Folha de S. Paulo


Alguns dos verbetes do "Dicionário do Diabo" de Ambrose Bierce

SOBRE O TEXTO O satirista americano Ambrose Bierce redigiu por 25 anos os verbetes de seu "Dicionário do Diabo", libelo ácido contra as instituições, mas sobretudo contra a arrogância e a hipocrisia. Os apontamentos aqui reunidos dão uma amostra do tom irreverente do volume, que a Carambaia lança em dezembro. Nele figuram pela primeira vez os poemas que o autor criou para ilustrar definições.

DW Ribatski

N

NIILISTA (NIHILIST), s.2g.

Russo que nega a existência de qualquer coisa que não seja Tolstói. O líder da escola é Tolstói.

NIRVANA (NIRVANA), s.m.

Na religião budista, um estado de agradável aniquilação concedido aos sábios, especialmente àqueles que são sábios o suficiente para compreendê-lo.

NOIVA (BRIDE), s.f.

Mulher com uma ótima perspectiva de felicidade em seu passado.

NOIVO (AFFIANCED), s.m.

Equipado com uma tornozeleira onde prender a corrente e a bola.

NOMEAR (NOMINATE), v.t.

Indicar para a mais pesada avaliação política. Promover pessoa adequada para ser alvo da lama e dos gatos mortos da oposição.

NOVEMBRO (NOVEMBER), s.m.

A 11ª de doze partes de um cansaço.

O

OBSERVATÓRIO (OBSERVATORY), s.m.

Lugar onde astrônomos fazem suposições sobre os palpites de seus antecessores.

ORAÇÃO (PRAY), s.f.

Pedido para que as leis do universo sejam anuladas em favor de um suplicante que confessa não ser merecedor.

OTIMISMO (OPTIMISM), s.m.

A doutrina, ou crença, de que tudo é belo, incluindo o que é feio, de que tudo é bom, incluindo o mal, e de que tudo está certo, inclusive o errado. É defendida com grande tenacidade por aqueles que estão mais acostumados ao infortúnio de enfrentar a adversidade e é mais aceitavelmente exposta com dentes arreganhados que simulam um sorriso. Sendo uma fé cega, é inacessível à luz da refutação "" uma doença intelectual, que não tem outro tratamento que não a morte. É hereditária, mas felizmente não é contagiosa.

P

PACIÊNCIA (PATIENCE), s.f.

Forma menos grave do desespero, disfarçada de virtude.

PARTIDÁRIO (ADHERENT), s.m.

Seguidor que ainda não conseguiu tudo o que esperava.

PATRIOTA (PATRIOT), s.2g.

Alguém para quem os interesses de uma parte parecem ser superiores aos interesses do todo. Joguete dos estadistas e ferramenta de conquistas.

PAZ (PEACE), s.f.

Nas relações internacionais, um período de trapaça entre dois períodos de luta.

O que é esse troar em meus ouvidos
Que não cessa jamais?
Saúdam na esperança os iludidos
Os horrores da paz.

Ah, Paz Universal, vê, te cortejam
– E te querem no altar.
Se só soubessem ter o que desejam
Iam fácil ganhar.

Trabalham no problema noite e dia,
Dedicando-lhe as vidas.
Ó meu Deus, apiedai-vos, clamaria,
Dessas almas metidas!

– Ro Amil

PEDESTRE (PEDESTRIAN), s.m.

Para um automóvel, a parte variável (e audível) da via.

PINTURA (PAINTING), s.f.

A arte de proteger superfícies planas contra o clima e de expô-las aos críticos.

Antigamente, a pintura e a escultura combinavam-se na mesma obra: os antigos pintavam suas estátuas. A única aliança atual entre as duas artes é que o moderno pintor cinzela seus clientes.

PLEBISCITO (PLEBISCITE), s.m.

Votação popular para descobrir qual a vontade do soberano.

POLIDEZ (POLITENESS), s.f.

A mais aceitável hipocrisia.

POLIGAMIA (POLYGAMY), s.f.

Casa de expiação, ou capela expiatória, mobiliada com vários bancos penitenciais, em oposição à monogamia, que tem apenas um.

POLÍTICA (POLITICS), s.f.

Luta de interesses disfarçada de disputa de princípios. A condução dos negócios públicos para obter vantagens pessoais.

PRAZER (PLEASURE), s.m.

A menos odiosa forma de desânimo.

PRECONCEITO (PREJUDICE), s.m.

Opinião errante sem formas visíveis de sustentação.

PREFERÊNCIA (PREFERENCE), s.f.

Um sentimento, ou estado mental, induzido pela crença errônea de que uma coisa é melhor do que outra.

Um antigo filósofo, expondo sua convicção de que a vida não é melhor do que a morte, foi questionado por um discípulo por que, então, ele não morria. "Porque", ele respondeu, "a morte não é melhor do que a vida". É mais longa.

PRERROGATIVA (PREROGATIVE), s.f.

Direito de um soberano de agir mal.

PRESENTE (PRESENT), s.m.

A parte da eternidade que separa o domínio da decepção do reino da esperança.

PRESIDENTE (PRESIDENT), s.2g.

Figura dominante em um pequeno grupo de homens dos quais se sabe com certeza –e apenas em relação a eles– que uma imensa quantidade de seus compatriotas não os escolheria para chegar à Presidência.

Pois se isso é honra eu penso ser ainda maior
Passar por isso sendo mero espectador.
Repare e veja se eu me engano quando noto:
Não há ninguém que tenha a mim negado um voto!
Não me xingaram nem chamaram de serpente –
Pelo que eu sei seria eleito presidente
Na aclamação. Gritai, patifes boquiabertos
Eu vou passando com ouvidos bem abertos!

– Jonathan Fomry

PRESSÁGIO (OMEN), s.m.

Sinal de que algo acontecerá caso nada aconteça.

PROFECIA (PROPHECY), s.f.

Arte e prática de vender a credibilidade de alguém para entrega futura.

PRÓXIMO (NEIGHBOR), s.m.

Alguém que, segundo o mandamento, devemos amar como a nós mesmos e que faz tudo o que sabe para nos tornar desobedientes ao mandamento.

AMBROSE BIERCE (1842-1913?) foi um jornalista e escritor americano.

ROGERIO W. GALINDO, 40, é repórter e tradutor.

DW RIBATSKI, 34, é artista plástico e ilustrador. Coautor de "Campo em Branco" (Quadrinhos na Cia.), com Emilio Fraia.


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