Folha de S. Paulo


Um professor de Harvard oferece aula sobre Bob Dylan

O professor de literatura grega e romana antiga Richard F. Thomas, da Universidade Harvard, que costuma ser ironizado gentilmente por seus colegas por dar um seminário sobre Bob Dylan a seus alunos do primeiro ano –e os estudantes saudados com reações de espanto por escolherem o curso–, recebeu o anúncio do mais recente laureado com o Nobel de literatura como reconhecimento tardio. E como razão para festejar com "cupcakes" na aula mais recente, que por um feliz acaso aconteceu na tarde da quinta-feira.

Thomas usa o curso, intitulado simplesmente "Bob Dylan", para situar o artista no contexto não apenas da cultura popular da última metade do século, mas na tradição de poetas clássicos como Virgílio e Homero. O curso acompanha cronologicamente a carreira de Dylan, ouvindo seleções da maioria de suas dezenas e dezenas de álbuns e fazendo a leitura de seu livro de memórias, "Chronicles", que, na descrição de seu curso, Thomas descreve como "uma obra genial, uma extensa canção em prosa de Dylan que se faz passar por autobiografia".

"Uma das coisas mais bacanas é aprender sobre Bob Dylan com um especialista mundial em Virgílio", comentou Ethan McCollister, 18, de East Montpelier, Vermont. "Ambos são poetas, e, mais que isso, ambos são letristas."

Cada aula inclui apresentações de alunos, e na quinta-feira foi a vez de Jake Suddleson ser o primeiro, depois de Thomas ter feito a turma ouvir "Diamonds and Rust", que relata as recordações de Joan Baez sobre seu relacionamento amoroso com Dylan.

Uma discussão sobre a relação complicada entre os dois foi seguida por Suddleson falando sobre "Just Like a Woman". Ele descreveu o mistério que ainda existe em relação à pessoa que teria inspirado a canção –Joan Baez ou, possivelmente, a modelo e herdeira Edie Sedgwick. Ou, como sugeriu Thomas, talvez a canção aluda às duas ou a nenhuma das duas.

Suddleson, 18, de Los Angeles, perguntou a seus colegas se eles achavam a canção misógina, citando o refrão que inclui as palavras "she aches just like a woman/ But she breaks just like a little girl" (ela geme como uma mulher/ mas se magoa como uma menininha).

Ele opinou que as palavras apenas refletem o coração partido do próprio Dylan. Mas Sam Puopolo, 19, de Manhattan, discordou. "Parece que ele está infantilizando a mulher", argumentou.

Thomas levou a discussão de volta a "Diamond and Rust", de Baez. Sugeriu que a canção mostra o dom de Dylan de gerar um clima de incerteza em relação a um tema, lembrando a letra: "Você que é tão bom com as palavras/ e em conservar as coisas vagas".

Mas conservar as coisas vagas não faz parte do trabalho de um acadêmico. Antes da aula, conversamos com Thomas sobre o curso, sobre a atração que Bob Dylan exerce sobre pessoas de várias gerações e sobre até que ponto o mais recente laureado com o Nobel de literatura parece ter mergulhado na literatura grega e romana. Seguem trechos editados do bate-papo.

Você já deu esse curso quatro vezes desde 2004. Qual foi a reação inicial de seus colegas de Harvard?
Num primeiro momento o comitê não quis aceitar o curso, mas acabou se convencendo. O processo foi algo semelhante ao que o comitê do Prêmio Nobel deve ter passado, acabando por perceber o que Dylan realmente representa. Bob Dylan não é simplesmente autor de canções de protesto, não é um simples cantor pop –é um fenômeno que inclui muitos elementos diferentes musicais, literários e outros em sua arte.

Você mencionou que uma estudante foi com seu pai ao Desert Trip, o show do fim de semana passado na Califórnia, também conhecido como "Oldchella" e que teve a participação de Dylan, Rolling Stones, The Who e outros artistas e grupos que estão na casa dos 70 anos. Qual é o significado de Bob Dylan para jovens de 18 anos, como seus alunos?
Obviamente muitos deles ficaram conhecendo Dylan através de seus pais, possivelmente até seus avós. Todas as vezes que dei o curso, houve alguns alunos que o conheciam tão bem quanto eu. Dylan está vivo para eles. Outros o conhecem através de alguma coisa como o filme "Hurricane" [sobre o boxeador Rubin Carter e que inclui a canção "Hurricane", de Bob Dylan]. Ainda outros fazem o curso por curiosidade, para entender a obsessão de seus pais por Dylan.

Estudiosos como Christopher Ricks e Sean Wilentz já disseram muito sobre as referências de Dylan a baladas inglesas, música folk americana, "minstrel shows", blues, a Bíblia. Seu artigo acadêmico "Streets of Rome: The Classical Dylan" analisa um aspecto menos notado das letras do poeta: alusões à literatura grega e romana antiga. Qual é sua impressão sobre a profundidade do conhecimento de Dylan nessa área?
Ele estudou latim no colégio em Hibbing, não sei ao certo quanto. Ele sempre foi um leitor eclético. É por isso, acho, que nos últimos anos ele começou a ler a literatura grega e romana antiga. Comecei a dar o seminário depois de tomar nota de algumas das alusões clássicas, especialmente desde 2001, em canções como "Lonesome Day Blues".

Como você observa, essa canção inclui alusões a "Huckeberry Finn" e um romance japonês sobre gângsteres. Onde estão as referências clássicas?
Há uma estrofe que diz: "I'm gonna spare the defeated - I'm gonna speak to the crowd/ I'm goin' to teach peace to the conquered/I'm gonna tame the proud" ("vou poupar os derrotados -vou falar à multidão/ ... vou ensinar paz aos conquistados/vou subjugar os soberbos"). É uma citação quase direta dos versos falados na "Eneida" pelo fantasma do pai de Enéas, Anquises, que Enéas vê no submundo e que lhe diz, basicamente: "Outras pessoas farão esculturas. Sua arte, a tarefa que lhe incumbe enquanto romano, é 'poupar povos derrotados e subjugar os soberbos'".

E outros poetas latinos e gregos?
O álbum "Modern Times", de 2006, inclui 18 versos dos poemas de Ovídio no exílio. Outras pessoas os haviam notado, mas eu identifiquei alguns adicionais. Há também uma referência à "Odisseia" numa canção de "Tempest" (2012) intitulada "Early Roman Kings". O título revela ser uma referência a uma gangue latina no Bronx nos anos 1960. Mas no final da canção também há uma citação direta da tradução da "Odisseia" feita por Robert Fagles. É inegável.

Existe no mundo clássico algum tipo de analogia com a espécie de figura híbrida de poeta e cantor que é Dylan?
Não realmente. Havia os chamados rapsodos, que cantavam canções de Homero nas festas gregas. Mas eles eram intérpretes, não figuras que criavam as canções.

E o que dizer de Dylan meramente como escritor?
Em sua intertextualidade, ele é como Virgílio e Ovídio: alguém que chegou tarde à tradição e tem tradição suficiente em seu passado –T.S. Eliot escreveu sobre isso– para poder controlar a tradição e também ser parte dela, recriando e revitalizando-a. Não vejo diferença entre Bob Dylan e poetas como Catulo ou Virgílio. Acho que eles estão fazendo as mesmas coisas. Tem a ver com o controle da linguagem, com a ligação de letras e melodias. É isso que torna seu trabalho atemporal. Se eu propusesse um curso sobre a banda Heman's Hermits, ninguém se matricularia.

Você nunca esteve com Bob Dylan pessoalmente. Se isso acontecesse, o que perguntaria a ele?
Seja o que fosse que eu perguntasse, ele não me diria. Dylan toma grande cuidado para controlar o que lhe é perguntado.

Tradução de CLARA ALLAIN


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