Folha de S. Paulo


Quatro poemas líricos de Ricardo Domeneck

SOBRE O TEXTO Os poemas aqui reproduzidos estarão na nova edição de "Cigarros na Cama". Ao livro de 2011 foi acrescida a seção "Lamúrias Posteriores para os Ouvidos Moucos d'O Moço", que inclui estes e outros poemas líricos inéditos. Com a publicação, a editora Luna Parque dá início, no fim de outubro, a projeto de reedição de livros de poesia. Ao lado de "Cigarros na Cama", sai ainda nova edição de "Risco no Disco" (1981), de Ledusha.

Rodrigo Visca

Eu culpo minha corcunda,
me debrucei
demais sobre você,
esse foi meu primeiro
tropeço.
E ao embalo do seu colo,
notei logo tudo encavalar-se.
Fui seu contrapeso
de gangorra,
seu cavalo-de-balanço
capenga.
Eu corria as mãos
por suas ancas
fortes e moças
e sentia já nas minhas
os sintomas
do engessamento.
Você dançava
e eu me descadeirava,
eu expectorava
e o seu peito subia e descia
calmo. Escute o meu: range
feito roda de carroça.
E quando seus olhos
vagavam para fora
da janela, era
como se eu
fosse defenestrado.
Já era ele
este outro
que você buscava
longe, fora da sala
onde meu corpo
estava tão
ao seu alcance?
Em que momento
um eu
que era um
passa a ser só outro,
outro só?

.

Antídotos matinais,
o primeiro cigarro
e xícara de café,
as pernas bambeiam,
a cabeça fica leve,
é como experimentar
o seu amor de novo
por três segundos
toda manhã.

Só em caso de emergência

na precisão
de um transplante
eu doaria a você
um pulmão um rim
meio fígado falido
& se no presídio
sem grana de fiança
acarretaria os custos
ou roubaria um banco
em alto estilo-bonnie
desde que você
me desclydeficou
& se feito refém
do pentágono
da al-qaeda
de aliens
da yakuza
eu em resgate
com direito a
cavalo estandarte
e mil trombetas
mas não
não tenho tempo
para o cinema
não nãotenho tempo
para um café
não não tenho
tempo
como vai
tudo bem

Contando os dias

1884 anos atrás, num dia deste mês de outubro, Antínoo há-de afogar-se no Nilo.
1854 anos depois, num dia deste mês de outubro, O Moço há-de nascer.
:
ou
:
1884 anos atrás,
num dia (como outro qualquer)
deste mês de outubro,
Antínoo há-de morrer
entre as margens do Nilo.

1854 anos depois,
num dia (como outro qualquer)
deste mês de outubro,
O Moço
há-de nascer
às margens
do Reno.
:
ou
:
Antínoo morreu hoje.
Começo a contar os 677.176 dias até o nascimento d'O Moço.
:
ou
:
Estou em Paris. Hoje é 14 de julho de 1789 e fazem muito barulho fora da janela de minha cama.
Suo só. Quero apenas dormir. O Moço ainda não nasceu.
:
ou
:
Depositei hoje flores às margens do Reno. Fiz uma oração por Antínoo, a um Deus que ele não adorou.
:
ou
:
Soube que um substituto meu tornou oficial a religião dos escravos.
Desaprovam as lindas estátuas de Antínoo. Quereria morrer no Nilo, mas espero às margens do Reno.
:
ou
:
Antínoo é morto. O Moço ainda não nasceu. Minha mulher queixa-se de minhas lamúrias pelos cantos. Ela chama-se Sabina. Raptem-na, por favor.
:
ou
:
– Eclodiu a Guerra!
– Onde?! Não façam crateras onde há-de nascer O Moço!
:
ou
:
Houvesse nascido às margens do Reno quando Antínoo ainda não singrara pelo Nilo, teria eu chamado O Moço de bárbaro? Não. Sob minhas tetas de loba, substituiria a Rômulo e Remo.

RICARDO DOMENECK, 39, é escritor, autor de "Medir com as Próprias Mãos a Febre" (7 Letras).

RODRIGO VISCA, 36, é artista plástico.


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