Folha de S. Paulo


Alexander Calder e a reinvenção onírica da forma pura

RESUMO Exposição em São Paulo mostra como a produção do escultor norte-americano Alexander Calder, que relia em chave menos hierática a obra de Mondrian, deixou sua marca em mais de uma geração de artistas brasileiros. Entusiasta dos móbiles calderianos, o crítico Mario Pedrosa foi ator decisivo para essa aproximação.

Em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, até 23/10, "Calder e a Arte Brasileira" examina a influência do artista norte-americano Alexander Calder (1898-1976) sobre a arte produzida no Brasil a partir dos anos 1950.

A presença de Calder é imensa e pode ser medida pelo escopo amplo de artistas presentes nessa exposição. Curada por Luiz Camillo Osorio, ela exibe trabalhos de Calder ao lado dos de 14 artistas brasileiros marcados por sua produção: a lista começa em Abraham Palatnik, Antonio Manuel, Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, passa por Carlos Bevilacqua, Ernesto Neto, Franklin Cassaro, Hélio Oiticica e Judith Lauand e termina com Lygia Clark, Lygia Pape, Luiz Sacilotto, Waltercio Caldas e Willys de Castro.

Calder passou dois meses no Brasil para preparar sua exposição inaugural no país, em 1948. Mais tarde, expôs nas primeiras bienais e voltou a fazer uma individual no Rio de Janeiro em 1959. Foi amigo de Burle Marx, Oscar Niemeyer e conviveu com parte expressiva da elite ilustrada e artística brasileira.

Por mais distintos que sejam os trabalhos expostos, desenha-se uma tensão comum: a herança "construtiva" e o ímpeto de superar seus limites, traço que a obra de Calder ilustra exemplarmente.

"Construtiva" é um desses termos que a crítica de arte naturalizou, mas que carecem de especificidade. A expressão costuma designar um culto à forma que remonta a vanguardas artísticas dos anos 1920, mas que reaparece sob termos igualmente amplos, como "abstração geométrica", "construtivismo" e também, de modo mais específico, sob as bandeiras de "arte concreta" e "neoconcreta".

O que se entende por "herança construtiva" nessa mostra é a forma como Calder absorveu ensinamentos de um de seus mestres, o pintor Piet Mondrian (1872-1944). Calder era um engenheiro interessado no uso de materiais industriais, mas ficou encantado quando visitou o ateliê do artista holandês.

Mondrian queria reduzir a pintura a seus elementos mais básicos. Seu trabalho da maturidade é uma pesquisa incessante sobre estrutura e forma, valendo-se apenas de traços verticais e horizontais e cores primárias.

TRIDIMENSIONAL

O que Calder produziu com seus trabalhos mais famosos, os móbiles, pode ser entendido como a tentativa de levar para o plano espacial o que Mondrian fez nas telas. Inicialmente, Calder empregou pequenos motores para animar as hastes de metal em que pendurava formas coloridas. Em seguida, abandonou o recurso e deixou que os móbiles se movessem livremente, equilibrados apenas pela delicada articulação entre suas partes.

A obra de Calder teria conseguido, sob essa ótica, unir a pesquisa formal ascética de Mondrian a um elemento de imprevisibilidade, de modo a superar a rigidez construtiva que estava na base do artista holandês. É nesse sentido que se pode falar em "herança construtiva" e tentativa de superar seus limites. Era esse também o desafio que estava posto para boa parte dos artistas brasileiros incluídos na atual mostra.

Quem estabeleceu essa conexão de forma mais fecunda –e no calor da hora– foi o crítico Mario Pedrosa (1900-81). Ele visitou uma mostra de Calder no MoMA, em Nova York, em 1944. Ficou entusiasmado e produziu dois ensaios para o "Correio da Manhã", que figuram como algumas das peças mais brilhantes de sua obra crítica.

Nesses textos, Pedrosa afirma que Calder é o artista que mais se aproxima do ideal da arte do futuro, da sociedade ideal em que "a arte seria confundida com as atividades da rotina diária e a prática cotidiana de viver".

Ele procura mostrar como os móbiles da última fase, já livres do motor e abertos ao movimento livre, representam uma vitória da imaginação sobre a mecânica. A liberdade rítmica resultante dessa escolha aprofunda a virtualidade da obra, que se torna mais rica em sugestões e possibilidades.

Apesar dos cálculos matemáticos por trás da estruturação dos móbiles e do uso intensivo de materiais industriais, Calder não fica refém do elemento funcional, utilitário. Pelo contrário, consegue fazer da fantasia uma maneira de neutralizar a dimensão prática. Em nome da expressividade plástica, consegue "violentar a funcionalidade do material" e fazer da mecânica um "sistema a serviço de nada, trabalhando ao deus-dará, para o sonho e a especulação".

HUMOR

Calder ultrapassava os ensinamentos dos pioneiros do construtivismo ao inserir um quê de imprevisibilidade, humor e inventividade no mundo austero da busca pelas formas puras.

Em essência, foi esse mesmo dilema que mobilizou, a partir dos anos 1950, um segmento expressivo dos artistas que produziam no Brasil. Para essa vertente, hegemônica também por conta da influência de Pedrosa, o desafio era levar ao limite a pesquisa pela forma pura sem perder a dimensão da experiência.

A tentativa de representação da realidade –a arte figurativa– estava fora de cogitação. A abstração pura e simples também era anátema, pela falta de rigor e excesso de subjetividade. Era preciso testar os limites da pintura, num processo de abandono da tela como mero suporte de uma representação para fazer dela um elemento mesmo do trabalho. Não existe mais a noção de uma figura representada sobre um fundo –o fundo, na célebre formulação concretista, passa a ser "o próprio mundo".

No fim dos anos 1950, essas questões estavam no auge para Hélio Oiticica, Lygia Clark e Luiz Sacilotto, mas deixam marcas igualmente visíveis nos demais artistas presentes à mostra do Itaú, da arte cinética de Palatnik, cujo aceno ao mestre americano é evidente, à obsessão com o "orgânico" na obra de Ernesto Neto, que comparece com um trabalho cheio de plantas a misturar o móbile a um penetrável de Oiticica.

A exposição mostra com rara clareza como a trajetória de Calder, sobretudo segundo a interpretação que dele fez Mario Pedrosa, tem nítidos paralelos com o que de melhor se produziu no Brasil no âmbito da tradição construtiva. Os materiais industriais, a espacialidade, o planejamento, o cálculo matemático, a passagem do plano para o espaço, a inquietação com o excesso de rigidez, o respiro de leveza e imprevisibilidade –eis uma seleção dos traços que animam sua obra e que sobressaem em diversos trabalhos escalados para essa mostra criteriosa.

FLÁVIO MOURA, 37, jornalista e doutor em sociologia pela USP, é editor na Companhia das Letras.


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