Folha de S. Paulo


A Colômbia, a memória histórica e o esquecimento por vezes necessário

RESUMO Em livro, o ensaísta David Rieff questiona o imperativo de rememoração histórica. Segundo ele, que é filho de Susan Sontag, estabelecer uma narrativa unívoca sobre o passado pode acirrar a animosidade entre lados antagônicos. É o que o entrevistado espera que seja evitado na Colômbia, que vota hoje acordo de paz.

Raul Arboleda - 26.set.16/AFP
Membros das Farc assistem à transmissão da cerimônia de assinatura do acordo de paz entre a guerrilha e o governo da Colômbia, no acampamento El Diamante, no sul do país
Membros das Farc assistem à transmissão da cerimônia de assinatura do acordo de paz entre a guerrilha e o governo da Colômbia, no acampamento El Diamante, no sul do país

"Uma pessoa morre duas vezes. Uma, no dia de sua morte física; a outra, na última vez em que alguém que a conheceu menciona seu nome." Foi assim que, na cidade de Mitú, no departamento colombiano de Vaupés (fronteira com o Brasil), os antepassados indígenas do pescador Jairo Díaz, 34, explicaram ao então menino o que significava morrer.

Por causa dessa forte tradição amazônica no que diz respeito à memória dos mortos, o governo colombiano decidiu começar por aquela localidade a implantação de um programa chamado Bosques por la Paz, por meio do qual a população recebe subsídios para plantar uma árvore para cada vítima da longa guerra que travam, há mais de 50 anos, o Exército e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) –e que deixou marcas profundas na região. Mitú, por exemplo, foi tomada brutalmente pela guerrilha nos anos 1990.

O projeto é apenas uma das tantas ações paralelas ao acordo de paz entre o governo colombiano e a guerrilha, que vai a plebiscito neste domingo (2). Desde que as negociações tiveram início, há quatro anos, o país vive uma espécie de febre de projetos de resgate da memória, tanto por vias oficiais como por ONGs que buscam retraçar acontecimentos marcantes do conflito que matou mais de 250 mil pessoas.

O governo colombiano criou até um órgão oficial, o Centro Nacional de Memória Histórica, com orçamento para erguer museus e criar fóruns de discussão e comissões da verdade pelo país, enquanto em Bogotá começa a ser erguido um imenso memorial em homenagem aos caídos nos embates.

Mas será que recordar tanto o passado é sempre algo positivo para uma sociedade? Um pouco de esquecimento não seria saudável? Ou se trata de uma ideia politicamente incorreta demais?

Ancorado nessa controversa indagação, o ensaísta e historiador norte-americano David Rieff, 63, especialista em imigração e conflitos internacionais, lançou recentemente "In Praise of Forgetting: Historical Memory and Its Ironies" [Yale University Press, 158 págs., R$ 74,85; R$ 64,99 em e-book] (em defesa do esquecimento: memória histórica e suas ironias).

CONFLITOS

Tendo passado parte de sua vida de pesquisador nos Balcãs, no Iraque e na Argentina, e estudado tratados de paz da Irlanda, da África do Sul e de outros países, Rieff, filho da ensaísta e escritora Susan Sontag (1933-2004), crê que hoje a ideia de "sacralizar a memória e fazer com que tudo que tenha a ver com ela seja algo positivo" pode ser nociva às sociedades, causando polarizações e alimentando novos conflitos.

Lançado na Colômbia com o título de "Contra la Memoria" (editorial Debate), o livro vem causando acalorado debate, e o próprio Rieff, quando veio apresentá-lo no país, foi amplamente questionado pelos intelectuais locais.

"É um impulso humano muito forte [o de] não querer ser esquecido, e essa tradição amazônica que você relata expõe isso. É natural que seja assim. Mas a ideia de que uma memória coletiva seja necessária para construir um mito nacional nos leva para um terreno perigoso. A memória coletiva não existe. Trata-se de um artefato da política, da religião e do poder de uma forma geral", conta Rieff, em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York. "Sociedades não têm memória. Seres humanos têm memória. Ponto."

Ele explica que não quis fazer uma provocação aos historiadores nem minimizar a importância de investigar, conhecer e, eventualmente, julgar e reparar abusos ocorridos no passado.

"Foi importante na Argentina saber quem desapareceu durante a ditadura militar (1976-83) e o porquê. Assim como tem sido importante descobrir o que aconteceu com os bebês sequestrados e todo esse movimento de reparação que se deu durante os anos do kirchnerismo (2003-15). O mesmo ocorrerá agora na Colômbia, caso a guerra de fato acabe. Minha ressalva é a de que buscar um relato único de uma memória coletiva é fazer uma opção política, e talvez essa não devesse ser a prioridade num momento como esse."

Rieff explica que cada caso, cada país tem particularidades. Assim como no livro ele esmiúça episódios de pós-conflito em vários países, na entrevista o historiador pontua a diferença entre tratados de paz ou de anistia pelo mundo.

SEM VENCEDOR

"Quando há um lado derrotado, a coisa fica mais clara. Na Argentina, por exemplo, os militares foram os perdedores. E houve julgamentos. Na África do Sul, foi o lado da liberdade quem ganhou, e não se fizeram julgamentos. Tudo bem, são opções políticas de cada país. Mas na Colômbia há uma particularidade: nenhum lado ganhou."

Por isso, explica Rieff, o pós-conflito colombiano será mais parecido com o de lugares como a Irlanda do Norte, "onde o que se buscou foi um acordo com a única intenção de calar os fuzis. Mas isso implica que as divisões continuarão a ser profundas, mais do que nos casos em que há um ganhador claro".

Para o ensaísta, visto que a cisão é aguda, mais importante do que se esforçar para reconstruir o que passou talvez seja cultivar a ideia de convivência entre atores heterogêneos numa sociedade marcada pelo dissenso.

"É o que vejo na Colômbia. Os lados em conflito nunca vão concordar sobre o que ocorreu no passado e sobre quem tinha razão na guerra. Politicamente, a decisão correta a ser tomada é justamente a de não tentar construir uma visão única do passado", afirma.

E acrescenta: "Timochenko [o líder máximo das Farc] vai continuar achando que está certo e que lutou pelos valores corretos. Já os seguidores dos irmãos Castaño [líderes dos paramilitares] seguirão pensando que sua causa era a mais justa [aniquilar a guerrilha], enquanto os políticos da elite de Bogotá, no poder, manterão a crença de que venceram uma disputa".

No livro, Rieff critica historiadores como Jacques Le Goff (1924-2014) e outros que consideram que a história possa ensinar a não repetir erros no futuro.

"Saber que houve um genocídio no passado nunca impediu que outros genocídios acontecessem. O genocídio na Alemanha, na Segunda Guerra, não evitou as matanças na África. O mesmo se aplica aos direitos humanos. A ideia tão repetida na Argentina e em outros lugares pós-ditaduras de que 'nunca mais' irá ocorrer este ou aquele abuso de poder implica uma racionalidade, uma bondade dos seres humanos que para mim simplesmente não existe."

IDEOLOGIA

E reforça que sua batalha não é contra a história, mas sim contra o modo como ela é valorizada. "É um lugar comum achar que a memória histórica presta um serviço à sociedade atual. Isso, para mim, é um equívoco. Não estou discutindo a história nem a memória em si, mas o que fazemos com elas em termos de moral, de ideologia e como as transformamos em instrumentos políticos."

Rieff também desafia a noção de mitos fundacionais. Segundo ele, ao serem instadas a escolher entre história e mito, as sociedades em geral preferem o segundo, escolhendo o conforto das idealizações que cada país faz de seu passado.

E dá exemplos: a Irlanda antes da dominação inglesa, a França como o nascedouro da razão contemporânea e a América antes de os europeus chegarem.

"É algo que vem de uma ideia judaico-cristã, a de que cada povo teve seu Jardim do Éden, antes de que algo terrível acontecesse. E que antes tudo era ótimo. E que se deve fazer de tudo para voltar àquele estado original. Será que era mesmo tão bom?"

Se por um lado Rieff admite que essas idealizações ajudam a construir um sentimento de "pertencimento nacional", por outro, ele defende que sejam relativizadas, porque muitas não resistiriam a uma investigação histórica acurada –e estão na raiz de disputas e embates que se arrastam até os dias atuais.

O ensaísta, porém, faz diferenciações entre países. "Sabe-se que andar pelo Mercado Municipal de São Paulo e encontrar uma foto de Getúlio Vargas é algo altamente improvável. Mas não surpreenderá de maneira nenhuma, num mercado popular em Buenos Aires, ver fotos do general Perón."

Resistindo à pecha de politicamente incorreto, Rieff conclui em seu texto que "povos que lembram muito não necessariamente são mais felizes. Não concordo com o discurso quase unânime dos defensores dos direitos humanos, que dizem que só pode haver paz se há justiça. Às vezes, duas coisas boas se opõem, e é preciso escolher uma delas. Talvez esquecer um pouco não seja tão ruim."

Voltando ao caso colombiano e à passagem que ensejou a discussão (o quanto se deve recordar o passado, afinal?), Rieff diz que a preocupação dos homens em não serem esquecidos é um indício de sua arrogância.

"A ideia de que você ou um ser querido será lembrado para sempre é ridícula, não se sustenta, é um 'wishful thinking' que o conhecimento histórico destrói. Precisamos ser menos arrogantes. Nós só podemos viver o tempo que estamos vivendo. Meu livro é um chamado a isso, a dessacralizar o uso da memória."

SYLVIA COLOMBO, 44, é repórter especial da Folha.


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