Folha de S. Paulo


Operação Lava Jato cria crenças irrealistas sobre o fim da corrupção

RESUMO Artigo sustenta que é preciso ouvir as críticas feitas à Lava Jato, desde que não representem interesses escusos. O autor considera ilusório supor que a corrupção, elevada a grande problema nacional, vá ser abolida apenas por medidas baseadas na lei penal, que tendem a se concentrar nos efeitos, e não nas causas.

Manuela Eichner

À medida que a Operação Lava Jato avança, revelando as teias do relacionamento criminoso entre políticos e empreiteiras no país, vai se formando um contencioso que ameaça a avaliação serena dos seus resultados: até que ponto as críticas aos métodos utilizados por procuradores e pelo juiz Sergio Moro podem ser entendidas como tentativas de desestabilizar a Lava Jato, atirando os seus formuladores na vala comum dos que querem simplesmente bloqueá-la por receio de suas consequências?

A partidarização radical entre os entusiastas declarados e os potenciais detratores da operação ganhou impulso com a publicação do artigo do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite na Folha (11/10), quando comparou os métodos do juiz Sergio Moro aos do inquisidor Savonarola, célebre pela perseguição que impunha aos que eram acusados de práticas contrárias aos ensinamentos da Igreja Católica, punindo-os com a queima na fogueira.

A resposta de Moro, em carta enviada ao jornal, acirrou ainda mais a discussão ao considerar que "a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveria ser evitada" por um veículo com a tradição da Folha.

Em outro texto, os procuradores Deltan Dallagnol e Orlando Martello (30/10) afirmaram que o "ataque mendaz à credibilidade da Lava Jato e dos investigadores" teria o objetivo de preparar o terreno para a aprovação de projetos como o de abuso de autoridade, com vistas a promover a anistia à prática de caixa dois ou a restringir a colaboração premiada –o que nos levaria a seguir o caminho da Itália, que "lutou contra a corrupção, mas perdeu".

É claro que as críticas de políticos suspeitos de corrupção carecem de legitimidade porque é impossível estabelecer a linha que separa o seu interesse daquilo que poderia ser uma opinião justa sobre procedimentos adotados pela operação. Essa evidência se reforça quando vemos o modo como esses políticos inflam o debate acerca do projeto sobre abuso de autoridade, que, independentemente dos seus méritos, é, como afirma o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, pautado "a título de outros interesses, como o revanchismo".

Entretanto, a melhor contribuição que se pode dar à Lava Jato é, de maneira legítima, justamente apontar seus acertos e virtudes, assim como seus erros e excessos –o que é bem distinto de fazer a defesa de práticas escusas que merecem ser expurgadas da vida pública do país.

SALVAÇÃO NACIONAL

Um dos principais pontos a considerar sobre os efeitos da Lava Jato é o clima de "salvação nacional" que deriva da operação, como se a sorte e o destino do país estivessem atrelados irremediavelmente aos seus resultados. Isso acaba por criar um ambiente pouco propício ao debate democrático, visto que situa quem quer que critique um determinado aspecto da Lava Jato na posição de obstáculo ao alcance de um objetivo vital para o interesse do Brasil.

Com a corrupção sendo elevada ao posto de principal problema nacional, é perfeitamente legítimo perguntar se o seu combate pode ser feito apenas com o uso do sistema de leis penais, sem que se modifique o modo como são conduzidos os negócios do país.

Por maiores que sejam os poderes e as estruturas do Ministério Público e do Judiciário, é difícil imaginar que seja possível resolver a corrupção sistêmica sem uma reavaliação do modo como o Estado e as empresas movimentam as engrenagens que fazem a roda da economia girar. Afinal, a corrupção, como diz o cientista político Gianfranco Pasquino, "é um modo de influir nas decisões públicas", o que se faz com a desobstrução dos canais de decisão do Estado, visando a obtenção de benefícios para setores que remuneram em profusão a quem lhes facilita o acesso aos meandros do poder.

A pergunta que fica é a seguinte: sem que se altere a origem do problema, que tamanho precisa ter a estrutura de fiscalização para dar conta de evitar que os fatos trazidos à tona pela Lava Jato se repitam? E, ao lado disso, qual o custo para o país da montagem dessa estrutura que afinal incide sobre as consequências, sem que as causas do problema sejam devidamente controladas?

Esse dilema já havia sido apontado há mais de cem anos por Joaquim Nabuco, quando analisou o modo como o sistema político americano enxerga o controle dos atos do poder público: "Prejuízos há de sempre haver em toda administração; para impedi-los seria preciso montar um sistema de fiscalização ruinoso para o país, não só pelo seu custo, como porque seria preciso distrair para ele dos negócios e de outras profissões o que o país tivesse de melhor".

A preocupação de Nabuco torna-se ainda mais relevante quando se verifica o modo como são edificados os sistemas de controle no Brasil, amparados em normativas extensas, não raras vezes contraditórias, o que as torna pouco efetivas para realmente garantir a lisura dos procedimentos. A verdade é que, no fundo, tais exigências se prestam muito mais a estabelecer um controle burocrático, apenas para dizer que tudo foi feito segundo as exigências da lei –quando na verdade nada o foi.

Segundo o consultor Alexandre di Miceli em entrevista à Folha em 29/10, "todas as grandes empresas brasileiras flagradas em corrupção nos escândalos dos últimos dois anos seguiam, ao menos formalmente, as regras exigidas". E conclui: "Colocar dinheiro em programas de 'compliance' [conformidade a regras e leis] é o mesmo que enxugar gelo se não houver mudança de mentalidade".

Na mesma linha, o jornalista italiano Gianni Barbacetto, autor de livro prefaciado pelo juiz Sergio Moro sobre a Operação Mãos Limpas, afirma em entrevista ao "Valor", em 24/10, que "ou a política se reforma, ou se pode fazer mil Mãos Limpas ou Lava Jatos que volta tudo de novo. O cidadão tem que assumir esse papel, de não votar em corruptos ou de criar um novo partido. Não é um sistema judiciário que pode reformar o país, nem na Itália, nem no Brasil".

MUDAR O PAÍS

Essa discussão não atinge unicamente os limites do Judiciário, podendo impactar diversos ramos da estrutura nacional. O aumento dos controles sobre os negócios é um dos efeitos positivos da operação, mas é preciso estabelecer um debate saudável sobre suas consequências. Há que se analisar, por exemplo, o grau da elevação dos custos de transação dos investimentos, justamente para que a proteção do interesse público se faça em harmonia com a realização de atividades econômicas fundamentais.

Nesse sentido, é necessário que se pense criticamente não só a Lava Jato, mas o funcionamento do país. Cabe aqui sair da discussão ideológico-partidária para perceber que estamos em um momento transformador do Brasil. Elogios devem sim ser feitos à operação, mas é de fundamental importância que também se ouçam as críticas para evitar que, na busca pela justiça, criem-se superestruturas insustentáveis para os contribuintes.

A Lava Jato está construindo a crença de que a erradicação da corrupção, tal qual se faz com ervas daninhas, é objetivo que pode figurar em nosso horizonte político. Mas, diferentemente do que vem acontecendo, é salutar que se esclareça para a sociedade que não basta aumentar o rigor na punição dos crimes de desvio dos recursos para que o problema seja resolvido. Até porque o risco daí decorrente é a contínua exigência de penas mais severas caso a corrupção se mostre resistente aos esforços para extingui-la, o que acabaria por transformar o Código Penal no catecismo oficial do país.

A verdade é que a corrupção no Brasil, como observou Nabuco, é um "mal profundo" e "visceral", com alto grau de institucionalização no setor público, arraigada na cultura dos mais diferentes estratos da sociedade. É preciso um esforço coletivo para que suas causas sejam atacadas, aliando o empoderamento dos órgãos de fiscalização a reformas não só do sistema político, mas do modo como os brasileiros muitas vezes se relacionam com os bens públicos, fundamentais para garantir o bem-estar social de todos nós.

SERGIO LEITÃO, 52, é advogado e diretor do Instituto Escolhas.

MANUELA EICHNER, 32, é artista plástica e expõe na Arte Pará, em Belém, até 6/12.


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