Folha de S. Paulo


Tuca Vieira mostra levantamento de imagens para mapear São Paulo

RESUMO O crítico e curador discute exposição do fotógrafo Tuca Vieira, em cartaz na Casa da Imagem até 16/10. Com o título de "Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Arredores", a mostra evoca a tradição da representação cartográfica e dos antigos guias urbanos, que agora cedem terreno aos dispositivos eletrônicos.

Tuca Vieira
"111 Cidade Tiradentes, São Paulo"

O conhecimento enciclopédico, a ilusão de conhecer algo em profundidade, ilimitadamente, é uma vertigem. Antigamente, a impossibilidade de conhecer o mundo todo levava ao atlas. O conhecimento direto era substituído por ferramentas impressas. Hoje, elas são digitais e nelas também se navega com enlevo, com a imaginação alimentada por perspectivas e vertigens exponencialmente maiores, mas sem o recurso dos dedos deslizando sobre a topografia sutilíssima do papel.

Em 1971, o artista Douglas Huebler deu início a mais um dos seus projetos, "Variable Piece #70 (in Process) Global" (obra variável n. 70, em progresso, global), que consistia em "documentar fotograficamente a existência de cada pessoa viva antes que ela morra". O propósito, como se vê, tem muito mérito; afinal, "humanidade" é apenas um conceito, um conjunto tão imenso quanto abstrato e cuja verificação deve ser tentada, ainda que seja aparentemente impossível.

Para cientistas e artistas, a conclusão a curto prazo dessas construções utópicas parece não importar muito. De fato, a materialização de algumas de suas proposições mais ousadas parece ser uma questão de tempo. Se em 1865 a ida à Lua parecia ser mais um delírio de Júlio Verne, como fantasiou em seu clássico sobre o tema publicado naquele ano, hoje em dia qualquer espírito sensato não põe em dúvida a possibilidade da descoberta do teletransporte, semelhante ao utilizado pela trupe do "Jornada nas Estrelas".

Há muito os artistas, exploradores dos vastos territórios das linguagens, o que fazem com agudeza, ironia e liberdade distinta de seus colegas cientistas, vêm sinalizando sobre os perigos de confundir as representações, a base de todo conhecimento, com os seus referentes; chamam a atenção para as relações flutuantes entre as palavras e as coisas, entre o mundo concreto com as metáforas que pretendem para capturá-lo. Advertem sobre isso acusando a arrogância displicente dessas construções que deixam de lado as qualidades do mundo.

Sobre esses riscos convém ler o "Dom Quixote" ou, num exemplo mais próximo e conciso, a narrativa/parágrafo de "Do Rigor na Ciência", de Jorge Luis Borges, na qual conta-se a existência de um determinado império onde a "arte da cartografia atingiu tal perfeição" que, no afã de conseguir com que fossem ainda mais aperfeiçoados, "os Colégios dos Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império". As gerações seguintes, conclui o texto, entendendo que o dilatado mapa era inútil, entregaram-no às "Inclemências do Sol e aos Invernos".

Tomando ainda a demora como corolário natural de um projeto científico ambicioso, vale lembrar o colossal empreendimento do "Oxford English Dictionary", cujo autor, James A. H. Murray, fechou contrato em 1879 para a redação de 7.000 páginas em cinco anos, prorrogáveis por mais cinco, sem prever que ele alcançaria 16.000 páginas e seria concluído em 1928, 13 anos após sua morte, ocorrida quando estava às voltas com os vocábulos iniciados com "T".

METRÓPOLE

Morador de São Paulo, Tuca Vieira foi tocado pelo mesmo impulso desses seus colegas, o mesmo ímpeto de abarcar o inabarcável. Para tanto, montou o "Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Arredores", cujos resultados parciais, que de resto nunca deixarão de o ser, está expondo na Casa da Imagem, no coração da metrópole infinita.

Seu projeto, como todos dessa natureza, nasceu de uma crítica às limitações de mapas, guias, cartas, portulanos, até as versões recentes, mais desdenhosas do mundo, com destaque ao GPS e Waze, cuja falibilidade se expressa no tom irritantemente calmo, mas peremptório, com que nos mete em becos sem saída, ruas bloqueadas, lugares remotos que preferiríamos evitar. Essas simulações, o convívio intimo com elas leva-nos à naturalização de signos, a nos acostumar com modos indiretos e cada vez mais abstratos de relacionamento com as coisas.

Tuca é fotógrafo e, portanto, sabe muito bem disso, senão não inventaria seu atlas. É que fotógrafos conviveram longamente com a ideia de que seu ofício estava mais perto da verdade, de que sua leitura era muito mais objetiva do que a dos outros –e não é justamente este o nome da lente que levam acoplada ao corpo da câmera? Fotografia era documento, certo? Bem, se ela é, e por certo que é, nem por isso se deve esquecer que qualquer coisa é também um documento. Foi do que Roland Barthes nos advertiu quando escreveu que os objetos são a assinatura do homem no mundo.

O recalque da experiência direta em favor dos signos, uma realidade de segundo grau, levou o artista a pensar a cidade a partir de uma referência clássica, um produto hoje em dia quase arqueológico, mas que já foi indispensável para todo aquele que precisava se movimentar pela cidade: o "Guia das Ruas de São Paulo". A regularidade do desenho impresso das ruas, avenidas e viadutos, em cores esmaecidas, sublima a topografia com seus desníveis em alguns casos abruptos, as cenas que se descortinam no alto dos vales, o perigo latente de certas encostas, ocupadas ou não, da vizinhança dos rios e córregos, isso sem falar na transformação incessante das edificações, no intrincado labirinto desenhado pela passagem dos moradores, a direção e a variação de intensidade dos ventos, no cheiro, nos ruídos, no tudo que se desprende de uma cidade, que a anima, que viceja ou que purga na sua superfície incessantemente.

Tendo em mente a distância dos mapas em relação ao que representam, Tuca Vieira foi ao guia e escolheu 203 pontos da metrópole, cada um deles extraído de uma página dupla, dado que cada dupla perfaz uma seção quadrada das 203 que, justapostas de acordo com seus números, compõem a retícula que se sobrepõe ao perímetro urbano de São Paulo e seus arredores. Para a escolha de cada ponto, o artista fez uso do Google Street View, valeu-se dos mapeamentos efetuados pelo satélite, escrutinou cada uma das páginas duplas, até chegar a um ponto determinado: uma esquina, um viaduto, uma ponte etc.

Ao passo que foi realizando esse minucioso e extravagante levantamento, e pode-se supor o longo tempo despendido no exame atento de uma área, com aproximações, zooms sucessivos, o artista saiu à campo. Como premissa evitou o uso da câmera de seu celular, ágil, portátil, passível de ser discretamente carregada numa cidade cheia de riscos –predicados que garantiram a difusão irrestrita do ato fotográfico e, com ela, uma banalização do olhar que o leva próximo à cegueira. Em seu lugar, saiu desconfortavelmente equipado com tripé e câmera de grande formato, além de muita energia, paciência e cautela.

Do mapa para o corpo da cidade e no mais puro estilo de Militão de Azevedo (1837-1905), o grande fotógrafo do século 19. Militão não foi apenas o magnífico autor das vistas das metrópoles nascentes como também um dos responsáveis pela democratização do acesso à fotografia. Seu estúdio, Photographia Americana, situado em frente à igreja do Rosário, em São Paulo, frequentada pela população negra, produzia fotos a preços muito mais baixos do que seus concorrentes, o que o tornava acessível a toda gente.

Armado com seu aparato tecnológico um tanto quanto anacrônico, a exigir muito tempo e esforço no transporte de sua casa até o ponto escolhido, em muitos casos de acesso difícil ou simplesmente distante, Tuca procedia sua montagem não sem antes efetuar a necessária revisão "in loco" das opções sugeridas pelo Google. Feito tudo isso, ultimava o processo fazendo a escolha do ângulo e do motivo a ser fotografado e, como um legítimo lambe-lambe, eventualmente sob os olhos desconfiados dos que não tiravam satisfação porque julgavam tratar-se de um técnico da prefeitura, ele finalmente tirava a foto.

Com esse ritmo lento, com essa complexa liturgia envolvendo um delicado e imponente maquinário fotográfico, com o seu "Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Arredores", Tuca Vieira dignifica simultaneamente o objeto de análise, a cidade, o mapa fotográfico produzido a partir dela, e o olhar que os produz.

AGNALDO FARIAS, 61, é crítico, curador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.


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