Folha de S. Paulo


Métricas para o presidencialismo multipartidário

RESUMO Autores estabelecem métricas para aferir a complexa gestão do presidencialismo multipartidário de coalizão no Brasil. A proximidade entre as opções ideológicas do Executivo e a mediana do Congresso favorece uma gestão "normal", mais pragmática e afinada, diferentemente do que se viu no governo do PT.

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Normal é tudo aquilo que se comporta conforme a norma ou a regra. O que serve de modelo. O regular. O habitual. O ordinário. O que não sofre perturbações. Mais especificamente, normal seria o valor mais representativo ou o padrão mais comum de um determinado fenômeno.

O que seria então a normalidade quando se governa em coalizão, especialmente em presidencialismos multipartidários?

É normal montar governos com parceiros que partilhem minimamente princípios comuns. A diversidade ideológica entre parceiros interfere diretamente na construção de uma agenda mínima de políticas que os unifique. Além do mais, quanto maior o número de partidos na coalizão, maiores serão os custos de coordenação. Entretanto, a regra de ouro da gerência de coalizões, não apenas em regimes presidencialistas, é o compartilhamento proporcional de poder e de recursos, levando-se em consideração o peso político de cada parceiro no Legislativo.

Assim, coalizões amplas, com maior diversidade ideológica e concentração desproporcional de poder e recursos em apenas um de seus membros, seriam mais difíceis de serem coordenadas. Por conta das dificuldades gerenciais, tendem a ser mais custosas. A manutenção de uma gerência de coalizão fora da normalidade por longo período de tempo se traduz em menor produção de políticas e maior propensão a sucessivas derrotas do Executivo no Congresso.

Por outro lado, quando se gerencia coalizões em presidencialismo multipartidário seguindo os parâmetros de normalidade, é esperado maior sucesso do presidente no Legislativo, bem como menores custos de governabilidade.

DIAGNÓSTICOS

Há vários diagnósticos para a profunda crise política que assolou o Brasil após a reeleição da presidente Dilma Rousseff em 2014. Uma possibilidade é que o natural processo evolutivo do jogo político tenha produzido, como resultado mecânico das atuais regras eleitorais, crescimento contínuo da fragmentação partidária, o que acabou por inviabilizar a governabilidade. Pode-se argumentar, por exemplo, que os partidos pequenos de centro, dadas essas regras, conseguem extrair maior benefício marginal de sua participação na coalizão ao se subdividirem em legendas menores.

Adicionalmente, o comportamento estratégico do PT, atuando para criar "pequenos PMDBs" e esvaziar o original, intensificou a tendência à fragmentação crescente que resulta das regras. Por fim, medidas como as do STF que restringiram a migração partidária acabaram por surtir efeito contrário ao desejado. Agravaram a tendência de aumento continuado da fragmentação pela simples passagem do tempo, fruto da dinâmica natural das instituições.

Outra possibilidade é que a crise resulte de desenho institucional deficiente do financiamento eleitoral, associado à debilidade dos mecanismos de controle das licitações e contratações nas empresas estatais. Ou seja, da mesma forma que a criação da Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666), resultado do escândalo do Orçamento em 1993, minorou o problema no âmbito da administração direta, seriam necessárias medidas equivalentes no âmbito das estatais –os economistas, administradores e juristas precisam pensar no assunto.

Uma terceira visão, defendida neste artigo, é a de que as escolhas de estratégias de gestão da coalizão e, de forma mais geral, da política de coalizão pelo chefe do Executivo, são centrais para explicar a atual crise política. Evidentemente, as três histórias não são mutuamente excludentes. É perfeitamente possível que uma combinação das três, com pesos maiores ou menores para cada uma, explique melhor os fatos.

A ascensão do PT ao Planalto produziu um modelo de gestão de coalizão muito peculiar, isto é, fora do normal. Caracterizou-se por grande número de parceiros ideologicamente heterogêneos, pela concentração de poder e de recursos no partido hegemônico e pela má distribuição de poder dentro da coalizão.

Tome-se, por exemplo, a média do número efetivo de partidos no Congresso, medida que revela o quão concentrado ou fragmentado é o poder no Legislativo e que é calculada a partir da razão entre o número de partidos existentes e o número de cadeiras conquistadas por cada partido no Congresso. É verdade que essa média alcançou inigualáveis 13 partidos durante o interino Temer, tendo sido de 11 sob Dilma, 9 sob Lula, 7 sob FHC, 8 sob Collor/Itamar e 5 sob Sarney. Uma trajetória ascendente e praticamente contínua.

No entanto, quando olhamos as transições de governo, notam-se mudanças na gestão de coalizão sem que tenha havido alteração apreciável na fragmentação. Por exemplo, de julho de 2002 a outubro de 2003, a despeito do turbulento processo eleitoral de 2002, não houve alteração significativa na fragmentação, que girou em torno de 7,7 partidos.

O mesmo ocorre na transição Dilma-Temer ao longo de 2015/2016, esta sem processo eleitoral, na qual o número efetivo de partidos se manteve em torno de 13,4. O aumento da fragmentação partidária não pode, portanto, ser responsabilizado pelas escolhas de gestão da presidência: se a fragmentação não se alterou perceptivelmente durante as transições, o mesmo não se pode dizer das variáveis de gerência da coalizão.

Por variáveis de gerência da coalizão entendemos as escolhas do Executivo relativas ao desenho da coalizão partidária –o número de partidos que a constituirão e a similaridade ou a diferença de preferências entre parceiros. Inclui-se aí também a forma de compartilhar poder e recursos com esses aliados. Essas escolhas podem ou não gerar uma coalizão que espelhe a preferência mediana do plenário do Congresso.

O padrão de gestão fora da normalidade parece ser uma resposta do PT à difícil tarefa de chefiar o Executivo no presidencialismo multipartidário, diante de forte desalinhamento de preferências entre o presidente e o Congresso Nacional. Essa configuração aumenta o risco de ocorrência do que estamos definindo como governo dividido em presidencialismos multipartidários. Um fenômeno que pode estar presente mesmo quando numericamente a coalizão do presidente desfruta de folgada maioria no Legislativo –e que precisa ser traduzido para o nosso contexto institucional.

Governo dividido em contexto de presidencialismo bipartidário, como é o caso nos Estados Unidos, existe quando o partido do chefe do Executivo não tem maioria em uma das casas do Congresso. No parlamentarismo multipartidário, que é o padrão na maior parte da Europa, governo minoritário ocorre quando a coalizão governista fica aquém da maioria das cadeiras no Parlamento.

Argumentamos que, em presidencialismos multipartidários como o que caracteriza o Brasil, configura-se um governo dividido quando a distância ideológica entre a mediana da coalizão governamental e a mediana do Congresso é elevada; ou seja, quando as alianças que sustentam o Executivo e o Congresso têm preferências políticas muito diferentes.

Essa situação tende a ocorrer, como afirmamos anteriormente, quando o governo é potencialmente cindido; isto é, quando o partido do chefe do Executivo for de esquerda, mas a mediana do Congresso for mais inclinada à direita, e vice-versa. Entretanto, governos potencialmente cindidos não precisam ser necessariamente divididos. É possível que o presidente, ao antever as dificuldades de gestão do presidencialismo multipartidário, construa uma coalizão de governo mais próxima daquela que caracteriza o Legislativo. Para tal, é necessário, por óbvio, abrir mão de certo protagonismo ou priorizar agendas que podem destoar daquelas propostas em campanha.

O Executivo tem duas estratégias fundamentais para administrar o presidencialismo de coalizão. Pode compartilhar poder de fato e atuar no "atacado" ou então gerir no "varejo", por meio, por exemplo, da execução de emendas de autoria dos parlamentares em troca da aprovação de projetos específicos.

Há evidências de que as duas estratégias –atacado e varejo, também chamados de benefícios coletivos e benefícios privados– são substitutas, e não complementares. Quem utiliza muito de uma estratégia precisa menos da outra. Teoricamente, a estratégia ótima para o Executivo seria transferir poder para aliados ideologicamente próximos e recursos de varejo para os mais distantes.

CONCESSÕES

Compartilhar poder implica um conjunto grande de ações, algumas delas nem sempre passíveis de serem precisamente quantificadas. O primeiro passo é a construção de uma coalizão baseada na negociação de programa de governo e plataforma de políticas públicas que sirvam como base mínima de ação política.

Naturalmente, é necessário haver concessões de ambos os lados para cimentar as ações da coalizão. Por exemplo, o PSDB no governo FHC era muito menos liberal do que o antigo PFL. Várias das agendas de liberalização dos mercados do governo FHC foram concessões ao PFL. Elas representavam melhor a preferência do aliado do que a preferência do próprio partido do presidente.

Já um exemplo recente de má gerência da coalizão foi a tramitação na Câmara, durante o primeiro semestre de 2015, do projeto de lei que regulamenta a terceirização no mercado de trabalho. Vários partidos da base da presidente Dilma apoiavam o projeto. O partido da presidente, porém, era contrário. O PT fez dura campanha contra os deputados que apoiavam o projeto, o que envenenou a unidade da base e dificultou em muito a tramitação das medidas de ajuste fiscal do ministro Joaquim Levy em um momento posterior.

Decorrência natural do compartilhamento de poder e da construção de uma pauta comum à coalizão é distribuir cargos e ministérios de forma mais proporcional ao peso relativo de cada partido da base no Legislativo. Outra consequência lógica é o menor protagonismo do partido do presidente no gabinete.

Um bom teste para avaliar as alterações que ocorreram na gestão política nos últimos anos é observar a evolução de alguns indicadores na passagem de 2002 para 2003. O indicador de heterogeneidade ideológica da coalizão, que mede o grau de incongruência de preferências entre os membros da coalizão presidencial por meio de "surveys" com os próprios legisladores, salta de 22 para 67.

É verdade que no final do governo FHC, em razão da saída do PMDB, o marcador assinalava valores bastante baixos. No entanto, o máximo atingido ao longo dos oito anos de FHC foi de 55.

Outra métrica que deve ser examinada é o índice de coalescência do gabinete, que mensura o quão proporcional é a cota de ministérios dos partidos pertencentes à coalizão presidencial relativamente ao número de cadeiras ocupadas por cada um dos partidos parceiros na aliança. O índice marca 100 se houver proporcionalidade perfeita entre a distribuição de ministérios e o peso de cada partido na base, e zero no caso oposto. Esse indicador caiu de 61 para 49 entre o fim da administração do PSDB e o início da do PT.

O resultado de coalizões muito heterogêneas e com menor compartilhamento do governo é um custo maior de governabilidade, em especial por causa do uso do "varejão" como estratégia prevalente de negociação. Apesar de o governo FHC ter aprovado número maior de emendas constitucionais por ano de governo, 4,75 ante 2 de Lula e um número ainda menor de Dilma, liberou menos recursos para emendas parlamentares. Tomando o valor destas emendas como proporção do PIB como primeira aproximação do custo de governabilidade, o dispêndio na era FHC ficou em torno de 0,15% por ano, bem menor que os 0,56% por ano da era Lula.

Uma métrica mais elaborada é o Índice de Custo do Governo (ICG), criado por Pereira e Bertholini (coautores deste artigo, 2016), que contabiliza as seguintes variáveis: tamanho do governo, medido pelo número de ministérios; valor em reais das emendas executadas de autoria dos parlamentares pertencentes aos partidos da coalizão; e gastos totais dos ministérios alocados a legendas aliadas.

O índice, que varia de 0 a 100, atingiu os valores médios de 14 e 38, respectivamente, no primeiro e no segundo mandatos de Fernando Henrique. Saltou para o patamar de 63 e 69, respectivamente, no primeiro e no segundo governos de Lula. A média para o período Dilma, por sua vez, é de cerca de 75 (os dados vão até 2013).

Além de aumentar o custo de governabilidade, as escolhas de gestão petistas acabaram por agravar o problema da fragmentação partidária.

O índice de necessidade de coalizão –obtido pela multiplicação do tamanho relativo do partido do presidente no Congresso pelo número efetivo de partidos– não sobe nos oito anos do governo FHC. Tanto no início da gestão quanto no fim, o indicador aponta 62. Ao longo do governo PSDB, caiu um pouco, com o aumento da bancada tucana no Congresso durante os primeiros quatro anos; no segundo mandato, cresceu pelo motivo oposto. Sob a égide petista, porém, ele sobe sempre. Parte de 67 e termina 2010 em 85. No período Dilma, o indicador explode, atingindo 132.

É implausível considerar que essa tendência em nada foi condicionada pelas escolhas de gestão. Claramente, a decisão de tentar construir "pequenos PMDBs" (como Pros, PSD, PRB etc.), em vez de negociar melhor e compartilhar proporcionalmente mais poderes e recursos com o PMDB original, explica parcela considerável da deterioração. Ou seja, em lugar da crença recorrente de que a necessidade de construir coalizão mais ampla gera pior gestão, é muito mais razoável imaginar que a má gerência da coalizão determina condições ainda mais difíceis para governar naquilo que se refere à fragmentação.

Ao longo dos oito anos do governo FHC, o Executivo nunca perdeu uma eleição para a Presidência da Câmara. Na gestão petista, houve duas derrotas, sendo que a segunda alçou à Presidência da Casa um inimigo implacável, deixando o partido da presidente vulnerável e integralmente fora da composição da Mesa Diretora.

É difícil conceber que esses reveses não estejam associados às escolhas de gestão do próprio PT.

TEMER

Com o advento do governo Temer, observamos uma mudança radical no padrão de gestão de coalizão. A despeito da altíssima fragmentação partidária (13,4 partidos efetivos, como apontamos acima) e da consequente necessidade de se montar uma coalizão com grande número de legendas, Temer foi capaz de construir a coalizão ideologicamente mais homogênea desde a transição para a democracia dos anos 1980.

É também a coalizão mais proporcional entre todos os presidentes brasileiros e a que menos concentrou poder no próprio partido do presidente. Além do mais, a preferência mediana de sua coalizão é muito mais próxima da mediana da coalizão do Congresso do que na era petista. Se esse padrão inicial do governo Temer de gerência de coalizão (definitivamente mais próximo da norma) se mostrar sustentável ao longo do tempo, é de se esperar menor custo de governabilidade. Além disso, menor necessidade de negociações no varejo e maior sucesso no que toca aos interesses do Executivo no Congresso, mesmo diante de uma agenda carregada de reformas constitucionais. Entretanto, é importante salientar que, diante do intuito do governo Temer de realizar ajustes hercúleos e reformas estruturais profundas, uma boa gerência de coalizão não é necessariamente sinônimo de escolhas de políticas adequadas.

Boa gerência de coalizão significa construir um ambiente propício para que o presidente encontre menor resistência no Legislativo e incorra em menores custos de governabilidade. Mesmo decisões absolutamente corretas sobre políticas públicas e reformas estruturais a serem implementadas encontrariam dificuldades maiores e altos custos de governabilidade diante de uma má gerência da coalizão.

Logo, a normalidade da gerência de coalizão, com a escolha de parceiros que minimamente compartilhem preferências de políticas e com poderes e recursos alocados proporcionalmente à dimensão dos aliados, pode ocorrer mesmo diante de alta fragmentação partidária. O "normal" em governos de coalizão também pode se verificar em governos potencialmente cindidos, desde que o presidente entenda que a preferência mediana da coalizão precisa ser congruente com a do Congresso.

A experiência do PT na chefia do Executivo nacional e toda a crise política dos últimos anos sugerem que a estratégia de adotar atalhos para gerir um governo potencialmente dividido não funcionou.

Ao longo do tempo, apenas gerou maiores custos –para o país e para o próprio partido– do que os que seriam oriundos da decisão de aceitar as diferenças e trabalhar com a realidade da política.

A "realpolitik" no Brasil é definida pela ideologia mediana do Congresso Nacional, e não pela ideologia do partido do chefe do Executivo. Ou seja, ter um Executivo constitucionalmente forte e politicamente poderoso não é garantia de que a preferência ou ideologia do partido do presidente prevaleça.

O impeachment do segundo chefe do Executivo de um total de quatro eleitos desde a redemocratização sugere fortemente que um comportamento congruente do chefe do Executivo com a preferência mediana do Congresso é fundamental para o funcionamento "normal" do presidencialismo multipartidário.

CARLOS PEREIRA, 52, doutor em ciência política pela New School University (Nova York), é professor da FGV-Rio.

FREDERICO BERTHOLINI, 35, doutor em administração pela FGV, é pesquisador associado do IPGLab/FGV.

SAMUEL PESSÔA, 53, colunista da Folha, é formado em física e doutor em economia pela USP e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

EMMANUEL NASSAR, 67, é artista plástico e ilustra esta edição.


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