Folha de S. Paulo


A violência eleitoral e o crime que vai às urnas

RESUMO O texto aborda a presença crescente do crime organizado no processo eleitoral e na tentativa de ocupar postos no Estado. Um dos temas das eleições municipais, a violência conecta-se com um sentimento difuso de "pôr fim à bagunça" e explicita o fortalecimento de um novo coronelismo que coage o eleitor em prol do crime.

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O saldo do primeiro turno das eleições municipais de 2016 tem sido realçado por muitos analistas a partir da inédita derrocada do Partido dos Trabalhadores e/ou em função do êxito da ideologia da antipolítica enquanto estratégia eleitoral.

Sem dúvida, os dois fenômenos merecem reflexão, e o segundo em especial diz muito sobre o tempo presente, que parece operar um forte deslocamento ideológico do pensamento médio brasileiro em direção a posições políticas conservadoras e reivindicatórias de uma concepção de ordem pública que explora o medo e não oferece uma teoria de mudança que vá além de mais do mesmo.

Não à toa, notadamente na disputa de vagas nas câmaras municipais, porta-vozes dessas posições tiveram votações expressivas e ficaram entre os mais bem colocados em várias cidades do país, com destaque para os candidatos Conte Lopes (PP), em São Paulo, e Carlos Bolsonaro (PSC), no Rio de Janeiro –nesse último caso, fortalecendo o clã familiar.

Há um sentimento difuso e generalizado de que é preciso "pôr fim à bagunça", seja lá o que isso de fato signifique no plano da realidade. O medo e a vontade de vingança assumem o protagonismo.

Mas, para além desse deslocamento ideológico, que por sinal supera nossas fronteiras e se manifesta também na aprovação da saída da Inglaterra da União Europeia, na adesão de parcela significativa do eleitorado dos EUA às bandeiras de Donald Trump e na rejeição do acordo de paz na Colômbia, a violência mais uma vez mostrou sua face durante as eleições e nos lembra de que ela é um dos nossos maiores e mais persistentes dilemas civilizatórios. Para se ter uma ideia desse quadro, apenas nos últimos quatro meses, 28 políticos foram assassinados no Brasil.

Os números podem parecer pequenos frente aos quase 60 mil assassinatos anuais registrados no Brasil (segundo dados do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública relativos a 2014), mas eles dão pistas do quanto a violência é permeada por indícios do fortalecimento de facções criminosas e de milícias que, aos poucos, foram substituindo os coronéis da nossa história na função de controle territorial e moral de parcelas crescentes da população brasileira.

Talvez como fruto da nossa modernização às avessas, que não avançou no monopólio do uso legítimo da força por parte do Estado, os casos ocorridos nesta campanha de 2016 nada mais sejam do que a tradução de um novo patamar na forma de organização do crime no país.

Se antes os donos dos morros e favelas, os banqueiros do jogo do bicho ou os coronéis do sertão davam bênçãos aos candidatos para que eles pudessem pedir votos nos locais por eles controlados, agora há relatos de milicianos e traficantes de armas e drogas sendo eleitos. Eliminaram-se os intermediários. Para conquistar tais cargos, não há problemas em também eliminarem-se os adversários. A lógica não é a dinâmica democrática, mas a colonização do Estado.

Colonização que está na origem do que hoje podemos compreender como eixo estruturador das modernas organizações criminosas, na medida em que visa, basicamente, a facilitar a corrupção, a lavar dinheiro e a obter influência política e social. Por essa razão, a novidade não é o recurso à violência durante as eleições, que não pode ser minimizada e precisa ser vigorosamente investigada e enfrentada. A novidade é que o crime organizado em torno do tráfico de armas e de drogas trouxe novos atores para a cena política e perdeu o pudor de mostrar força e reivindicar publicamente legitimidade para o controle que faz de territórios e populações.

Historicamente, o crime organizado não sobrevive sem vínculos com o Estado e exige investimentos em lideranças políticas capazes de ocupar espaços e garantir seus interesses. Não há Estado paralelo; há Estado compartilhado, dificultando em muito a construção plena da cidadania e a garantia de direitos civis e políticos.

De acordo com o cientista político Guaracy Mingardi, um dos mais renomados estudiosos da matéria no país, o crime organizado pressupõe, necessariamente, a existência de estruturas hierárquicas, a previsão de lucros, o planejamento de ações, a divisão do trabalho e, especialmente, a dependência de vínculos dessas atividades com o Estado. Por essas características, a grande maioria dos atentados políticos registrados durante as eleições só ocorreu, muito provavelmente, com a anuência e com o consentimento dos líderes do crime.

AMEAÇA

Na prática, regressamos ao período entre o século 18 e o início do 19, que se caracterizava pela falta de liberdade dos eleitores e pela possibilidade constante de uso da violência para determinar os rumos da política. Para completar tal retrocesso, só nos falta a dimensão da efetivação da alteração de resultados eleitorais em grande escala, agora repaginada na imposição não mais dos interesses das oligarquias do passado, mas das milícias e facções. Não só os direitos civis, mas os direitos políticos estão ameaçados hoje no Brasil.

No momento em que o crime organizado exibe musculatura e reforça a violência e a crueldade como linguagens, o Brasil parece alheio ao debate sobre segurança pública (delegando às polícias a gestão da vida da população) e encontra-se fragilizado por disputas em torno de sua agenda de direitos, com muitos segmentos concebendo a restrição de garantias e a retirada de direitos sociais. Em nome da manutenção da ordem, a violência simbólica e real vai sendo tolerada e aceita.

No limite, esse movimento vai minando a crença dos brasileiros na democracia e retroalimenta nossas tradições autoritárias; retroalimenta a defesa de respostas públicas e privadas que fazem uso da violência como linguagem.

Segundo pesquisa do Instituto Latinobarómetro, em 2016, apenas 32% da população brasileira concorda que a democracia é sempre a melhor forma de governo. Trata-se de uma redução de 22 pontos percentuais em relação a 2015, quando 54% dos brasileiros confiavam nesse regime de governo. Em termos comparativos, a democracia é defendida como a melhor forma de governo por 71% dos argentinos e por 54% dos chilenos –só ficamos atrás da Guatemala, onde apenas 31% da população crê na democracia.

CONFIANÇA

Até por ostentar tais índices, o Brasil é o país com menos confiança interpessoal do continente, com somente 3% da população declarando ter confiança nos outros, enquanto a média da América Latina é de 17%. A violência política observada nas eleições de 2016 sugere, portanto, que o Brasil vivencia a democracia e, como consequência, a segurança pública, mais como simulacros do que como realidade.

Por tudo isso, não é exagero afirmar que as reações das autoridades aos crimes políticos praticados durante o período eleitoral foram, por um lado, aquelas imediatamente disponíveis. Por outro lado, porém, a mobilização de tropas federais não atinge o cerne do problema e funciona mais como medida paliativa e midiática. As ações que efetivamente farão a diferença serão aquelas que optarem menos por pirotecnias e discursos e mais por inteligência e investigação.

Nesse caso, já que estamos falando de eleições municipais e de cidades, a violência e o crime emergem como elementos adicionais de um contexto de profundas carências estruturais e de ilegalismos. O Estado não está simplesmente ausente nos territórios; sua presença pode se dar de forma ambígua e arbitrária –o que, em muitas ocasiões, mais fortalece as facções do que as enfrenta.

Em um turbilhão de tensões e carências da paisagem urbana, abandona-se a legitimidade do Estado como o meio mais eficaz de mediação e resolução de conflitos. Um Estado que não consegue se fazer presente no espaço urbano –a não ser pelo lado muitas vezes conflituoso da ação policial– não consegue legitimidade para se habilitar como instrumento de pacificação social. A vida perde seu valor moral.

O faroeste caboclo da música da Legião Urbana ganha forma, e a segurança pública mais uma vez fica dependente de um dever-ser; ficamos dependentes de um xerife salvador da pátria e da nação.

RENATO SÉRGIO DE LIMA, 46, doutor em sociologia pela USP, é diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor de gestão pública da FGV-EAESP.

EMMANUEL NASSAR, 67, é artista plástico.


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