Folha de S. Paulo


O fim da utopia hippie em "Aquarius"

RESUMO Texto analisa o filme de Kleber Mendonça Filho sob a chave dos paradoxos encarnados pela protagonista. Posto que a promessa coletiva de "paz e amor" de sua geração capitulou, resta a Clara refugiar-se na esfera íntima. No entanto, ali chegam ecos de machismo, tensões de classe e uma noção carola do sexo na maturidade.

Victor Jucá/Divulgação
A atriz Sonia Braga em cena de
A atriz Sonia Braga em cena de "Aquarius"

Em que ponto improvável da paisagem sensível brasileira podem se cruzar a melancolia de uma mulher de meia-idade e a voracidade da especulação imobiliária?

Questão de fundo do aclamado "Aquarius", ela tem sido colocada de lado nos debates sobre o filme, não raro obscurecida pelas interpretações que flagram a protagonista ora na ponta esquerda, ora na direita. Depois de alçada a estandarte dos protestos contra o golpe que teve lugar no país, ela agora vem inspirando perfis conservadores, que denunciam seus privilégios de classe.

Estes, contudo, não dão conta da zona de opacidade que a pergunta projeta. Afinal, descartadas as hipóteses que acusam o intimismo à sombra do poder ou vice-versa, resta o espinhoso diálogo entre os continentes da política e do afeto, ambos sempre tão protegidos por suas sentinelas de plantão. Poucas produções artísticas contemporâneas se saíram tão bem diante de tal desafio quanto o filme de Kleber Mendonça Filho.

Como se sabe, Aquarius é o nome do prédio em que vive Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada de classe média alta, que se recusa a vender seu apartamento a uma incorporadora. O título do filme, porém, evoca não só o imóvel mas também um ícone da geração da personagem, a canção "Aquarius" do musical "Hair", cuja estreia em 1968 na Broadway fez história. A peça chegou aos palcos brasileiros no ano seguinte, já sob a mira do AI-5, tendo como estrela ninguém menos do que a própria Sonia Braga, então com 18 anos.

Utopia maior da contracultura hippie, a "era de Aquarius" ali saudada prometia colocar fim a todas as formas de jugo do capital para instaurar um tempo de paz e liberdade, pautado pelo lema "make love, not war". Por mais de uma década esse sonho ecoou entre ruas e palcos, até ser tragado pelas telas do cinema comercial, em 1979.

"Aquarius" começa em 1980, quando a jovem Clara, casada e mãe de três filhos, comemora o aniversário de uma tia libertária, que se arriscara tanto na luta armada quanto na revolução sexual. Há ali como que uma transmissão de cetro da tia para a sobrinha, apontando para uma interessante linhagem de mulheres combativas que, oriundas da classe média, começam a ganhar visibilidade no Brasil dos anos de chumbo.

RISCO

De Zuzu Angel a Leila Diniz, de Maria Bethânia a Clarice Herzog, são muitos os nomes de uma lista à qual não poderia faltar o de Dilma Rousseff. Mulheres que aceitaram "correr o risco" em variadas frentes da vida privada e da pública, brigando para serem admitidas em profissões "masculinas", pelo direito ao aborto, pela expressão dos próprios desejos e, não raro, pelo fim da ditadura.

Clara bem poderia ter sido uma delas e oferece uma imagem do que elas podem ter se tornado. Flagrada nos dias de hoje, ela mora sozinha e toca a própria vida, driblando a melancolia com as amizades, os passeios na praia e as velhas canções da MPB, não raro turbinadas por um baseado.

Estamos longe do tom militante do feminismo ou das esquerdas, e ainda mais de qualquer triunfalismo. É tudo mais simples e também mais complicado. Exemplar, nesse caso, é a relação de Clara com os filhos: se, de um lado, um dos rapazes pode falar do namorado com a mãe que aceita a homossexualidade, de outro, a filha estressada não deixa de cobrá-la pelo período em que a jornalista "largou" as crianças com o pai para fazer um estágio no exterior. Assim, ainda que a personagem traga "no corpo as marcas do seu tempo" e lamente a "juventude assim perdida", para citar a canção emblemática do filme, são as contradições de "Hoje" que ela expõe.

Como "atualizar" os sonhos e as vivências daquela juventude numa realidade em que a violência patriarcal trava um pacto de fundo com a rapina neoliberal?

Histórias pessoal e coletiva se cruzam de forma complexa em "Aquarius", como evidencia a vida amorosa de Clara, nada animadora. A mulher madura não encontra parceiros à altura, ainda mais por viver numa região em que valores machistas seguem bastante arraigados, atravessando as classes sociais. Restam-lhe os pequenos afetos do cotidiano, que ganham particular sentido ao longo do filme.

É nesse ponto que se deve interrogar a relação da protagonista com sua empregada, tratada de forma bem distinta do que ocorre em "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert. A diretora aposta na via da denúncia, lembrando que a exploração do trabalho doméstico guarda as marcas indeléveis da escravidão, no mais das vezes ocultas sob a perversa denominação da servidora como alguém "quase da família".

Já "Aquarius" toca em outro ponto nevrálgico e se arrisca a abordar os laços afetivos entre Clara e Ladjane (Zoraide Coleto), sustentados num possível reconhecimento mútuo que, embora não esconda seus limites, passa pelo pertencimento ao gênero feminino.

LUTA DE CLASSES

Escusado lembrar que as contemporâneas reais da personagem, ao menos em sua minoria combativa, realmente se esforçaram em reconhecer os direitos das trabalhadoras domésticas, em assinar carteiras e respeitar horários, embora tenham sido raríssimas as que abriram mão de ter uma "ajuda" para criar os filhos ou colocar o almoço na mesa da família. Kleber Mendonça Filho foi tão corajoso quanto sutil ao enfrentar o tema: sem confundir sentimento e emancipação, seu filme insinua que, se o afeto entre patroa e empregada em nada faz avançar a luta de classes, ao menos pode fazer alguma diferença para os sujeitos singulares implicados na relação.

Todo cuidado é pouco ao se tocar nessa delicadíssima questão, mas ignorá-la tampouco faz as coisas avançarem. Até porque a aproximação entre Clara e Ladjane já supõe seu reverso incontornável, dado pela proximidade da praia de Boa Viagem, onde mora a primeira, com o bairro de Brasília Teimosa, onde a segunda vive apinhada.

Se, em termos geográficos, são territórios contíguos, em termos sociais não há como ignorar a diferença entre as torres de luxo e os puxadinhos da favela, separados por uma cerca imaginária de efeitos extremamente concretos. Nessa orla comum a ricos e miseráveis, os predadores da especulação imobiliária circulam com igual violência, mas reservam a brutalidade dos ataques aos que não têm poder de fogo para negociar.

Cada qual luta com as armas que tem –quando tem, óbvio–, e Clara faz "bom" uso das suas relações de classe, valendo-se da ajuda de amigos advogados e jornalistas para tentar manter seu lugar ao sol. Contudo, aqui também a coisa se complica, pois não é apenas o privilégio da propriedade que ela quer manter, mas algo distinto e igualmente valioso. O imóvel em questão passou de geração em geração na sua família e guarda muitas histórias de vida, sendo uma espécie de celeiro das existências singulares que ali habitaram. Lugar pleno de lembranças, o apartamento é, para se empregar a expressão tão bem cunhada pelos franceses, um "lieu de mémoire".

Daí a nostalgia dessa mulher que, face ao envelhecimento, revisita imagens e sons do passado, entesourados como resíduos de um vivido que resiste ao trabalho da morte. Daí sua determinação em combater as forças que ameaçam a preservação de suas lembranças, impondo um veto à capacidade vital da rememoração. É nesse ponto que a saudade de uma "juventude assim perdida" se cruza com a denúncia de uma "dignidade assim perdida" para associar, em definitivo, a experiência da memória e a da resistência.

Clara não conta com mais do que isso para aplacar "a solidão das noites frias". Afinal, a era de Aquarius não vingou, e se hoje o amor livre prospera, isso se deve bem mais ao gerenciamento do mercado. Prova está na infinidade de produtos e serviços sexuais à disposição do chamado "segmento feminino", com a promessa de um erotismo politicamente correto. Clara e suas amigas gozam de tais benefícios na difícil sexualidade da "terceira idade", oscilando entre um deslumbramento que não convence e uma desilusão que chega a assustar.

É bem verdade que a "democratização" de práticas e bens eróticos tem uma dívida histórica para com as mulheres que fizeram da libertação sexual uma bandeira.

Nesse sentido, o reconhecimento do mercado pode até representar uma conquista. Mas talvez seja pouco para quem sonhou mais alto. Ou para quem lutou contra diversas formas de repressão. Ou para quem, como Clara, venceu um câncer de mama sem abrir mão de sua feminilidade.

Erotismo e especulação imobiliária se traduzem um ao outro em "Aquarius", expondo um desconfortável paralelo. Afinal, a dignidade perdida, que a personagem busca recuperar com seus erros e acertos, é um valor que diz respeito tanto ao corpo quanto à cidade. Por tal razão, seja qual for o significado dessa palavra em desuso e de sentido bastante vago na atualidade, ela só pode ser aferida no ponto de encontro entre a história singular e a história coletiva. E não será por isso que Clara se apresenta a nós, brasileiros, como o poço de contradições cujas águas turvas evitamos a todo custo enfrentar?

ELIANE ROBERT MORAES, 65, é professora de literatura brasileira na USP e organizadora da "Antologia da Poesia Erótica Brasileira" (Ateliê).


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