Folha de S. Paulo


Venha morrer comigo, por Noemi Jaffe

SOBRE O TEXTO Esta é a primeira de uma série de ações a que a autora gostaria de dar continuidade, com a participação de outros colaboradores.

foto Eduardo Anizelli/Folhapress

quebrar tudo, morrer tudo, morrer só alguns pedaços, morrer aos poucos, todos os órgãos do corpo e da alma mortos, quebrados, despedaçados, percorrer a morte de todos os pedaços do corpo então quebrados, fazer com os pedaços percorridos do corpo um destroço gigante do percurso inacabado da avenida, cobrir a avenida de doença, nunca mais se curar, viver a ferida purulenta até ela feder e infectar todos os lugares de tempo, cobrir todos os lugares de relógios parados ou correndo loucamente atrás de seus próprios ponteiros, até que o espaço se torne tempo e todos os relógios chorem destroçados sobre os ossos restantes do corpo sem órgãos que também ele transformou-se em tempo. transformarmo-nos todos em tempo, em duração, dissolvermo-nos no instante em que as coisas, de tão coisas, viram música e corujas brancas e noturnas viram estrelas fulgurantes no sonho de alguém, até que o sol finalmente nasça e elas saiam voando porque não suportam a luz. ser sonho, ser luz e expulsar a noite, fulgurar na velocidade do rasgo, ser rasgo, cortar as abas das coisas, ser coisa parada, ameaçada, estar no tempo da ameaça, olhar para o mundo destroçado mas inteiro e saber que o maior destroço é a integridade. está tudo íntegro, meu amor, venha aqui me ajudar a destroçá-lo, venha morrer comigo, suicidarmo-nos juntos na fumaça do cigarro que eu não fumei, o vício que eu não tive, a mentira que eu não contei. foi a verdade que nos matou, meu amor, a verdade vive por toda parte, infectando o tempo com objetos verdadeiros, o tempo se saturou de verdade até o cabo de sua alça; puxe a alça do tempo, meu amor, desmonte-o pelo topo, rasgue-o até o pé, faça com que ele se desfie, se desfaça, se despregue e que dele vazem e jorrem e espirrem e melem e caguem todas as mentiras que se ocultavam dentro dele, espalhando-se loucas pela avenida, percorrendo destroços. nojenta a avenida toda suja, os gases exalando dos relógios, a morte cobrindo a vida, as corujas saindo dos sonhos, os sonhos escapulindo do fundo das memórias dos homens e populando as ruas, roubando os computadores, os dinheiros tão bem guardados sendo sequestrados pelos sonhos das corujas brancas brilhantes. morrer, fulgurar para que a lua nasça, a potência renasça nas mulheres, nos homens, nas crianças atônitas porque o fim do mundo chegou, o messias veio, finalmente o homem que todos queriam por tantos séculos, o filho do homem, o coringa do rosto rasgado, o topete do mal encarnado e nós, e você, vai ficar aí parado? onde está a palavra que você não disse? vai guardá-la macia na garganta? acariciá-la até que ela saia perfeita, mais uma coisa íntegra e verdadeira? estão esperando por mais verdades? eu não, ela não, ela está contente com a sua mentira morta e fedorenta, tão pobre ela, coitada, incapaz, uma pouca mentira que nada pode contra o império do mal dos homens fortes que acumulam setenta rifles verdadeiros em casa, no criado-mudo, na geladeira, no fogão, na estante, na mala, dão armas para os filhos irem para a escola e no caminho param para uma batata frita e matam uma criancinha preta no sinal. é com nosso nada sim, que vamos não fazer alguma coisa; é com nossa fraqueza mentirosa que vamos espalhar nossos ossos pelas avenidas sem alegria nenhuma, só sujeira, fedor, escarro, gases fedorentos de corpos vazios, relógios pretos exalando gases de mentira, pessoas se transformando em espaço, espaço se transformando em tempo. sonhos, coisas e mentiras se transformando em duração, tudo só durando como gases na avenida, a tristeza suja finalmente evoluindo, subindo como vapor pelos postes e se derramando sobre as ruas como um cuspe subitamente alegre, vinda de todos os que cuspiram nos pratos que comeram ou daqueles que cuspiram para cima sem medo de que o cuspe um dia caísse sobre suas cabeças. é a hora de quem se recusou a acordar mais cedo, de quem foi inimigo da perfeição, de quem não agradeceu pelo um pássaro na mão, de quem fez verão com menos de uma andorinha. é a hora dos que quiseram morrer antes da sua hora e se recusaram a aproveitar o que a vida ofereceu, é a hora dos que não têm nada de útil a te dizer, porque você vai continuar lambendo o relógio, tic-tac, tic-tac da vida, você que quer o equilíbrio das compras bem feitas, você não entra aqui nesse relógio desfeito na avenida destroçada no meu corpo impotente e morto, apaixonado que estou pela minha alegria fraca, tão fraca que não é nem capaz de um lábil sorriso, só de um soco curto na pinguela da língua, a língua dessa boca banguela, manca, gaga e surda que desde agora eu vou falar.

NOEMI JAFFE, 54, escritora, é autora de "O que os Cegos Estão Sonhando?"(ed. 34) e "A Verdadeira História do Alfabeto" (Companhia das Letras).

FLORA REBOLLO, 33, artista plástica, participa da Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, em cartaz na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, até 31/12.


Endereço da página: