Folha de S. Paulo


"The Get Down" e "Stranger Things" alimentam a nostalgia

A nostalgia é uma força grande demais na cultura pop para ser monopólio de qualquer instituição. Mas a Netflix possui uma porcentagem maior dela que a maioria, simplesmente porque o passado está embutido em seu modelo comercial.

"Se você gostou daquilo, vai gostar disto" é o slogan do algoritmo do serviço de streaming. E isso é também a essência da nostalgia cultural: o desejo de encontrar um pouco "disto" que reproduza os prazeres saudosos "daquilo" de muito tempo atrás.

Como a Netflix nos mostrou, existem maneiras diferentes de correr atrás das emoções de ontem. Você pode optar por um reboot, como "Fuller House", que levou os personagens de "Full House" para 2016. Pode retomar a história, como a continuação de "Gilmore Girls" que vem por aí.

Netflix/Divulgação
Cena da série
Cena da série "The Get Down"

Ou você pode repensar o que passou, como fazem as duas séries da Netflix que remetem a algum tempo atrás, "Stranger Things" e "The Get Down".

Diferentemente de "The X-Files" ou "Ghostbusters" de hoje, nenhuma dessas duas séries é baseada numa franquia já existente. As duas mexem com nossa memória sem convidar comparações pouco elogiosas com algum original sagrado. Podem dar certo ou não, mas pelo menos tentam reproduzir parte daquilo que nos fez amar nossas séries favoritas da infância lá naquele passado longínquo: a alegria de descobrir alguma coisa pela primeira vez.

Com "Stranger Things", Matt e Ross Duffer criaram alguma coisa que se poderia imaginar saindo da cabeça de geninhos mirins que cresceram em um Blockbuster abandonado cheio de fitas de VHS –um monstrengo costurado a partir de pedaços de Steven Spielberg, Stephen King, Wes Craven e outros.

Parte do prazer proporcionado pela série se deve à habilidade com que ela recria não apenas a vida em 1983, mas também o modo como se contavam histórias em 1983, desde a música sintetizada até as fontes Benguiat dos títulos. (A mesma coisa foi feita com "Red Oaks", da Amazon, e "Wet Hot American Summer: First Day of Camp", do Netflix). A série chegou a ter Winona Ryder no elenco, estrela de "Heathers" ("Atração Mortal"), de 1988, da mesma maneira talismânica que Quentin Tarantino recrutou Pam Grier, ícone dos anos 1970, para "Jackie Brown", inspirado nos filmes do gênero blaxploitation.

"Stranger Things" é uma salada de referências, tramas e tropos. O que a eleva é o modo como ela contempla suas inspirações contando com a vantagem da visão retroativa (secundária, pelo menos: os irmãos gêmeos Duff nasceram em 1984, o ano seguinte ao ano em que a história acontece). Os artefatos vintage são gastos; um pouco de seu brilho spielbergiano se perdeu. A cidade no Indiana onde tudo acontece parece um pouco enferrujada e perigosa, mesmo antes de o monstro e os cientistas perversos aparecerem em cena.

No papel de Joyce, cujo filho Will é sugado para um plano existencial paralelo, Winona Ryder representa o tipo de personagem de mãe solteira que é comum em filmes como "E.T., o Extraterrestre", do início dos anos 1980, uma época de altos índices de divórcio. Mas suas circunstâncias de vida são um pouco mais difíceis. (Por exemplo, ela tem dificuldade financeira em repor o telefone que Will explode em sua tentativa de se comunicar.)

Enquanto isso, os personagens teens ao mesmo tempo lembram e reagem a seus antecessores de filmes de terror, como Nancy (Natalia Dyer), que transa com seu namorado, mas nem por isso vira comida de monstro como castigo.

"Stranger Things" não é revolucionário: é um "s'more", um quitute tradicional e delicioso devorado em volta de fogueiras de acampamento, o tipo de filme de verão que a temporada real de cinema do verão não nos deu. Mas a série consegue oferecer uma dose agradável de nostalgia -a atração de tempos mais simples, mais inocentes–, e, ao mesmo tempo, deixar transparecer que aqueles tempos na realidade não foram nem mais simples, nem mais inocentes.

"The Get Down" realiza o contrário: pega um período que ficou marcado na história popular como sendo péssimo e o converte em um momento brilhando de possibilidades.

Desde "O Verão de Sam", de Spike Lee, até a minissérie da ESPN "The Bronx Is Burning" (baseado no livro com o mesmo título de Jonathan Mahler, do "New York Times"), 1977 sempre foi retratado como o ano em que Nova York chegou ao fundo do poço. "The Get Down", uma história que supostamente mostra a origem do hip-hop no Bronx, o apresenta como o ano em que uma nova cultura urbana alçou voo, algo que parecia impossível.

Isso se deve em parte à influência do criador Baz Luhrmann, que nunca se deparou com um tema que não se disponha a cobrir de glitter. A sensibilidade de "The Get Down" é marcada pela alegria, mais "O Mágico Inesquecível" que "Warriors - Os Selvagens da Noite". Pode haver prédios destruídos em incêndios criminosos, pode haver assassinatos ostentosos, como se tivessem sido dirigidos como filmes de arte, mas o verdadeiro amor da série é reservado às limusines cor de laranja e às calças disco justas.

O pastiche estilístico da série não é tão declarado quanto o de "Stranger Things", mas "The Get Down" encara ainda mais diretamente a concepção popular de sua ambientação. Onde esperamos ver problemas, a série enxerga oportunidades: chances para a invenção e a auto-invenção, mesmo que isso dê trabalho.

Em comparação com o drama musical sombrio (e agora cancelado) da HBO ambientado nos anos 1970, "Vinyl", "The Get Down" é principalmente uma história sobre jovens. Ela se recusa a ser pessimista, e o elenco é formado por atores jovens e vibrantes como Justice Smith e Herizen Guardiola, cujas atuações sempre contêm uma dose de vitamina C mais que suficiente por um dia.

Como "Stranger Things", com seus walkie-talkies do tamanho de tijolos, "The Get Down" converte tecnologia pré-digital (toca-discos e LPs marcados com giz de cera) em fetiche, como uma maneira de libertar adolescentes criativos. No meio da temporada o Bronx é atingido pelo notório blecaute de 1977, cujo caos e saques resultaram em jovens tendo acesso a toca-discos e placas de mixagem, ajudando a criar uma forma de arte americana.

"Stranger Things" é muito mais plenamente formado. "The Get Down" sofre o efeito de uma ambição indisciplinada de ser todas as histórias –melodrama, história, romance, comédia musical, intriga política. A série possui momentos eletrizantes, mas só fica focada de modo intermitente, nas duas últimas horas de sua temporada inicial de seis capítulos.

Mas as duas séries são exemplos animadores de como usar a nostalgia para muito mais do que apenas doses baratas de "Lembra disso?". Como os DJs de "The Get Down", elas praticam uma espécie de arte da coleta, criando ritmos cinéticos novos a partir de amostras e ganchos familiares. Não falta televisão que nos convida a reviver o passado, mas pode ser muito mais interessante remixá-lo.

Tradução CLARA ALLAIN


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