Folha de S. Paulo


Roberto Alvim adapta livro de Chico Buarque com teatralidade

RESUMO O dramaturgo e diretor carioca radicado em São Paulo Roberto Alvim se notabilizou pelo apuro formal e pelo minimalismo gestual de suas montagens, ancoradas na força expressiva da atriz Juliana Galdino. Sua releitura do romance "Leite Derramado", em cartaz, aponta um inédito interesse pelo movimento.

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É inútil tentar definir com precisão o lugar que ocupa o protagonista Lalinho entre os parentes e os anos que se atravessam em seu relato ao longo das 195 páginas de "Leite Derramado", o romance que rendeu a Chico Buarque os prêmios Jabuti e Portugal Telecom no ano de 2010.

Se há algo de "Cem Anos de Solidão" no peso das memórias familiares do tataravô ao tataraneto, é num delírio rodriguiano –mais aparentado a "Vestido de Noiva"– que vive o herdeiro dos D'Assumpção, confundindo presente, passado e sonho.

Na versão teatral reescrita e dirigida por Roberto Alvim, em cartaz até 13/11 no Sesc Consolação, em São Paulo, todas essas gerações e tempos são engendrados pela voz da atriz Juliana Galdino. Transfigurada no centenário Eulálio D'Assumpção, com aparência irreconhecível, sua fala esquizofrênica é povoada por avós, pais e filhos que já não se distinguem no delírio de um leito de hospital.

Divulgação
A atriz Juliana Galdino (à frente) em cena da adaptação do diretor Roberto Alvim para
A atriz Juliana Galdino (à frente) em cena da adaptação do diretor Roberto Alvim para "Leite Derramado", de Chico Buarque

Alvim retira do livro grande parte do conteúdo nostálgico sobre o matrimônio de Lalinho e Matilde, como quem o disseca para deixar apenas o osso: a cadeia geracional de poder que esteia a história política, econômica e cultural do país.

Com isso, as perturbações do narrador imaginado por Chico Buarque ganham a amplitude de um pesadelo nacional. "Nossa tragédia é toda sua", anuncia o letreiro no prólogo da peça. E o que se segue é o espetáculo da nossa tradição escravagista, oligárquica e corrupta de mais de 500 anos, resgatada como comentário político sobre a situação presente. "Certas histórias não param de acontecer aqui, agora", lança o Lalinho de Alvim.

O avanço da agenda conservadora e de teses reacionárias nos últimos anos estimulou artistas de todo o país a buscar respostas estéticas incisivas à crise política –já que se trata, sobretudo, de uma crise da percepção. E quem fala em percepção invoca a arte.

O desejo de resgatar a história para iluminar o presente ecoa o de trabalhos recentes como a trilogia "Abnegação", desenvolvida pelo Tablado de Arruar, e "Caranguejo Overdrive", da carioca Aquela Cia. Distante do teatro didático-dialético praticado, por exemplo, pela Cia. do Latão, e com uma poética singular em relação a outros artistas que reinventam as relações entre estética e política, Roberto Alvim faz, da primeira, substrato, e da outra, consequência.

Pesa para tanto o modo como Lalinho constitui um nó que tudo atravessa. Alvim recusa conceder conexões entre linhas narrativas. Concebe a encenação a partir da figura geométrica do ponto (ou do furo lacaniano), que se desliga das associações condicionadas.

Com isso, pretende gerar um corte em nossos modos de representação e de interpretação cotidianos, em nossas configurações de espaço e tempo, nossas concepções de causa e consequência, voz e indivíduo. Interrompe o processo de significação habitual para permitir alguma transformação –ao menos, em nossa percepção da escuta.

A radicalidade do diretor já pôde ser vista em projetos como "Peep Classic Ésquilo" (2012), montagem das sete tragédias do autor grego com textos hipersintéticos e concepção espacial inspirada no "Quadro Negro sobre Fundo Branco", de Malevitch; ou no "Tríptico Samuel Beckett", com Nathalia Timberg, entre outros tantos trabalhos criados na sede de sua companhia, o Club Noir, aberta na rua Augusta em 2008.

Nascido no Rio, onde impulsionou uma onda de renovação da dramaturgia que abriu espaço para nomes como Daniela Pereira de Carvalho, Pedro Brício e Jô Bilac, Alvim ressentia-se da recepção fria a seu trabalho como diretor. Foi o encontro com Juliana Galdino, até ali atriz do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho, que permitiu o amadurecimento de sua poética, fazendo da potência vocal assombrosa dela matéria de suas abstrações cênicas.

Logo a versão dele para "O Quarto" (2008), de Harold Pinter, figuraria numa lista dos dez melhores espetáculos da década, segundo a revista "Bravo!", e deflagraria o efeito magnético, com seu componente reverso de repulsa, de um teatro com ambição de originalidade.

Elementos recorrentes na linguagem desenvolvida desde então pelo encenador estão presentes em "Leite Derramado" e podem ser percebidos pelo público mesmo quando sua compreensão não é cristalina ou imediata: falamos do colorido das modulações de voz e da cena armada como um quadro, com atores dispostos em planos e em tríades –fruto de um pensamento contaminado por procedimentos da pintura abstrata.

Mesmo um sistema restrito como o criado por Alvim à luz de Pollock e Malevitch precisa se reinventar para não virar pastiche, prisão. O trabalho atual abre-se para uma teatralidade maior, ainda que excêntrica. Alvim mostra capacidade em ampliar a complexidade, sem perder o domínio formal, e aprimora seu sistema.

A iluminação, entregue a Domingos Quintiliano, tem nos bastões de lâmpadas fluorescentes que marcaram a estética do Club Noir só uma possibilidade. Luzes do teto desenham retângulos no chão como telas para o corpo de cada ator. De seu lado, a trilha sonora de Vladimir Safatle e o desenho de som de LP Daniel instauram ambiência perturbadora. Criam-se, assim, paisagens sonora e visual desatadas entre si.

PANDEMÔNIO

No texto original, a memória é descrita como ferida, pandemônio. Faz sentido, portanto, que Alvim a faça paisagem de terror sombreada por luzes e sons intensos. A dor da morte de um ente amado é encarnada num estouro sonoro e no pender de uma lâmpada, ou seja, sensorialmente, fora do campo do sentimentalismo. O tom espectral mantém o espectador em desassossego: outro modo de apreensão do mundo (e de reação a ele) se impõe.

Juliana Galdino faz um trabalho à altura do assombro de "Comunicação a uma Academia" (2009), quando deu corpo a um macaco em processo de humanização. Por sua voz deslizam narrativas de homens e mulheres de idades variadas, como quem tivesse uma máquina de criar mundos na garganta. A diferença aqui é que a encenação que a cerca, mais do que naquele trabalho, contribui com imagens simbólicas e enigmáticas desestabilizadoras dos sentidos.

Inéditas na obra de Alvim, figuras decalcadas da iconografia da literatura infantil brasileira evocam a folclorização das matrizes indígena e africana e o preconceito europeu. A mulher indígena e o homem negro do candomblé, assim como as moscas escafandristas com jalecos de hospital, são signos em colagens oníricas, fantasmagóricas, que parecem produto do inconsciente. Vêm completar o diagnóstico de que o risco pode residir tanto na memória quanto no presente do país.

Contra a paralisia que acomete os corpos em tantos espetáculos do Club Noir, "Leite Derramado" coloca as figuras, humanas ou não, em espelhamento, sincronizando coreografias (ainda que minimalistas). O teatro de Alvim sempre se opôs à ideia de cultura, evitando a produção de imagens e fugindo ao senso comum inscrito nos corpos e em seus gestuais, numa recusa crítica ao modo de vida hegemônico e em reação à sensibilidade embotada de nosso tempo.

Aqui, mais uma vez, o diretor faz da síntese do texto uma potência de vastidão. A novidade é que, enfim, ele introduz em seu sistema controlado a teatralidade intensificada dos corpos em movimento, dos objetos e da música.

Uma imagem-enigma encerra o espetáculo, mas a canção "Deus lhe Pague" traz o espectador de volta a Chico Buarque e à ditadura. Para perturbar a percepção, o Club Noir atira-se no abstrato, mas regressa ao concreto de uma sociedade que estrebucha.

LUCIANA ROMAGNOLLI, 33, é jornalista, crítica de teatro e editora do site Horizonte da Cena.


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