Folha de S. Paulo


PEC 241 não vai afetar social

Climachauska
Ilustração de Paulo Climachauska

RESUMO Articulista argumenta a favor da não inclusão da despesa com juro no teto de gastos proposto pela PEC 241 e da separação das políticas monetária e fiscal. Ele aprova o ritmo de aplicação do ajuste (de início leve) e defende que o possível entrave ao crescimento real do salário mínimo é efeito colateral menor.

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Como era de se esperar, a PEC 241 serviu como estopim para uma ampla discussão sobre orçamento, política fiscal e funcionamento da nossa disfuncional democracia. Economistas, técnicos e grupos de interesse colocaram os carros na rua e foram para o debate, com variados graus de informação.

Muitas dúvidas foram sanadas no caminho. Por exemplo, já se entende que a PEC não congela nenhum gasto social –pelo contrário, impõe pisos para saúde e educação–, mas limita a taxa de crescimento do gasto total; que seu prazo de validade é 2026, não 2036; e que 77% dos gastos de educação nem sequer fazem parte do Orçamento federal e, portanto, passam incólumes pela PEC.

Mas restam questionamentos e críticas mais de natureza econômica. Por que gasto primário, e não superavit primário? Por que primário, e não total (que inclui a conta de juro)? A natureza da trajetória de ajuste que deriva da PEC é a ideal? E o salário mínimo nessa história toda?

Uma PEC do superavit primário o Brasil já não quer mais. E com razão. O superavit pode ficar no azul com mais tributação, e a estratégia de fechar a conta com impostos cada vez mais altos parece ter batido no muro da restrição política.

O que é efetivamente necessário agora é frear a alta do gasto. A nossa condição de jabuticaba arrecadadora de cerca de 34% do PIB assim o exige. Nesse estágio, mais imposto atrapalharia o desenvolvimento da economia (apesar disso nem sempre ser verdadeiro).

Veio também à baila no debate da PEC uma variante da antiga discussão sobre incluir ou não o juro nesse cômputo. Não é meditação sem sentido, pois o que de fato importa para a dinâmica do endividamento é o gasto total do governo, e esse inclui a despesa de juros –imodesta no Brasil.

No entanto, somos contrários à ideia de PEC do gasto incluindo despesa com juro, por medo de que ela se transforme, em momentos de dificuldade, em PEC de teto dos juros (da inflação, portanto).

No Brasil, sob o sistema de metas para a inflação, a tarefa do Banco Central é definir a taxa básica de juros (que norteia o juro pago pelo governo), com o objetivo de manter a inflação perto de 4,5%. Durante parte do governo Dilma, a autoridade monetária se desviou desse mandato: os movimentos da taxa Selic andaram desconectados dos movimentos da inflação.

O resultado foi uma inflação na casa dos 10%. Esperamos que a experiência heterodoxa tenha servido ao menos para nos ensinar que com juro não se brinca. Ele não pode servir a dois mestres. Pois se o gasto com juro entra na conta do teto, corre-se o risco de novas ondas de ingerência na política monetária. A tentação é óbvia: forçar o juro artificialmente para baixo em busca de maior espaço no Orçamento para gastos em outras coisas.

MALDITO JURO

É fácil botar a culpa no juro, o excomungado e malfadado "interesse" de tantas línguas. "A educação não vai bem, a saúde, idem. Culpa dos juros, que nos lançam rápido ao teto da PEC, mas enriquecem usurários sanguessugas! Abaixo os juros!" Melodia para ouvidos oportunistas.

Pode-se contestar que, com um Banco Central independente, essas pressões não dariam em nada. É possível, mas no Brasil o BC não é independente. Vejam o que o contato muito próximo entre autoridade monetária e Executivo nos legou no campo da inflação.

Cremos que a política monetária tem que caminhar independentemente da fiscal, para não acabar sendo dominada por essa. Ainda que não seja o ideal, é um belo "second-best" (o ótimo às vezes é inimigo do bom, dizia minha avó).

Num mundo em que o horizonte de planejamento dos políticos é mais curto do que o da sociedade, é prudente que nem sequer possa passar pela cabeça da política fiscal que a monetária lhe daria uma forcinha em tempos de vacas magras. Se o arranjo institucional for desenhado de modo a não dar margem a tais conexões perigosas, a chance de a política fiscal se comportar direitinho é maior.

"Mas na Europa é assim, as metas incluem os gastos com juros!" É verdade. Mas o BC lá tem reputação e malha de proteção institucional das mais fortes. O Banco Central Europeu é um filhote do Bundesbank, seu homólogo alemão. Não é assim nos trópicos...

Mesmo que fosse, mesmo que não existisse o sempre presente risco de inconsistência temporal, não apoiaríamos a ideia. Se, no momento em que a economia se aquece, o BC sobe juros e –porque esses entram na conta do teto– os gastos crescem menos, o ajuste anti-inflacionário (via contração da demanda) é mais vigoroso.

Porém, não cremos que gastos com Bolsa Família, educação, saúde, aposentadoria e investimentos em infraestrutura devam ser influenciados por fatores de curto prazo, por aquecimentos/desaquecimentos cíclicos da economia que duram poucos trimestres. Esses desvios podem ser tratados via remédio monetário sem maiores dificuldades, visto que estamos a léguas do tal do limite do juro zero.

A metralhadora monetária tem munição de sobra; com a mudança de postura no BNDES, seu raio de alcance crescerá ao longo do tempo (à medida que o crédito subsidiado retroceda na economia).

Sempre tomando como dado que a restrição orçamentária intertemporal tem que fechar sem uso de imposto inflacionário, o ideal é que a política fiscal se baseie em coisas como: qual é a relação entre o gasto com o programa e a aferição de melhoria na educação? Qual é o ganho para a saúde das pessoas se colocarmos mais tantos bilhões no SUS? Faz mais sentido incrementar esses gastos ou reduzir impostos que travam o investimento privado e, portanto, o crescimento da economia?

É esse tipo de pergunta que deve nortear o debate orçamentário, não se a inflação está com cara de 4% ou de 6% num dado ano.

Outra crítica recentemente lançada contra a estrutura corrente da PEC tem a ver com sua dinâmica de ajuste de velocidade desigual: no começo, o ajuste é bem leve, mas ele se acentua lá na frente. Que fique claro que essa intensificação não significa que cortes nos esperam na esquina de 2022 para 2023. A regra é clara: não há queda real do gasto. Dito isso, é verdade que, à medida que a economia for crescendo, o gasto como proporção do PIB vai se reduzir lá na frente. Mas não é justamente isso que queremos com a PEC 241?

ALTERNATIVAS

Relembrando que, como um todo, o governo brasileiro gasta cerca de 35% do PIB, enquanto os outros países de renda por habitante parecida gastam perto de 25%. Quanto à questão das velocidades heterogêneas, qual é a sugestão dos críticos? Propor uma PEC 242 na qual se faça um ajuste mais forte já no curto prazo?

Se não me atrapalho com aritmética simples, para isso seria necessário corrigir as despesas por um valor abaixo da inflação num primeiro momento. Ou então afrouxar a regra para indexação mais adiante, instituindo um reajuste maior do que a inflação do ano anterior, a partir de, digamos, 2022. A primeira saída não parece politicamente palatável, enquanto a segunda vai aguar o impacto final da PEC e pôr sarna nos gastões de plantão –"por que não adiantar a mudança da regra de indexação para 2019, em vez de 2022?", dirá algum oportunista em 2018.

Não queremos essa margem para barganhas. Queremos que o Brasil caiba dentro do bolso e, não menos importante, queremos que o debate orçamentário ganhe em qualidade e envolva mais diretamente os eleitos pelo povo e menos os burocratas do Executivo.

Por último, bem lembraram alguns, sem reforma da Previdência desvinculando salário mínimo dos gastos com aposentadorias a PEC vai terminar travando o crescimento do salário mínimo em termos reais (dada a regra atual de reajuste, esse já não vai crescer em termos reais em 2017 e 2018). Verdade. Mas e daí? O que há de milagroso no crescimento real do salário mínimo?

Apesar de toda aura que o cerca, o salário mínimo não faz o milagre que muita gente lhe atribui. E pode até, depois de um tempo, atrapalhar. O impacto do mínimo –bom ou mau– depende de outras coisas, incluindo o grau de concorrência no mercado de trabalho. Para simplificar longa discussão: se o salário mínimo cresce a uma velocidade maior do que a produtividade do trabalhador de baixa qualificação, o resultado final será um aumento do desemprego/informalidade, justamente entre aqueles que ganham menos.

Convenhamos, se fosse fácil assim, por que não dobrar de uma vez o salário mínimo com um toque de varinha e aumentar os rendimentos de todos os trabalhadores de remuneração mais baixa da noite para o dia?

Porque não duraria sequer até o badalar da meia-noite. Em economia, não acontecem mágicas.

As críticas que temos escutado no que se refere à PEC 241 não nos parecem das mais sólidas, mas o debate, esse sim tem se mostrado frutífero.

CARLOS EDUARDO GONÇALVES, 43, é economista chefe do www.porque.com.br e professor titular da FEA-USP.

PAULO CLIMACHAUSKA, 54, é artista plástico.


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