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira e, um pouco mais distante, Andrea Tonacci, além de outros marginais como João Silvério Trevisan, Carlos Alberto Ebert e Júlio Calasso.

Não é à toa, portanto, o tom mais forte de defesa do cinema brasileiro cafajeste e boçal que Paulo Emílio toma na polêmica entrevista que deu a membros dessa geração (Reichenbach, Eder Mazzini e Inácio Araujo), publicado no número solitário da revista "Cinegrafia", em 1974. A sintonia com a sensibilidade do cinema marginal da Boca fica mais clara com a presença da trinca entrevistadora.

São deixados explícitos argumentos sobre a exaustão do cinema novo e "o interesse do filme medíocre, mas brasileiro" que encontramos nuançados em "Trajetória" e em críticas de jornal entre 1973 e 1974. Argumentos que incidem sobre a distância do primeiro cinema novo, apesar de sua meia-volta posterior, com relação ao universo da intertextualidade proporcionada pela ironia, o deboche e a precariedade estilística, na qual a chanchada excele: "Esta tem sido uma posição tradicional do cinema brasileiro, inclusive do cinema novo, o fato de querer ser uma coisa inteiramente diferente da chanchada, dando costas a esta (...) se distanciar da chanchada foi algo que eu penso não ter feito bem ao cinema novo".

O resultado final da entrevista talvez tenha assustado Paulo Emílio, a ponto de classificar o conjunto, em nota enviada posteriormente aos editores, como "um aglomerado caótico de palavras e frases", "caos" do qual acabam "emergindo ideias que reconheço, me são caras e talvez sejam minhas".

Ao dar o passo mais forte em defesa do filme ruim boçal, em defesa da liturgia do avesso e do gosto pelo lixo da indústria cultural brasileira, Paulo Emílio se aproxima da sensibilidade dos cineastas marginais que circularam pela Boca na virada da década de 1960 e que souberam levar, até o final da linha, a fresta pop/tropicalista que assolou nesses anos a parcela mais criativa da cultura brasileira.

A defesa do cinema nacional por Paulo Emílio não caminha na direção de um purismo nacionalista reciclado, o que certamente teria facilitado a recepção de sua última crítica. Ao contrário, dá a volta por fora, chegando lá pelo viés ruim/boçal. Abre a guarda para deglutição ativa do discurso do outro "ocupante", sem valoração ideológica imediata. Seu posicionamento deixa espaço para a incorporação intertextual que está na base da sensibilidade cinematográfica que abrigou, em seu pioneirismo, obras como "O Bandido da Luz Vermelha" e, principalmente, "A Mulher de Todos".

É nesse sentido que o crítico afirma, para os jovens da Boca que o entrevistam, que o filme ruim nacional deve ser nutrido como "sintoma" de texto que revela: "um mau filme pode ser revelador em tanta coisa da nossa problemática, da nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da boçalidade inseparável da nossa humanidade; em última análise, é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros".

Na época, a defesa do nacional pelo viés do filme ruim e do lixo produto da indústria cultural produz a reação de intelectuais com visão mais tradicional. Em longa carta datada de 3 de outubro de 1974, dirigida ao próprio Paulo Emílio e depois publicada, com autorização, em 1978 pela revista "Ensaios de Opinião", Maurício Segall manifesta sérias reservas sobre a nova visão que Paulo Emílio amadurecia do cinema brasileiro, realçada na entrevista mencionada.

O tom da missiva beira a indignação e mostra a reação, comum no campo ideológico da esquerda mais tradicional, às estrepolias do cinema marginal e da sensibilidade tropicalista, próximas a um tipo de atitude que, na época, se convencionou chamar de desbunde. Haveria Paulo Emílio "desbundado"? –parece perguntar o missivista. É a cobrança que podemos sentir por trás da carta de Segall.

Em sua biografia de Paulo Emílio, José Inácio de Melo Souza tem razão em dizer que "Maurício Segall alinha-se entre os adeptos do nacional-popular na cultura", embora efetivamente não seja justo colocá-lo como membro de carteirinha no clube. O fato é que o tom da carta do amigo (assim assina) é forte, chegando a acusar Paulo Emílio de tendências fascistas. Sente-se que a abertura do crítico paulista para a deglutição antropofágica da indústria cultural, afirmando o filme ruim e a produção de massa, toca uma corda íntima do missivista, provocando uma reação acima do tom esperado.

Na posição exposta, Segall quer resgatar o nacional a partir de um eixo que corretamente pode ser remetido à sensibilidade cepecista (referente aos CPCs –Centro Popular de Cultura– da UNE) do início da década, por inteiro desligada (ou em franca oposição) das nuances do universo cultural pop de incorporação intertextual múltipla, direção na qual Paulo Emílio pisca os olhos sem vergonha.

Embora não plenamente sintonizado, por ser de outra geração, é esse horizonte que emerge através de um elogio que incorpora a boçalidade, a breguice e a ruindade da última produção nacional que lhe foi contemporânea. Elogio que, para Segall, não passa de "nacionalismo pessimista e desesperado".

Pessimista, pois valoriza o que não é bom (o filme ruim), num momento político delicado. Desesperado, pois, indo ao encontro da exasperação e do deboche, nega a demanda do engajamento pela práxis responsável racional. Outro adjetivo usado para designar o contexto é de "irracionalidade", forma acusativa muito comum no discurso crítico do período.

O tom de reclame da carta quer exercer uma espécie de má consciência difusa sobre o desvio do colega. Aponta em direção às águas turvas da irracionalidade, desbunde propriamente, como figura dos extremos indizíveis do horror e da curtição, conforme respiramos nas obras mais agudas do cinema marginal.

Em seus últimos anos, portanto, Paulo Emílio parece ter acordado em si o espírito anárquico que nutriu na juventude. Sustenta, com alguma verve, o sopro antropofágico demolidor daquele que foi seu primeiro mestre. No lado ensaístico, reencontra-se naquilo que a redescoberta da voragem modernista significou para os novíssimos cineastas do início dos anos 1970.

Mas há outro lado da moeda, no mesmo período. A paciente e passadista reconstrução do universo maureano em "Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte" (1974) mostra que Paulo Emílio continua a ser tentado pelo que sempre soube fazer de melhor: criar personagens, espraiar personalidades, tecer circunstâncias. Mauro, Vigo, Michel Almereyda (o pai anarquista de Vigo), Oswald, Adhemar Gonzaga, Pedro Lima (editores da "Cinearte"), Pedro Comello (fotógrafo e coprodutor dos primeiros filmes de Humberto Mauro) e tantos outros adquiriram vida e cores vibrantes sob sua pena.

No final, liberto da canga do mundo, mergulha para exercer livremente esse talento na ficção: época de Helena, Ela, Hermengarda, personagens de "Três Mulheres de Três PPPês" (1977). Mas é no tributo ao filme ruim/boçal que se mostra a verve mais ácida e desafiadora de Paulo Emílio, permanecendo intata até o final da vida.

FERNÃO PESSOA RAMOS, 59, professor titular do departamento de cinema da Unicamp, escreveu "A Imagem-Câmera" (Papirus).


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