Folha de S. Paulo


Sobre a mostra do Masp que revisita Lina e a opinião da crítica

RESUMO Curador e crítico, o autor do artigo argumenta a favor da exposição "A Mão do Povo Brasileiro", no Masp, que retoma projeto de Lina Bo Bardi, de 1969. O texto rebate visão do crítico da Folha Fabio Cypriano, que apontou fetichização de Lina e uma perspectiva da curadoria do museu que se voltaria apenas ao passado.

Danilo Verpa - 31.ago.16/Folhapres
Visão de
Visão de "A Mão do Povo Brasileiro" hoje

Fiquei com preguiça quando li o texto do crítico da Folha Fabio Cypriano "Com 'A Mão do Povo Brasileiro', Masp confirma só ver o passado" publicado na "Ilustrada" em 6/9. O "só" foi particularmente perturbador.

Pressenti uma ociosidade crítica e me peguei refletindo sobre a preguiça, que não se mistura à ociosidade. A primeira é nossa, como já foi possível notar, por exemplo, no indelével Macunaíma. A segunda é da ordem da manufatura. A radicalidade da preguiça devolve humanidade às pessoas brutalizadas pela ideologia da eficiência. As máquinas ficam ociosas, as pessoas sentem preguiça.

Um crítico pode –e deve– usar a preguiça para contemplar e refletir. O crítico ocioso faz manufatura e entrega ao leitor reflexões calcadas naquilo que lhe ensinam, sem acrescentar nada. Como máquina, o crítico cumpre seu prazo. Adulando ou rejeitando o assunto de que trata, ele imprime à superfície do seu raciocínio um verniz de pensamento.

O resultado geralmente é um produto, em vez de uma visão ou um debate sobre a obra. Enfim, a preguiça faz parte do povo brasileiro; já a ociosidade faz parte da manufatura de um povo. Por que me proponho a divagar sobre a anatomia da crítica burocrática opondo preguiça e ociosidade?

Em boa hora, o Masp (Museu de Arte de São Paulo) apresenta a exposição "A Mão do Povo Brasileiro 1969/2016" até janeiro de 2017. A pesquisa obsessiva reapresenta a mostra originalmente criada por Lina Bo Bardi em 1969, na mesma instituição. Trata-se de um gesto a ser aplaudido por sua audácia e por sua potência.

Para a pessoa ociosa, é apenas encenação (palavra encontrada no "press release" e em textos relativos à exposição, mas que descarto de saída, pois não é necessário a um crítico seguir apenas o que o material de divulgação anuncia). Para mim, a reapresentação é a reedição de uma ideia que Lina Bo Bardi desenvolveu ao longo de mais de uma década em diversas mostras que culminaram em "A Mão do Povo Brasileiro".

A estrutura é semelhante à de uma instalação de arte. Tome-se como exemplo "Desvio para o Vermelho", que Cildo Meireles concebeu em 1967 –portanto, quase que simultaneamente à primeira montagem de "Mão". A cada exibição, "Desvio" ganha objetos vermelhos que mudam a microconfiguração original sem alterar a ideia macro da obra, cujos significados se veem continuamente ampliados.

INSTALAÇÃO

Algo similar ocorre na reedição de "A Mão do Povo Brasileiro 1969/2016", que reaproveita apenas parcialmente o acervo da primeira versão. A pesquisa museológica incorporou objetos inéditos, porém anteriores a 1969, reconhecendo assim que a expografia da mostra tem um caráter instalatório de conjunto que gera e transmite significados para além da fetichização de cada objeto. A instalação enfatiza a poesia do gesto originário de Lina. Um crítico preguiçoso anota com espanto a audácia da equipe curatorial do Masp e, deitado em sua rede, pensa poeticamente os múltiplos e possíveis significados propostos.

Não é preciso ir longe para matutar uma ideia embrionária. Para quem caminha vagarosamente pela mostra, o que chama a atenção é que não se está diante de uma exposição de arte, mas de uma exposição que é arte. Não por acaso Lina dividiu a sua concepção com o cineasta Glauber Rocha e com o diretor de teatro Martim Gonçalves. A mão de Pietro Maria Bardi, diretor do museu à época, também está visível, mesmo que na condição de "empurrão" institucional facilitador.

Vejo a estrutura sugerida por Lina –estrutura que pode viajar no tempo, de 1969 ao presente, sem perder a sua força poética– e me pergunto: que arte é essa? Em seguida, noto com assombro o embate que se trava ali entre a "mão" do povo brasileiro e a "manufatura" do povo brasileiro.

O gesto do Masp, o Museu de ARTE (assim mesmo, sem tempos e sem limites à palavra arte) de São Paulo, recupera o universo onírico das exposições do passado, aponta o caráter lúdico de qualquer expografia e é sem precedentes no campo institucional brasileiro. Do ponto de vista de quem visita o Masp hoje, em um país que passa por uma terrível crise de identidade política, social e cultural, pressinto que Lina entendeu em 1969 que a mão do povo brasileiro entrava em processo de extinção.

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Vista de exposição
Vista de exposição "A Mão do Povo Brasileiro" em 1969

A manufatura industrial preparava-se então para alcançar uma nova escala, suprimindo, ao invés de incorporar, a expressão artesanal. Não foi o que se viu na Itália dos anos 1950 e 1960, quando a mesma manufatura industrial integrou "a mão do povo italiano" ao design de sapatos, máquinas de escrever e carros, entre outros. Nos trópicos, ela foi simplesmente subtraída.

EXTERMÍNIO

Lina percebeu a urgência de se prestigiar, de se olhar e de se aprender com o gesto da mão de um povo. A palavra "arte" não está no eloquente título da mostra. A oposição do artesanal vis-à-vis a história da arte, ainda que aludida e de fácil apreensão, é secundária.

A mão a que o enunciado se refere são matérias marcadas pelos gestos de um povo, que, intuídos, transmitem suas tradições estéticas por gerações. A nova "Mão do Povo Brasileiro", embora semelhante à original, escancara o extermínio desse gesto, pois a própria exposição virou peça de museu. E o que significa isso?

Levanto de minha rede com preguiça e bocejo. Relembro aquele espaço expositivo carregado de gestos humanos. Quantos movimentos foram necessários para produzir aquela infinidade de obras? Quantos procedimentos foram necessários para reproduzir a expografia décadas depois? Meu bocejo preguiçoso responde à pergunta: tenho que absorver tudo isso? Sinto a urgência e o desespero de Lina, uma estrangeira, um olhar de fora, crítico e propositivo sobre a gente.

Se a encarnação original da mostra celebrava a mão do povo brasileiro, hoje o discurso que dela reverbera é o de uma hecatombe já pressentida décadas atrás. A sua reapresentação sem objetos criados nos últimos 50 anos amplifica o desastre cultural por meio do silêncio e da ausência. A mão deixou de ser preguiçosa; hoje, se não produzir, é ociosa. A manufatura espoliou a mão, espoliou toda a história que ela nos oferecia como vocabulário gestual para um projeto de futuro; o futuro chegou. E agora?

Após a constatação espantosa da potência da proposta curatorial e institucional, volto a pensar no crítico que, ocioso, ataca a missão do museu: preservar, expor e confrontar o passado. A ociosidade só vê fetiche ali onde há trabalho e poesia. Pensa que o confronto é necessariamente entre a história da arte e a arte popular, uma interpretação óbvia no contexto do Masp.

O museu hoje revisita o seu passado e exuma os seus corpos. Amplia o debate, oferece o prazer de reinterpretar e revisitar a própria instituição e sua história. Em vez de privilegiar pensamentos estanques, baseados em noções enraizadas próprias de quem não revisita o passado, o museu celebra o futuro por meio de sua história.

O gesto de Cypriano reencena (aqui cabe o verbo encenar) de outra forma, mas se valendo de conteúdo semelhante, a hecatombe para a qual a reexposição de "A Mão do Povo Brasileiro 1969/2016" alerta: o extermínio da mão de um povo pelo extrativismo da manufatura industrial predatória.

O silenciamento forçado daquilo que se pode chamar de voz própria é o que nos deixa sem ferramentas para o debate com vistas ao estabelecimento de um novo contrato social.

No campo do diálogo político, a hecatombe está repercutindo (ou sendo encenada) diariamente na soleira do museu na avenida Paulista. O gesto equivocado do crítico da Folha, ironicamente, complementa e ressalta o resgate que o Masp opera pelos gestos do curador Adriano Pedrosa e de sua equipe.

"Ai, que preguiça!", diria o herói da nossa gente. É a essa poesia que o Masp recorre para, a um só tempo, revisitar o seu passado, falar-nos das ruínas do presente e nos embarcar rumo ao futuro.

RICARDO SARDENBERG, 43, é curador independente, responsável pelas mostras de José Oiticica Filho na galeria Raquel Arnaud, e "Homo Ludens", na galeria Luisa Strina, em cartaz até 5/11.


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