Folha de S. Paulo


"O Mundo Sitiado" e a resposta literária à circunstância histórica

RESUMO Autora analisa livro de Murilo Marcondes de Moura sobre a poesia à época da Segunda Guerra. A leitura da obra evoca situações contemporâneas, relativas à convulsão política por que passa o país. "Uma triste sincronicidade" parece reconfigurar o texto "se visualizado tendo como ponto de mira a sociedade brasileira hoje".

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Entre a defesa por Murilo Marcondes de Moura de sua tese de doutorado sobre o impacto da Segunda Guerra Mundial na obra de Drummond, Murilo Mendes e Cecília Meireles, em 1998, e a versão retrabalhada (ampliando a discussão sobre a relação entre poesia de guerra e poesia de circunstância) desse estudo, que acaba de ser publicada pela Editora 34, há um intervalo de quase 20 anos.

Uma demora que talvez pudesse ter restringido seu alcance ao conjunto de estudiosos que já a conheciam e que aguardavam há anos a edição em livro desta que é uma das melhores contribuições críticas recentes sobre a literatura brasileira moderna. Esse intervalo, no entanto, parece ter oferecido a Murilo Marcondes a possibilidade de ampliação significativa da recepção e do potencial de interferência do trabalho, sobretudo no que se refere à cultura literária brasileira contemporânea.

Um estudo sobre formas de resposta poética ao acontecimento histórico da guerra –e, no caso do Brasil dos anos 1930 e 1940, mesmo que não seja esse o foco, também à vida durante o Estado Novo– parece impactar diretamente aqueles que se perguntam com urgência, hoje, como responder à instauração de um Estado de exceção, ao indisfarçável movimento de reordenação oligárquica do país, em meio ao recrudescimento da misoginia, do racismo e do ódio de classe, acompanhados ainda da rejeição e do deboche cego (e não apenas por grupos de extrema-direita) a qualquer forma de exercício crítico ou de produção artística minimamente questionadora.

Para o leitor de fins dos anos 1990, contemporâneo, portanto, do período de redação da tese, seria quase inevitável visualizar o recorte temático adotado por Murilo como resultante de um exercício historiográfico e de belo estudo (à distância) de quadro histórico bem demarcado e de modos contrastivos de relação entre literatura e circunstância.

Inevitável talvez a sensação de distância compreensiva tendo em vista o contraste entre, de um lado, o período da Segunda Guerra, das vastas interpretações (homogeneizadoras ou críticas) do Brasil e, de outro, um país recém-saído de longos anos de autoritarismo e vivendo a emergência de nova sociedade civil, cujas críticas ao patrimonialismo, à ideologia da conciliação e da identidade nacional fundamentaram os debates da Constituição de 1988.

Para o leitor do Brasil de agora, no entanto, o quadro é bem outro. E um estudo como "O Mundo Sitiado" [Editora 34, 376 págs., R$ 62] não pode se apresentar simplesmente como reflexão sobre as relações entre literatura e sociedade, entre poesia moderna e acontecimento, pois uma triste sincronicidade parece reconfigurá-lo se visualizado tendo como ponto de mira a sociedade brasileira hoje.

Impulsionados por essa perspectiva, nem os leitores que conheciam a tese, nem os de agora podem evitar, diante do livro, uma aproximação intensamente empática, acompanhada, porém, de forçoso espelhamento autocrítico, ao observar essas obras em que o acontecimento externo ganha interioridade e dá lugar a experiências artísticas de fato transformadoras. Pois o trabalho de Murilo Marcondes parece nos forçar a buscar no presente respostas capazes de dialogar com a força da poesia social de Drummond, por exemplo. O que obviamente não é fácil. Ou nem sempre se vê de cara, quando se está imerso na mesma circunstância.

E, no entanto, independentemente de espelhamentos, de tempos e tensões inevitavelmente outros, houve muitos, nos últimos anos, capazes dessa compreensão e de experiências de "transfiguração das circunstâncias", apontando certeiramente novos cercos, anunciando os estados de sítio que já vêm demarcando as possibilidades cotidianas de atuação e resistência.

O "pisar em campo minado", de Alice Miceli, o impiedoso ventriloquismo de uma classe média truculenta e raivosa empreendido por André Sant'Anna, em "O Brasil é Bom", e Bernardo Carvalho, em "Reprodução", a memória de cultura-outra e a prefiguração do extermínio por Davi Kopenawa, as instabilizações sem descanso de Nuno Ramos, o poema-que-não-pode-mais-ser-se-não-for-em-fuga, de Carlito Azevedo, os avisos pictográficos gigantes, indecifráveis e, no entanto, urgentes de Joana Cesar, ou as sílabas gol-pe, cantadas quase inaudivelmente, às vezes, em meio aos diálogos de um despretensioso espetáculo de rua da Probástica Companhia de Teatro. Ou, é claro, o belo poema-aviso, pré-contra impeachment de Augusto de Campos, "CAVE MIDiA$", alertando simultaneamente contra os cães ("CAVE CANEM") e contra a mídia-midas e a situação de pré-devoração do Estado democrático.

Não é à toa essa intromissão de sinais positivos de consciência do presente na leitura de Murilo Marcondes da poesia de guerra. Pois, como ele observa na abertura do livro, mais do que o luto, a "assombração da barbárie", o que o moveu a realizar esse trabalho foi pensar o papel da poesia "diante do horror", em especial da poesia brasileira diante de "catástrofe planetária" da qual participaria àquela altura em segundo plano. Mas com vigorosas manifestações poéticas.

Nesse sentido, toda a primeira parte do seu estudo dialoga diretamente não apenas com estudos mais recentes sobre literatura e circunstância, como os de Predrag Matvejevitch e Jean-Michel Maulpoix, mas também com artigo seminal de Jean Starobinski, escrito nos anos 1940, sobre a "poesia do acontecimento", texto que balizaria a distinção de obras nas quais "o drama da história e o drama da pessoa se encontram" daquelas em que haveria uma "contração do tempo histórico no tempo pessoal". Seria nesse entroncamento que o crítico situaria a poesia de guerra. E, talvez se possa acrescentar também, a relação entre arte e política.

Nessa linha, ele se deteria, em primeiro lugar, na produção de poetas europeus que serviram de fato como soldados (Apollinaire, Ungaretti e Wilfred Owen); em seguida, nos poetas exilados (como Brecht) e nos poetas da resistência (como Aragon, Éluard, René Char, Lorca), passando igualmente pela incursão marioandradina na temática da guerra e destacando um de seus poemas de juventude, "Inverno" –no qual distingue um trabalho de construção poética da desolação, ao contrário de certo mimetismo imagético-documental de outros textos do período.

INTERNO E EXTERNO

À medida que o estudo prossegue e passa a singularizar a análise da poesia de guerra na obra de Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles e Oswald de Andrade, fica evidente que o trabalho de Murilo Marcondes, independentemente do tópico bélico que o orienta, parece trazer outro a ele geminado, talvez sem grande alarde (e nem precisaria, já que teve como orientadores Davi Arrigucci e João Luiz Lafetá), e que opera aí talvez não exatamente como tema, mas como fator primordial na construção de sua argumentação e de sua concepção da relação entre poesia e acontecimento. Trata-se da discussão de Antonio Candido sobre os fatores externos e internos no âmbito da análise literária, fundamental na refiguração da crítica de orientação sociológica. E que se faz presente, com ênfases diversas, nos vários ensaios que constituem "Literatura e Sociedade", livro de 1965.

Discutindo as visões dissociadas e pautadas na oposição entre fatores externos e internos, Candido, como se sabe, sublinharia que "a integridade da obra" exige "a fusão de texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra", na qual "tanto o velho ponto de vista que a explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente", deveriam se combinar "como momentos necessários do processo interpretativo". É essa, de certa forma, a trajetória de Murilo Marcondes em sua tese. De tema, a guerra passa a ser observada como fator internalizado, como elemento transformador efetivo das obras analisadas.

Daí o elogio, no "Cântico dos Cantos para Flauta e Violão", de Oswald de Andrade, à junção entre acontecimento histórico (a batalha de Stalingrado) e contexto biográfico (o encontro amoroso). Ou a ênfase ao fato de a resposta –contemplativa e afetuosa– de Cecília Meireles à guerra resultar de "experiência privada e doméstica". No caso de Murilo Mendes, se assinala a alta incidência de referências à Segunda Guerra Mundial e sublinha-se igualmente o fato de elas não serem explícitas, mas oblíquas, transfiguradas.

Nele, "a guerra se insinua literalmente por todos os poros, mas sempre se manifesta de maneira indireta", diz Murilo Marcondes, ecoando analiticamente o comentário de Candido sobre a interpretação dialética, na qual "o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno". É o que se privilegia, mas de modo diverso, na análise da poesia de guerra de Drummond.

Observa-se, quanto a ele, que haveria em sua obra apenas "cinco poemas vinculados exclusivamente à guerra" –"Notícias", "Carta a Stalingrado", "Telegrama de Moscou", "Visão 1944" e "Com o Russo em Berlim". Mas, assinala Murilo Marcondes, caberia à guerra intensificar a sua reflexão sobre o tempo presente e ampliar a abrangência "do seu canto".

Assinale-se, desse ponto de vista, a análise empreendida por ele de "Visão 1944", sugerindo a leitura do poema em sintonia com a série "Visões de Guerra", de Lasar Segall, e sublinhando o detalhamento do "planejamento geométrico" do texto, a importância da ausência de rima e a tensão entre a repetição de "Meus olhos são pequenos para ver" e um movimento de dilatação do olhar.

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Destaca-se no poema, sobretudo, o "amalgamento" entre sujeito, assunto e forma e a importância que a "abertura" da lírica drummondiana "aos acontecimentos da guerra" teria na associação, em sua obra, do "sentimento do mundo" a um "novo sentimento da forma". No caso de Drummond, a guerra desempenha papel fundamental na constituição de sua poesia social.

Se voltarmos ao inevitável espelhamento inicial com o tempo presente, talvez ele possa nos sugerir, como o poeta, que "atrás da guerra, atrás de outras derrotas", aviva-se, simultaneamente, uma "imagem calada", "que ganha em cor, em forma e profusão".

FLORA SÜSSEKIND, 60, é crítica literária e professora de estética e teoria do teatro na Unirio.


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