Folha de S. Paulo


Para ler o Mr. Donald sem simplificações

RESUMO Em análise sobre vitória de Trump, autor contesta lugares-comuns, como a ideia de uma divisão inédita dos EUA. O magnata não seria exatamente um conservador, já que mais ataca do que defende instituições. A depender da reação da sociedade e do sistema de contrapesos, o terremoto poderá ser um leve tremor.

Saul Loeb-8.nov.2016/France Presse
O presidente eleito Donald Trump na festa de comemoração pela vitória, em Nova York
O presidente eleito Donald Trump na festa de comemoração pela vitória, em Nova York

"Os EUA estão rachados." "A sociedade norte-americana está perigosamente polarizada." Essas duas frases, e variações sobre esse tema, têm aparecido em grande parte das análises sobre a disputa presidencial travada entre Hillary Clinton e Donald Trump. No entanto, é importante colocar o resultado que acabamos de testemunhar em alguma perspectiva histórica.

Em primeiro lugar, é no mínimo um exagero retórico (e, no máximo, uma distorção política grosseira) acreditar que os EUA vivem um momento particularmente polarizado. A cultura política majoritária norte-americana é abertamente facciosa. E é dessa maneira pelo menos desde a sua independência, em 1776.

Não fosse assim, o país nem sequer existiria. Não é preciso recuar muito. Ainda no início do primeiro mandato do presidente George W. Bush, os analistas e a maior parte da imprensa não se cansavam de apontar a ideia de que a América estava irredutivelmente dividida. O mesmo ocorreu ao fim de seu segundo mandato, quando da eleição do presidente Barack Obama –e a despeito do discurso pós-racial e um tanto conciliador deste.

Basta pensar que durante o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, houve também ampla oposição congressual republicana, que não hesitava em classificar as medidas sociais e econômicas do democrata como uma perigosa antessala para o socialismo nos EUA.

Portanto, não apenas a polarização norte-americana é um fenômeno que nada tem de novo como se observa facilmente um padrão retórico da mídia: a cada eleição, há uma nova imputação de radicalismo e extremismo ideológico à sociedade, o que raramente corresponde de modo tão simétrico assim à realidade.

CONSERVADOR?

Sobre a vitória de Trump, cumpre destacar algumas coisas. A primeira delas diz respeito à classificação política do sujeito. Com frequência ele é tomado como um conservador –o que deve ser relativizado. É instrutivo lembrar do ensaio clássico do cientista político Samuel P. Huntington, "Conservatism as an Ideology" (conservadorismo como ideologia), publicado na "American Political Science Review" de junho de 1957. Para simplificar, ao contrário da maior parte dos conservadores, que negam o status de ideologia à tradição, Huntington argumentava que o conservadorismo deveria, sim, ser tratado como uma ideologia, mas como "ideologia situacional".

O que isso significa exatamente? Segundo ele, é a ideia de que o conservadorismo pode ser lido como uma resposta, ou tática, adotada sempre que as instituições estabelecidas estão sob alguma ameaça. Segundo essa chave, a tradição conservadora seria um sistema de ideias comprometido com a defesa de determinada ordem social.

Trocando em miúdos, para a teoria situacional de Huntington, o argumento conservador surge sempre que determinado grupo se lança em defesa das instituições que estão sob ataque de outro grupo social/político.

Para o estudioso, se o conservadorismo precisa ser sempre compreendido como a defesa de determinada ordem política, produzida a partir de determinado conjunto de instituições, o corolário desse pressuposto é a ideia de que o conservadorismo norte-americano será invariavelmente de contornos liberais –uma vez que majoritariamente liberais são as instituições dos EUA.

Se aceitamos essas premissas, logo fica claro que: 1) Donald Trump não age ou argumenta a fim de defender qualquer das instituições norte-americanas; pelo contrário, ele as ataca; e 2) nada em sua agenda política ou econômica soa minimamente liberal. Sendo assim, por que chamá-lo de conservador?

De todo modo, sua candidatura guarda semelhanças com a de alguém como Patrick J. Buchanan, que em 1992 e 1996 chegou a disputar as primárias do Partido Republicano, mas jamais conseguiu a nomeação.

Aqui, aliás, é possível formular uma hipótese. A candidatura Trump é a candidatura Buchanan com o timing correto. Buchanan falava na década de 1990 sobre o perigo da conjunção de uma economia excessivamente desregulamentada e da ameaça representada pelos fluxos migratórios aos trabalhadores brancos com uma cultura artificialmente produzida em cátedras universitárias, muito mais afeita a identidades particulares (raciais, sexuais, de gênero etc.) do que aos valores do americano médio. Esse discurso ainda soava, então, abstrato ou até mesmo distante da realidade política da época.

Entretanto, em 2016, passou a haver uma conjunção de fatores que tornou essa agenda muito mais material e crível.

Em primeiro lugar, não somente o desastre da recessão de 2008, mas o impacto econômico completamente assimétrico e desproporcional de um sistema financeiro altamente internacionalizado sobre a classe trabalhadora e sobre os operadores.

Em segundo, os efeitos econômicos e humanitários da Guerra do Afeganistão e da Guerra do Iraque –conflitos que contaram com amplo respaldo bipartidário, é bom frisar.

Em terceiro, a percepção de que, por bem-intencionados que fossem, os discursos identitários produzidos nos campi universitários norte-americanos com grande frequência agiam de modo autoritário e policialesco, tanto no campo da linguagem como no dos costumes, algo que gerava como desdobramento mais ou menos natural a alienação de um amplo segmento da sociedade (trabalhadores brancos com reduzido grau de instrução e em dificuldade econômica, sobretudo).

Além disso, alguns outros pontos são importantes e merecem ser discutidos. Por exemplo, muito embora a eleição de Trump seja trágica por um sem-número de aspectos (e isso é absolutamente inegável), há algumas consequências não intencionais de curto e médio prazo que podem ser benéficas para o sistema político norte-americano como um todo.

A primeira delas é a de que a última pá de cal foi jogada em uma das oligarquias mais poderosas e influentes na máquina republicana: a família Bush. Quando Trump derrotou Jeb Bush, ainda nas primárias, triunfou não apenas sobre um candidato, mas sobre um projeto de poder de contornos aristocráticos –o que, convenhamos, não é pouco.

Em segundo lugar, ainda no processo de primárias do Partido Republicano, Trump classificou a Guerra do Iraque como equivocada e foi além: disse que a intervenção militar da coalização internacional era baseada em mentiras. Agindo dessa forma, Trump rompeu a bolha de anuência suprapartidária na qual vigorava a regra tácita de que só era possível criticar a condução da Guerra do Iraque, jamais suas motivações primárias.

Fazendo isso, desferiu um golpe certeiro não somente na política externa de George W. Bush; alvejou a ampla tradição conciliatória no tocante à política externa norte-americana.

Em terceiro lugar, a eleição de Trump quiçá marque o fim do reaganismo tal qual o conhecemos. Isto é, a pergunta clássica feita por boa parte dos republicanos, "What would Reagan do?", agora faz pouco ou nenhum sentido. A conjunção da defesa de um Estado mínimo com uma retórica dura em relação à política externa soa não apenas pouco efetiva mas também como um anacronismo perigoso –corresponderia a aplicar soluções da década de 1980 para problemas de 2016.

Em quarto lugar, Donald Trump acaba de se colocar em uma situação incomum na história política dos EUA. Sofrerá oposição sistemática não apenas do Partido Democrata; amplos setores de sua própria legenda o pressionarão. Se levarmos em consideração a importância de "checks and balances" (freios e contrapesos) para o funcionamento são da República, é razoável afirmar que os EUA terão um Executivo com capacidade discricionária e despótica altamente limitada.

A eleição de Trump também estimula a consciência e o dever cívico de se organizar uma oposição frente ao governo que será estabelecido em breve. Aqui se entra num exercício de contrafactual, mas dificilmente o mesmo ocorreria (ou ao menos não na mesma escala) com uma vitória de Hillary Clinton. O establishment político e cultural dos EUA entraria em um modo de irredutível complacência com a democrata.

Por fim, é interessante recordarmos um ensaio publicado em 1939 por T.S. Eliot, "A Ideia de uma Sociedade Cristã". Para ele, pouco deveria importar que governantes cristãos fossem eleitos. Vital mesmo era que a sociedade se organizasse no sentido de criar um "centro vital" pré-político, amarrado solidamente a valores cristãos.

Assim sendo, pouco contaria a orientação religiosa do governante (ou a falta dela). Os valores da sociedade sempre o pautariam e seriam a métrica pela qual ele deveria se adequar.

É possível aqui fazer uma versão secularizada do argumento de Eliot. Isto é, na hipótese de um indivíduo explicitamente autoritário ter sido eleito, agora, mais do que nunca, a sociedade civil e suas instituições devem se comprometer com ideais liberais e com uma ideia radical de pluralismo. Se assim for, e a sociedade norte-americana tem plena capacidade de agir em acordo, o que parecia um terremoto revelar-se-á apenas um leve tremor passageiro.

GABRIEL TRIGUEIRO, 34, historiador, é doutorando em história comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro com pesquisa sobre o pensamento político americano.


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