Folha de S. Paulo


O legado humanista do polonês Andrzej Wajda

RESUMO Farol do cinema de autor, Wajda morreu em 9/10 deixando filmografia em que perscruta fantasmas de guerra e a deriva do projeto comunista a partir de sua Polônia natal. Em entrevista dada à Folha pouco antes de sua morte, ele fala sobre censura, influências e a pertinência de filmes políticos nos dias de hoje.

Kacper Pempel - 13.ago.2013/Reuters
Andrzej Wajda diante do cartaz de seu filme
Andrzej Wajda diante do cartaz de seu filme "Walesa", em Varsóvia

Andrzej Wajda, morto na semana passada aos 90 anos, não foi só o maior e o mais prolífico cineasta polonês, foi também o mais reverenciado. Em Varsóvia, onde ele viveu por décadas, seus fãs têm compartilhado listas de lugares da cidade a ele associados e acendido velas em sua memória. As redes sociais polonesas explodiram em manifestações de pesar pelo "pai" do cinema nacional.

"Minhas Aventuras com a História" foi o título que Wajda deu a seu discurso ao receber o título de doutor "honoris causa" da Universidade Americana, em Washington, em 1981. As adversidades da história da Polônia fizeram dele o tão necessário porta-voz dos sofrimentos da sua nação durante a guerra e da opressão sofrida durante o regime comunista.

Por essa razão, a Mostra de São Paulo decidiu homenageá-lo. A ele será concedido postumamente o Prêmio Humanidade, reservado a cineastas cujo trabalho contempla temas políticos e sociais.

O festival também abrigará uma retrospectiva com 17 títulos rodados pelo diretor, que, ao longo de 66 anos, assinou mais de 35 longas-metragens –labor que lhe rendeu uma Palma de Ouro em Cannes e prêmios pelo conjunto da obra em Veneza e Berlim, além de um Oscar.

Nascido em 1926, ele tinha 13 anos quando a guerra eclodiu. Jovem demais para se alistar, trabalhou como mensageiro para o Exército Voluntário. Seu pai, um oficial, foi preso pelos soviéticos e morto no massacre de Katyn, um dos mais bem guardados segredos do conflito. Só em 1989 se soube que o genocídio havia sido cometido pelos soviéticos, e não pelos alemães.

Wajda usou a dor pessoal para alimentar sua convicção artística. Primeiro, aproveitou o degelo político após a morte de Stálin, em 1953. "Geração" (1955) e, especialmente, "Kanal" (1957) não teriam sido feitos sem o abrandamento da censura. O segundo filme retrata as lutas do Exército Voluntário polonês, cujos soldados se alinharam ao governo exilado em Londres depois da guerra. Por causa disso, foram torturados e mortos pelo serviço secreto stalinista e pelos comunistas poloneses.

No início da década de 1950, o regime negava a esses soldados o seu lugar na história nacional e proibiu menções ao sacrifício deles na Revolta de Varsóvia. Ao ressuscitar essa peleja, o diretor deu à Polônia sua primeira "catarse" histórica.

Seu cinema se alinhou fortemente à busca polonesa por liberdade política. A trilogia que o notabilizou, formada por "O Homem de Mármore" (1977), "O Homem de Ferro" (1981) e "Walesa" (2013), desenha um arco de ascensão e queda do comunismo, arrematado pela chegada do líder sindical Lech Walesa à presidência, em 1990.

CENSURA

Wajda não raro teve de se haver com censores. O roteiro de "O Homem de Mármore" data de 1962, mas foi repetidamente rejeitado. A autorização para as filmagens veio apenas em 1976, mas o regime não se deu por satisfeito: impôs cortes severos à montagem inicial e limitou a exibição da fita a uma sala, em Varsóvia.

O boicote saiu pela culatra. Os poloneses se identificaram com o protagonista, Mateusz Birkut, que na trama fora usado pela propaganda do regime como efígie do operário exemplar. A inocência e a bondade traídas do Birkut ficcional espelhavam a desilusão das plateias com o projeto comunista.

Igualmente importante no quesito acerto de contas histórico foi "O Homem de Ferro", que lançava mão de imagens de arquivo para lembrar a violenta contenda entre trabalhadores e policiais nos estaleiros de Gdansk, em 1970. Pelo trabalho, Wajda recebeu a Palma de Ouro em Cannes.

A crítica especializada francesa exaltou ao menos desde "Kanal" o apuro estético do polonês. Já a imprensa anglófona saudava a urgência social de suas fitas, mas torcia o nariz para o simbolismo que as estruturava –tido por uma ala como grosseiro. A adaptação dele para a novela épica "Terra Prometida", do ganhador do Nobel Wladyslaw Reymont (1867-1925), chegou a ser vista nos EUA como antissemita.

Estilisticamente, Wajda explorou veredas diversificadas. "Kanal", por exemplo, sinaliza o apreço dele pelo neorrealismo italiano mas também faz acenos ao expressionismo alemão –e até aos pesadelos surrealistas de Luis Buñuel. Aliás, nas palavras do polonês, foi o colega espanhol (e seu repertório de closes e jogos com claro-escuro) que lhe mostrou a potência artística do cinema.

Outro que serviu de farol foi Orson Welles; o trabalho sobre a profundidade de campo em "Cinzas e Diamantes" (1958) remete ao célebre "Cidadão Kane" (1941) do americano. Em maior ou menor medida, as criações de Akira Kurosawa, Federico Fellini e Michelangelo Antonioni também ecoaram na visão de cinema de Wajda.

Sua longa filmografia dá a ver tanto um senso estético apurado (para o qual os estudos de pintura na Academia de Artes de Cracóvia certamente contribuíram) quanto um pendor pelo absurdo. Esse último talvez atinja o paroxismo no alucinatório "O Casamento" (1973), que registra uma festa de casamento assombrada por fantasmas. Se a peça romântica homônima de Stanislaw Wyspianski retrata o ocaso do feudalismo, Wajda a despe da inscrição precisa, preferindo uma reflexão sobre o processo histórico de maneira mais ampla.

O mesmo aconteceria em "Danton "" O Processo da Revolução" (1983), rodado na França após a lei marcial ter sido decretada na Polônia, em 1981 –fato que estimulou o diretor e vários colegas, como Agnieszka Holland, a buscar trabalho além-fronteira. "Danton" é ainda hoje um dos grandes filmes sobre as ambições, esperanças e armadilhas de revoluções populares.

Longa com que Wajda assinaria sua despedida, "Afterimage" marca um retorno a um de seus temas-fetiche: o herói inconformado. Aqui, trata-se de Wladyslaw Strzeminski, artista polonês de vanguarda perseguido pelo regime comunista. O trabalho representa o país na disputa por uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro do Oscar 2017.

Leia abaixo a entrevista dada pelo diretor à Folha por e-mail, dias antes de morrer.

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Folha - Não haveria escola polonesa de cinema sem a Segunda Guerra (1939-45). Como sobrevivente do conflito, o sr. se tornou a "voz dos mortos". Que responsabilidade moral sentiu ao fazer filmes como "Kanal" ou "Cinzas e Diamantes"?

Mesmo vivendo na Polônia comunista sob severa censura, tínhamos certa vantagem –conhecíamos a guerra por experiência própria. Assim, a propaganda do regime, que muitas vezes distorcia a verdade sobre a guerra para servir a seus próprios fins, não conseguia manipular nossa visão sobre ela. Queríamos ser lembrados como aqueles que lutaram no Exército ao lado de nossos aliados por uma Polônia diferente. Naquela época, o Exército polonês era a quarta maior força na Frente Ocidental.

Depois de "Kanal", o sr. rodou vários filmes adaptados de livros, como "O Casamento" e "Terra Prometida". De onde vem o seu fascínio pelos clássicos da literatura?

É simples. Durante o tempo da censura política, os clássicos, especialmente os mais antigos, nos ajudaram a escapar dos censores. Eles nos deram a oportunidade de nos comunicar com o nosso público, que sabia ler nas entrelinhas e decifrar as metáforas cheias de significado oculto.

O seu estilo neorrealista colocou o cinema polonês no mapa. Mas quando você fez "Os Inocentes Charmosos" (1960) e "Tudo à Venda" (1969), a época e o estilo haviam mudado drasticamente.

O meu realismo foi inspirado no neorrealismo italiano. Mas o novo espírito do cinema [na década de 1960] era o de expressar as forças que inspiraram as nouvelles vagues no Ocidente –como o jazz nos Estados Unidos ou os novos comportamentos sociais e modas que observamos ao nosso redor. Era uma imagem que refletia a nossa liberdade interior.

Depois vieram seus filmes políticos, como "O Homem de Mármore", que o regime não aprovou por um longo tempo. Qual era o receio?

O Partido Unificado dos Trabalhadores da Polônia (PZPR) governou em nome do povo e esperava que todos vivessem de acordo com sua agenda. Mas em meu filme, pela primeira vez, um trabalhador reivindica e defende seus próprios direitos. Isso era o que o regime mais temia, e a razão por ter retido meu roteiro por anos, impedindo a filmagem. É claro que, mais tarde [em 1980], o sindicato independente Solidariedade nasceu sob o mesmo sentimento de protesto.

O sr. continuou a abordar a opressão política e social em "Sem Anestesia" (1978), que se tornou parte do chamado "cinema da ansiedade moral", movimento a que também se filiariam Krzysztof Zanussi, Kie?lowski e Agnieszka Holland. O que estava por trás da força desse grupo?

O nome surgiu de um grupo de jovens cineastas dos quais eu era mentor naquela época. De certa forma, eles estavam mais conscientes da situação do nosso país do que eu. Eles discordavam do que viam acontecer à sua volta e queriam expressar isso em filmes. Ao rodar "Sem Anestesia", a partir de um roteiro fantástico de Agnieszka, eu estava apenas seguindo os passos daqueles jovens.

"O Homem de Ferro" foi o seu único filme comissionado. Que riscos assumiu nessa empreitada?

É verdade. Fiz "O Homem de Ferro" em 1980 a pedido de um dos trabalhadores do estaleiro de Gdansk, que havia me levado às reuniões do comitê de greve. Ele me disse: "Por que você não faz um filme sobre nós?". "Que tipo de filme?", perguntei. "'Homem de Ferro'", disse ele. Meu principal desafio era rodar antes de a Polícia Militar, designada para "pacificar" o sindicato Solidariedade, tomar o estaleiro. Consegui. E graças à intervenção de pessoas influentes da indústria do cinema polonês recebi permissão para exibir o filme em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro.

O sr. sempre salientou a preocupação em usar seus filmes para falar do presente, mesmo quando se trata de obras históricas. Em tempos de democracia, acredita que o público perdeu o apetite por dramas políticos?

O apetite pelo cinema político cresce sempre que há uma grande busca pela verdade e uma necessidade de protestar ou de expressar descontentamento. Sem dúvida, a nossa realidade sociopolítica em breve deve provar se estamos, mais uma vez, diante de um momento como esse.

Além de seus filmes, o sr. deixa outro legado: a Andrzej Wajda Master Film School, fundada em Varsóvia, em 2001. Que lição espera passar a jovens diretores com seus filmes?

Espero que aprendam que sobrevivemos a tempos muito piores do que o que vivemos atualmente. Quanto ao resto, eles devem extrair lições do mundo ao seu redor. Não existe outra maneira; precisam aprender a fazer filmes sobre si mesmos, dirigidos a seus contemporâneos.

ELA BITTENCOURT, 41, polonesa radicada no Brasil, é crítica e curadora, responsável pela seleção do Foco Polônia na Mostra de São Paulo, que exibe cópia restaurada do "Decálogo" de Kieslowski.


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