Folha de S. Paulo


A meditação subversiva de Lav Diaz

RESUMO O filipino Lav Diaz se notabilizou por filmes de longa duração. A autora sustenta que essa obra imersiva permite ao espectador experimentar o vagar do tempo histórico e, na era da hiperconectividade, desligar-se de fato do mundo exterior. A Mostra de SP, que começa no dia 20, exibe um de seus trabalhos mais recentes.

Bradley Liew/Divulgação
O ator Ronnie Lazaro interpreta o líder de um culto religioso em
O ator Ronnie Lazaro interpreta o líder de um culto religioso em "Canção para Um Doloroso Mistério", filme do diretor filipino Lav Diaz

O filipino Lav Diaz vem sendo notado em festivais de cinema pelo mundo há pouco mais de uma década como realizador de filmes de duração extensa, sempre em preto e branco, a que quase ninguém consegue assistir por inteiro. Ele é responsável por seis curtas-metragens e 16 longas de ficção desde o fim dos anos 1990, além de documentários e obras coletivas.

Os prêmios conquistados recentemente –Veneza, Berlim, Locarno– não alteraram substancialmente, ao menos por enquanto, esse assombro da crítica diante de seu "slow cinema", não raro alvo de blagues. Depois da perplexidade causada por obras monumentais, como "Evolução de uma Família Filipina" (2005), de cerca de 11 horas, o que significa o reconhecimento que Diaz vem recebendo?

Figura de proa do vibrante cinema filipino atual, ao lado de Raya Martin e John Torres, o cineasta se destaca por uma estética que combina poucos cortes, câmera fixa, ausência de close-ups e durações muito além do que seria a de uma sessão convencional. "A Mulher que se Foi" (2016), exibido há pouco no Festival do Rio, tem quase quatro horas; "Canção para um Doloroso Mistério" (2016), programado pela Mostra de São Paulo, totaliza oito. O que tais narrativas têm a propor ao apressado espectador contemporâneo?

Nascido em 1958, Lavrente Indico Diaz cresceu longe da cidade grande e costumava ir ao cinema com seu pai aos fins de semana, não raro em sessões duplas. A nostalgia dessa imersão na sala escura oferece pistas psicanalíticas para entender a estrutura alongada de seus filmes. Mais proveitoso, porém, é pensar o fenômeno Lav Diaz a partir da perspectiva do espectador.

Seus filmes não costumam ter divisões em episódios ou capítulos. Nos raros espaços que os exibem, breves interrupções são feitas a cada duas ou três horas, para que se engulam confeitos e refrigerantes, paliativos para a fome e o cansaço. A dilatação do tempo e o consequente esgotamento do espectador acabam por deixa-lo mais sensível aos infindáveis dramas dos personagens vistos na tela.

Trata-se, além disso, de uma oportunidade de imersão no mundo ficcional raríssima nos tempos atuais, em que é preciso ficar conectado e disponível 24 horas por dia, sete dias por semana.

SURPRESA

Quando Diaz se encontra na cidade em que um de seus filmes está em cartaz, é possível que ele apareça ao final da sessão, talvez movido por uma curiosidade do tipo "quem será que conseguiu ver tudo?". Testemunhei uma dessas situações, anos atrás, quando um dos espectadores "sobreviventes" saiu-se com um "por que seus filmes não respeitam a duração normal?". O cineasta rebateu com outra pergunta –"E onde está escrito qual deve ser a duração de um filme de cinema?"–, lembrando que não se faz arte obedecendo a regras.

Premiado no Festival de Berlim, "Canção para um Doloroso Mistério" se desenvolve, qual uma floresta de caminhos que se bifurcam, numa narrativa dupla, talvez tripla. Há, em primeiro lugar, um filme histórico que narra acontecimentos reais ocorridos durante a Revolução Filipina (1896-98).

A segunda dimensão é uma adaptação livre da obra ficcional de José Rizal (1861-96), autor dos romances "Noli me Tangere" (não me toque, 1886) e "El Filibusterismo" (1891). Um dos pilares da luta pela libertação das Filipinas do jugo espanhol, o escritor aparece inicialmente como personagem da história real.

Vemos, logo de partida, sua condenação à morte e, em seguida, sua execução. A pluma de Rizal é notada ainda nos versos do poema "Mi Último Adiós", de 1896, e na sonoridade dos diálogos, que alternam espanhol, filipino, inglês, mandarim e latim.

Há, finalmente, uma terceira camada, a que podemos chamar de sobrenatural. As aparições fantasmagóricas e surrealistas, como no culto religioso-político que atrai multidões para dentro de uma caverna, podem deixar a plateia confusa. Do entrelaçamento dessa tríade surge um filme povoado por uma dezena de protagonistas e centenas de figurantes. Diversas ações correm em paralelo e, quando se vence a resistência inicial, é um deleite observar o ritmo dos acontecimentos, nem frenético, nem exatamente monótono.

VIGÍLIA

Passadas as horas iniciais, instaura-se no público um modo de atenção peculiar, quase meditativo, entre a concentração e a vigília. Em "Canção", não é entediante, mas desesperadora a busca de Gregoria de Jesus por seu marido desaparecido, Andrés Bonifacio. Um dos fundadores do movimento independentista Katipunan, ele teria sido assassinado por um revolucionário traidor, e seu corpo jamais foi encontrado.

Diaz encena com maestria o percurso de Gregoria, que procura vestígios do marido pela floresta ao longo de 30 dias, revirando folhas, interrogando pedaços de vestimentas caídos entre os arbustos. A expedição caminha para voltar ao lugar de início, num andar em círculos tributário de Beckett. "Ouviu tiros? De onde vinham?", dispara Gregoria a todo interlocutor.

Toda busca no filme de Diaz é inconclusa. A de Gregoria parece antecipar, anacronicamente, a procura pelos desaparecidos de regimes autoritários futuros, e nesse ponto o filme se faz alegoria atemporal e ageográfica, ainda que ancorada na triste história filipina.

Toda a obra do cineasta é, aliás, um denso lamento que abarca o período de ocupação dos EUA (oficialmente terminado em 1946, embora a influência se faça sentir muito depois disso), os tempos de violência e miséria sob o governo Ferdinando Marcos (1965-86), a guerra civil que se seguiu à revolução popular e outras catástrofes.

Diante dos filmes de Diaz, alguns críticos acusam autoindulgência –a narração poderia ser mais econômica. Não deixa de ser verdade, mas a experiência da duração expandida tem muitos sentidos. Um deles é a possibilidade para o espectador de vivenciar de maneira um pouco mais empática a lentidão da passagem do tempo histórico, sobretudo no caso dos acontecimentos que o realizador leva às telas.

Em "Evolução de uma Família Filipina", que celebrizou Diaz, a duração é fundamental para que se desdobre o drama da família Gallardo entre 1971 e 1987, sua luta para sobreviver em meio à pobreza, à chuva, à dureza da lida com a terra e à violência em um período da história filipina que parecia de fato interminável.

Além disso, o que o cinema de Diaz oferece de mais vigoroso ao espectador é a possibilidade de se isolar na caixa preta por um intervalo de quatro, seis, oito horas, às vezes mais. Uma fatia de tempo considerável em que, ao menos em tese, permanecemos distantes das mensagens telefônicas, das redes sociais, do espírito de multitarefas.

Os que não logram essa imersão total e assistem ao acaso a um ou outro trecho vivem algo parecido com o que alguns surrealistas instauraram nos cinemas parisienses de meados do século 20, ao saltarem de sala em sala, entrando em filmes começados e criando, assim, suas próprias montagens mentais. Nos tempos atuais de capitalismo tardio e fim do sono, para retomar a expressão de Jonathan Crary em seu livro "24/7" (Cosac Naify), os filmes quilométricos de Diaz são extremamente subversivos.

A frontalidade dos enquadramentos lembra o cinema dos irmãos Lumière, e os excessos melodramáticos dialogam com a tradição filipina. A prenda para os resistentes são as belas sequências em que o cínico Simoun e o idealista Isagani, saídos das páginas de Rizal, dialogam sobre a inutilidade da arte durante a guerra e sobre o valor da vida. Ou os planos finais, que enquadram um Simoun acamado numa choupana e um Isagani atormentado sobre o penhasco.

Quando o fogo toma conta da casa de palha, a citação cinéfila à última cena d'"O Sacrifício" de Tarkóvski deixa claro que a ambição cinematográfica de Diaz tem o tamanho de seus filmes.

LÚCIA MONTEIRO, 38, é doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle e pela USP, onde faz pesquisa sobre cinemas nacionais periféricos.


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