Folha de S. Paulo


As memórias do jardim de Tunga

Rio de Janeiro, 2003

Estou estirado numa rede, bem perto de mim um pé de jambo sacia símios e jacus, psitacídeos escandalosos discutem entre si em sua língua não original, invariavelmente sucedem cientistas, que aos pares e em trajes simétricos coletam culicídeos, capturam coleópteros. Lagartos meio verdes, meio castanhos caçam e são caçados, desaparecem ora nas tenras folhas, ora nas secas ao meu redor. Não as vejo, mas imagino serpentes trançadas a cipós.

Não, não estou em seu jardim, sob a sombra da gávea pedra, onde, sobre as flores rosas do jambo espalhadas pelo chão, conheci-o e súbito me contaminei. A rede se estende em latitudes mais baixas e, no entanto, me sinto ali, no seu mundo.

No segundo encontro, após o trabalho (fui seu assistente de 2003 a 2005), nos reunimos para jantar no mesmo jardim da estrada do Sorimã. A agradável conversa em certo ponto chegou a Guignard, artista pelo qual por distintas, porém familiares razões ambos cultivávamos admiração. Disse-lhe o que pensava: que a paisagem ali nada tinha de mineira, era obviamente a paisagem da Serra dos Órgãos, fundo sobre o qual o artista superpôs Minas e orientes. Ele me respondeu que deveria escrever a teoria. Cá está, um tanto em atraso. Desde então, selou-se uma amizade, calei-me quase sempre e passei a escutá-lo.

Manon Lutanie/acervo pessoal
Thiago Rocha Pitta e Tunga no Rio de Janeiro em 2004
Thiago Rocha Pitta e Tunga no Rio de Janeiro em 2004

Nos meses seguintes, sucederam-se dias venusianos; décadas se passaram velozmente em dois anos. Escutei, envelheci, apreendi muito, até que me afastei, não sem antes reforçar o laço que nos ligava.

Tunga se foi –e com ele sua voz e seu discurso contundente, crítico, sedutor e brilhante. Por suas posições claras e aterradoras colecionou admiradores mas também inimigos (muitos dos quais de modo oportunista e hipócrita agora o reverenciam). Seu mundo, apesar de sua partida, permanece quiçá ainda mais forte pelo contraste da sua ausência. Mas sua voz se foi, deixando um vazio crítico.

Astuto e corajoso, sempre enfrentou com as armas que tinha a submissão inutilmente imposta por forças exteriores ao ímpeto original da criação e pleiteou um espaço de liberdade, utópico (porém o único possível) para realização radical de suas propostas artísticas.

Celebremos sua obra, seu mundo generosamente legado, mas não deixemos de ecoar sua contundência crítica e de lutar por um espaço de liberdade num cenário altamente domesticado, em que a arte não é mais determinada pelos artistas, mas pela opinião daqueles que julgam o que ela é.

Devolver ao artista a liberdade perversamente amputada: uma tarefa talvez para poucos –para menos ainda depois de sua morte.

Nota: A mostra "Pálpebras", que Tunga deixou pronta antes de sua morte, em junho deste ano, será aberta na galeria Millan, em São Paulo, no sábado (15), às 12h, e segue em cartaz até 12/11.

THIAGO ROCHA PITTA, 36, é artista plástico.


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