Folha de S. Paulo


Um rei sem satélites; leia trecho de romance de Melville inédito no Brasil

SOBRE O TEXTO O excerto abaixo integra "Jaqueta Branca", misto de diário de bordo, memória e romance de Herman Melville inédito em edição brasileira. O livro de 1850 se baseia na temporada do autor a bordo de uma fragata da Marinha americana. A Carambaia lança a obra em janeiro.

Adams Carvalho
Ilustração de para a contracapa da Ilustrissima. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Ilustração de Adams Carvalho

Enquanto estivemos no Rio, de vez em quando recebíamos visita da costa; no entanto, uma honra imprevisível nos aguardava. Um dia, o jovem imperador dom Pedro 2º com seu séquito –fazendo um circuito pelo porto, visitando por turnos todos os navios de guerra– finalmente deu os ares de sua digna presença no Neversink.

Ele chegou numa barcaça esplêndida, remada por trinta escravos africanos que, ao modo brasileiro, se erguiam em harmonia sobre seus remos a cada pancada, depois voltavam para seus assentos com um gemido simultâneo.

Estava reclinado sob um dossel de seda amarela, adornado por borlas verdes –as cores nacionais. Na popa ostentava a bandeira brasileira, que tinha um enorme losango no centro, emblema, talvez, das minas de pedras preciosas no interior do país, ou talvez de um retrato ampliado do famoso "diamante português", encontrado no Brasil no distrito de Tejuco, às margens do rio Belmonte.

Nós o recebemos com uma grande salva, o que quase fez as abertonas de carvalho do navio se chocarem com a força do impacto violento. Subimos às vergas e demos início a um longo cerimonial de prestar homenagem ao imperador. Os republicamos costumam ser mais corteses com a realeza do que os próprios realistas. No entanto, isso nasce de uma nobre magnanimidade.

O imperador foi recebido no portaló pelo nosso comodoro em pessoa, que vestia seu capote mais resplandecente e suas dragonas francesas mais elegantes. Naquela manhã, seu criado dedicara-se a polir cada botão usando panos e trípoli –a maresia é inimiga declarada de objetos metálicos, por isso as espadas dos oficiais navais ficam tão enferrujadas na bainha que é difícil sacá-las.

Foi encantador ver o imperador e o comodoro se cumprimentando. Os dois usavam "chapeaux-de-bras" e o agitavam continuamente. Por instinto, o imperador sabia que a venerável figura diante de si era em alto-mar tão monarca quanto ele em terra firme. Afinal, nosso comodoro não carregava a espada de Estado presa no corpo? Pois, ainda que não a levasse na frente do corpo, devia ser uma espada de Estado, já que parecia muito mais reluzente do que sua espada de combate, que não era mais do que uma lâmina de aço flexível, com empunhadura lisa e resistente, como o cabo de um cutelo de açougueiro.

Quem nunca viu uma estrela no céu ao sol do meio-dia? No entanto, é raro ver um rei sem satélites. No séquito do jovem imperador havia um verdadeiro cortejo de príncipe, tão carregado de joias que as pessoas pareciam ter vindo diretamente das minas do rio Belmonte.

Você já viu cones de sal cristalizado? Do mesmo modo reluziam aqueles barões, marqueses, viscondes e condes portugueses. Não fosse por seus títulos, ou por serem vistos no séquito de seu senhor, poderíamos jurar que todos eram primogênitos de joalheiros, fugidos de casa com os estojos do pai pendurados nas costas.

Em contraste com a luminosidade desses barões do Brasil, como empalideceram os cordões dourados dos barões da nossa fragata, os oficiais da praça-d'armas! E comparados com os longos floretes dos marqueses, cujos cabos eram cravados de pedras preciosas, os punhais de nossos cadetes de famílias nobres –os aspiras– pareciam pregos dourados presos na cintura.

Mas ali estavam! Comodoro e imperador, tenentes e marqueses, aspiras e pajens! A banda de metais começou a tocar na popa; a guarda de oficiais apresentou armas; e lá do alto, observando a cena, toda a ralé deu vivas. Um gajeiro que estava ao meu lado na verga do sobrejoanete grande retirou o chapéu e, com diligência, inclinou a cabeça como sinal de honra ao acontecimento; mas ele estava tão longe da vista de todos, lá no alto, entre as nuvens, que sua cerimônia não valeu de nada.

Uma pena que, além de todas essas honras, aquele admirador de literatura portuguesa, o visconde Strangford, da Grã-Bretanha –que, acredito, viajou uma vez aos Brasis como embaixador extraordinário–, não estivesse presente nessa ocasião para oferecer seu tributo de "Uma Estrofe a Bragança!". Pois nosso visitante real era sem dúvida um Bragança, aparentado de quase todas as grandes famílias da Europa. Seu avô, João 6º, havia sido rei de Portugal; sua irmã, Maria, era agora sua rainha. Na verdade, ele era um jovem distinto e cavalheiro, digno de altíssima consideração, a qual lhe era alegremente concedida.

Usava uma casaca verde, com uma majestosa estrela-d'alva no peito, e pantalonas brancas. No chapéu havia uma única pena brilhante, em tons de dourado, de um tucano imperial, uma ave de rapina magnífica, onívora e de bico largo, nativa do Brasil. O tucano faz de poleiro as árvores mais altas, de onde observa lá embaixo as aves mais humildes e, como um falcão, voa e as ataca diretamente no pescoço. Os tucanos outrora faziam parte das selvagens regalias dos caciques do país, e, com o estabelecimento do império, foi simbolicamente preservado pelos soberanos portugueses.

Sua Majestade Imperial ainda era jovem; bastante corpulento, na verdade, tinha o rosto agradável e despreocupado e demonstrava polidez, neutralidade e delicadeza de trato. Seus modos, na verdade, eram mais que impecáveis.

Eis aqui, pensei, um rapaz esplêndido, com um futuro esplêndido pela frente. É imperador supremo de todos esses Brasis; não tem vigilâncias noturnas tempestuosas para cumprir; pode continuar deitado de manhã o quanto quiser. Qualquer cavalheiro no Rio teria orgulho de conhecê-lo, e as moças mais belas da América do Sul se sentiriam honradas de receber dele um simples olhar de soslaio.

Sim: esse jovem imperador terá uma vida de maravilhas, enquanto se dignar de existir. Todo mundo corre de sobressalto para obedecer a ele; e veja, que surpresa, há um velho aristocrata de uniforme –marquês d'Acarty, como o chamam, velho o bastante para ser seu avô– que, sob o sol quente, permanece diante dele com a cabeça descoberta, enquanto o imperador usa chapéu.

"Imagino que esse velho cavalheiro", disse um jovem marujo da Nova Inglaterra ao meu lado, "consideraria uma grande honra calçar as botas de Sua Real Majestade; e imagine só, Jaqueta Branca, se eu e esse imperador saltássemos nus para tomar um mergulho no mar, seria difícil dizer quem tem sangue real enquanto estivéssemos na água. Você, Dom Pedro 2º", acrescentou, "como é que se tornou imperador? Me diga. Duvido que consiga fazer tanta força quanto eu nas adriças da gávea; não é tão alto quanto eu; seu nariz é achatado, o meu é um quebra-mar; e como é que se tornou um 'bargante', com essas duas varetas no lugar das pernas? É um bargante mesmo!".

"Bragança, você quer dizer", disse eu, querendo corrigir a retórica de um republicano tão fervoroso e, com isso, criticar sua censura.

"Bragança! Arrogância é o que ele tem", respondeu. "A verdadeira arrogância. Olha aquela pena no chapéu! Olha como anda empertigado naquele casaco! Podia ser verde esse casaco, gajeiros –ele é no máximo um lambaz esverdeado."

"Quieto, Jonathan", disse eu. "O tenente naval está olhando aqui para cima. Fique quieto! O imperador vai escutar", completei, cobrindo-lhe a boca com minha mão.

HERMAN MELVILLE (1819-1891), autor americano, escreveu "Moby Dick".

ROGÉRIO BETTONI, 38, é tradutor.

ADAMS CARVALHO, 37, é ilustrador.


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