Folha de S. Paulo


Com a peça "Bodas de Papel", nascia uma autora

São Paulo, 1978

Fazia frio naquele 5 de julho de 1978. O teatro estava lotado de convidados. Era noite de estreia de "Bodas de Papel". O tema era o desemprego batendo à porta dos executivos. Afinal, o chamado "milagre brasileiro" tinha sido breve, e a crise do petróleo de 1973 acordara o país para a realidade. Demissões grassaram em todas as empresas. Em 1974, a turbulência atingira a Abril Cultural: mais de cem pessoas demitidas.

O "passaralho", como é chamada entre os jornalistas a demissão em massa, tinha inspirado minha primeira peça, "A Resistência", mas Cecil Thiré se entusiasmou em dirigir "Bodas de Papel", o texto seguinte. Segundo ele, o tema era mais universal, e teríamos menos problemas com a censura federal, na época "presidida" pela temível dona Solange. E o Cecil sabia o que falava: era um homem de teatro, não apenas por ser filho de Tônia Carrero, mas porque tinha dirigido "A Noite dos Campeões" e outros espetáculos nos anos 1970 com sensibilidade e competência.

O elenco que ele escalou era sólido: Jonas Mello, Regina Braga, Ileana Kwasinski, Jandira Martini (depois substituída por Irene Ravache), Luis Parreiras, Luiz Carlos de Morais e Lourival Paris. A Regina e o Murillo Amaral eram os produtores. O teatro escolhido foi o Aliança Francesa, na rua General Jardim.

Quando vi o programa impresso, entrei em pânico. Sábato Magaldi escrevera um texto com o título "Nasce uma Autora". Mais do que uma responsabilidade, era tudo muito novo. Como a plateia iria reagir? O que a crítica iria dizer? Uma coisa era escrever, outra me expor. E estava me expondo à aprovação ou à execração pública.

Acervo Pessoal
Programa de
Programa de "Bodas de Papel", de Maria Adelaide Amaral

No final do primeiro ato, saí correndo da plateia e me escondi no pátio que dava acesso à entrada dos atores. Quando o Cecil abriu a porta, viu-me ali fumando, trêmula. Antes que ele abrisse a boca, grunhi: "Não diga nada, por favor!". Mas as pessoas estavam gostando, ele argumentou, o que me deixou mais aterrorizada.

Quando o pano fechou, os aplausos explodiram, mas também não estava preparada para aquilo. Minha tensão e desajeitamento eram evidentes. Os amigos não entendiam. E entenderam menos ainda quando fui para o Rio me refugiar na casa da Valquíria Dutra de Oliveira depois que saíram as primeiras críticas. Por que estava deprimida? Não tinha sido para isso que nos últimos quatro anos eu enviara textos a atores, diretores, produtores e concursos de teledramaturgia? Por que afinal tinha lutado tanto para dar voz e vida a personagens, suscitar a emoção do público, a identificação, o aplauso, o reconhecimento?

Acervo Pessoal
Programa de
Programa de "Bodas de Papel", de Maria Adelaide Amaral

Eu não estava deprimida, estava assustada. Naquela noite de 5 de julho, quando o pano abriu, percebi que o teatro iria mudar a minha vida. E eu era feliz na Abril Cultural. Apesar da ditadura lá fora, éramos uma tribo, uma família, partilhávamos das mesmas incertezas e convicções, abríamos a nossa vida uns para os outros no limite da promiscuidade. Era uma terapia cotidiana. Dar adeus a essa fraternidade seria a solidão, o exílio, o desamparo.

Durante os anos seguintes, fiquei entre a Redação e o teatro, sem abrir mão de nenhum deles, mas sentindo o apelo da dramaturgia se tornar cada vez mais forte. Colaborou para isso o individualismo dos anos 1980 contaminando as empresas, inclusive as jornalísticas. Não era o fim da história, como defendia Fukuyama, era o fim de um mundo ao qual eu pertencera, um mundo do martelar das máquinas de escrever, da fumaça dos cigarros, das redações ruidosas. Era a hora e a vez da tecnologia e do silêncio. E a hora de assumir que eu era dramaturga e, na solidão do meu escritório, aderir ao computador.

Por isso doeu menos quando, em 1990, fui contratada pela Rede Globo como colaboradora de Cassiano Gabus Mendes na novela "Meu Bem, Meu Mal". Mas quando penso no que era a nossa vida nos corredores barulhentos da rua do Curtume, o meu coração ainda se aperta.

MARIA ADELAIDE AMARAL, 74, é jornalista, escritora e dramaturga. Sua próxima novela, "A Lei do Amor", coescrita por Vincent Villari, estreia na Rede Globo dia 3/10.


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