Folha de S. Paulo


As anotações de Ingmar Bergman para o filme "Persona"

12 de abril de 2016, Fårö, Suécia. Estamos completamente mergulhados nos textos que se acumularam nos 50 anos desde que Ingmar Bergman lançou "Persona". A exposição abrirá em algumas semanas no Bergmancenter. Os dias se despedem num rápido relance no relógio.

Nosso desafio não é pequeno: navegar por esse universo analítico infinito para criar algo sensorial e impactante. Às críticas e análises acadêmicas sobre o filme somam-se incontáveis entrevistas e depoimentos do diretor.

Nos concentramos então no acervo de cadernos de anotações e roteiros manuscritos que Bergman deixou. O conteúdo é vasto e revela um homem meticuloso, detalhista e assombrado por imagens e sensações que traduziu em seus filmes e peças de teatro.

12 de abril de 1965, Estocolmo. O paciente Ernst Ingmar Bergman encontra-se num estado de saúde deplorável. Pneumonia, envenenamento por excesso de penicilina e uma infecção viral lhe causam acessos de tontura.

Prestes a completar 47 anos, acumula invejáveis 33 filmes, incluindo obras-primas como "Mônica e o Desejo" (1953), "O Sétimo Selo" (1957) e "Morangos Silvestres" (1957), além da renomada trilogia do silêncio. Igualmente prolífico no teatro, dirige o Teatro Nacional Sueco desde 1960. Casado com sua quarta mulher, carrega na bagagem sete filhos.

Em seu quarto de hospital, "apenas para exercitar a mão", escreve a primeira anotação que culminaria em "Persona": "Eu quero começar do começo. Não inventar, não inflamar, não bagunçar, mas começar do começo por um novo eu –se eu tiver um. Ela tem sido uma atriz –isso eu talvez possa me permitir? E então ela se calou. Nada de anormal nisso".

29 de abril de 1965, Estocolmo. Ainda internado, Bergman tenta se salvar criando regras:

"As seguintes regras devo tentar seguir: café da manhã às oito e meia com os demais pacientes.

Imediatamente em seguida, sair para a caminhada matinal.

Nenhum jornal ou revista durante esse período.

Nenhuma forma de contato com o teatro.

Não receber cartas, telegramas ou ligações telefônicas. [...]

Nenhum cinema ou TV.

Sinto agora que uma batalha decisiva está se aproximando, e é importante não prorrogá-la mais. Acredito que eu talvez não seja capaz de escrever alguma coisa. Nesse caso não importa. Preciso atingir algum tipo de clareza. Caso contrário, tudo irá definitivamente para o inferno".

Dois meses depois, ele viajaria para as filmagens: "Começamos em 19/7 num estúdio em Estocolmo. Os primeiros dias foram horríveis. Bibi estava brava, Liv, nervosa, e eu, paralisado pelo cansaço. ["¦] Quando chegamos em Fårö, passamos a nos divertir. O tempo estava ótimo, a filmagem fluiu e decidimos refazer tudo o que havíamos rodado em Estocolmo".

29 de abril de 2016, Fårö. A ilha que deu vida a "Persona" nos oferece o outro lado da moeda. Remota, sem estrutura, mão de obra ou fornecedores, nos força a encontrar soluções. Tudo de que precisamos para a exposição fica a uma travessia de ferry e mais 70 km de estrada, por vezes ainda coberta de neve. Perder uma saída do barco causa um efeito avalanche em nosso já apertado cronograma.

Com tempo e recursos escassos, nos transformamos em carpinteiros, pintores e eletricistas. As regras que o mestre havia criado para si passam a servir também para nós: "nenhum cinema ou TV", "nenhum jornal ou revista", "caso contrário, tudo irá definitivamente para o inferno".

4 de maio de 2016, Fårö. Um dia para a abertura. A última jornada de trabalho começou na manhã do dia 3 e terminou nas primeiras horas de hoje. É aniversário de Murilo, que dorme no Skrivstugan de Bergman, algo como chalé do escritor, uma cabana de madeira cercada pela vegetação típica da região, à beira da praia de pedras imortalizada no filme. A única casa próxima é a icônica residência construída pelo diretor após "Persona" para viver com seu mais novo amor, Liv Ullmann.

Paralisados de cansaço, trocamos poucas palavras. Fårö nos brinda com seu esplendor. A exposição está pronta. E, assim como Bergman, sobrevivemos.

HELEN BELTRAME-LINNÉ, 36, é diretora do Bergmancenter, em Fårö, na Suécia, e responsável pela mostra "Por Trás da Máscara: 50 Anos de Persona", no Itaú Cultural, em São Paulo, até 6/11.

MURILO HAUSER, 35, é roteirista, dramaturgo, diretor e músico; codirigiu, com Hector Babenco, o espetáculo "Hell".


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