Folha de S. Paulo


O mundo do tradutor da saudade português Eduardo Lourenço

RESUMO O crítico e filósofo português Eduardo Lourenço, 93, é retrato nesta reportagem, em que opina sobre temas europeus, entre outros. Intelectual de renome, com livros publicados no exterior e reconhecimento na França, ele permanece ainda pouco conhecido no Brasil, onde morou, na década de 1950, na Bahia.

Claudio Leal/Folhapress
Eduardo Lourenço em seu escritório em Lisboa
Eduardo Lourenço em seu escritório em Lisboa

Tomado de ares apressados, Eduardo Lourenço atravessa a porta e convida a um passeio para comprar os jornais, seu ritual de todas as manhãs em Lisboa. "Vamos?" O táxi parte da Fundação Calouste Gulbenkian até um jornaleiro na av. Duque de Ávila, e a altura tal o crítico e filósofo português pede: "Espere aqui". A ligeireza de seu regresso exibe mais equilíbrio do que o natural para um homem de 93 anos.

No carro, a agitação das ideias propaga jovialidade. Sem paixões futebolísticas, demonstra pasmo com o amargor dos franceses em seguida à derrota para a equipe de Portugal, campeã da Eurocopa 2016. "Uma nação como a França, que tem uma imensa influência cultural, manifesta complexo por ter perdido para a seleção de um país pequeno. A França!", sorri, no banco de trás.

"Isto aqui é o caos", avisa Lourenço, minutos depois, em seu gabinete na Gulbenkian, onde exerce o cargo de administrador não executivo ou, sendo mais simples, conselheiro.

As duas luminárias pretas se erguem como aves pernaltas no ambiente de livros, jornais e recortes amontoados sobre as mesas. Ele aperta o botão da persiana e faz nascer uma paisagem verde e solar, cheia de árvores. A dieta jornalística inclui a leitura cotidiana do jornal espanhol "El País" e dos portugueses "Público" e "Diário de Notícias". "Podemos passar as manchetes?", sugere. O terrorismo na França, o "brexit" –a saída do Reino Unido da União Europeia, vitoriosa em referendo– e os abalos no bloco econômico sobressaem nas edições.

"A Europa vive uma grande crise", lamenta o europeísta convicto, e vira uma folha. "O problema é que a Europa, como ator único na ordem histórico-política, nunca existiu, a não ser sob a forma mítica e fantástica do Império Romano. A Europa é um Império Romano que não é Império Romano há muito tempo", avalia Lourenço, que em 1994 publicou a primeira edição do livro de ensaios "A Europa Desencantada: para uma Mitologia Europeia" (Gradiva).

Na base de seu diagnóstico, há mais tolerância do que censura. "Eu penso que os britânicos querem sair porque não confiam no destino europeu como estava a ser projetado. Quer dizer, a construção centrada em Bruxelas não foi capaz de resolver problemas logo quando se viu confrontada com essa diáspora de tipo novo, que inaugurou uma nova fase de nosso relacionamento com os outros. A Inglaterra disse: 'Sou capaz de resolver melhor os problemas se não tiver aqui esses sujeitos, que são uns incapazes'."

O filósofo identifica a "conciliação do universal e do particular" na Inglaterra livre de teorias abstratas e universalizantes. "O modelo francês e depois o modelo germânico são universalistas, extremamente abstratos. O caso mais famoso é o da filosofia alemã, de Hegel, de Marx, com utopias de fundamento religioso laicizado. Mas a Inglaterra não tem esse tipo de utopia. A Inglaterra tem seu fato, aquilo que ela faz, seus interesses particulares, que podem ser universais por consequência", conclui.

CAMÕES

A relevância de Eduardo Lourenço no mundo lusófono convive com a acanhada presença de seus livros no Brasil, mesmo após vencer o Prêmio Camões em 1996. O oceano é muito largo para o mais importante crítico de Portugal. "O Brasil é um país grande e autossuficiente. Não precisa", ele brinca. A Companhia das Letras corrigiu uma parte dessa lacuna, ao lançar "Mitologia da Saudade" (1999) e "A Nau de Ícaro" (2001).

O clássico "O Labirinto da Saudade", de 1978, ganhará a primeira edição brasileira somente neste mês, por iniciativa de Bárbara Bulhosa, diretora da Tinta da China. Na sequência, ela organizará a coletânea "Réquiem por um Império que Nunca Existiu", com artigos de Lourenço sobre o colonialismo.

Em 2015, a editora portuguesa Gradiva reuniu seus principais ensaios de temática brasileira no volume "Do Brasil: Fascínio e Miragem". Agora, a Calouste Gulbenkian publica o terceiro volume das obras completas de Lourenço, "Tempo e Poesia".

A França, terra natal de sua mulher, Annie Salomon (1928-2013), tornou-se sua segunda casa, onde viveu por 60 anos e lecionou na Universidade de Nice. Pela Gallimard, lançou "Une Vie Écrite" (uma vida escrita), e receberá em dezembro uma homenagem da Academia Francesa.

"Acho estranhíssima a ausência de uma edição de 'O Labirinto da Saudade' no Brasil. Na literatura, a partir de certo momento, houve um distanciamento entre os dois países", afirma Bárbara Bulhosa, na sede da Tinta da China. Outros escritores do catálogo da editora são Agustina Bessa-Luís, Antero de Quental e Herberto Helder.

"Fernando Pessoa Revisitado" (1973), de Lourenço, estabeleceu-se como incontornável nos estudos sobre o poeta de "Mensagem". "Os pessoanos não perdoam. Nós somos uma tribo, uma seita", gracejou o crítico durante um almoço. "Lourenço ajudou a nos fazer entender que Pessoa voltou a Portugal para mostrar que nós éramos provincianos. Portugal não passava de um rascunho", relembra o artista Fernando Lemos, 90, ligado ao surrealismo português e radicado no Brasil desde 1953.

Suas intervenções não se restringem à filosofia e à literatura. O ânimo ensaístico conduziu Lourenço aos caminhos do cinema, da música e das artes plásticas. E da política, como comprova o convite do presidente português Marcelo Rebelo de Sousa para que integre o Conselho de Estado.

Quatro anos depois da Revolução dos Cravos, que encerrou o ciclo da ditadura salazarista, "O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Povo Português" empreendia uma revisão da mitologia colonial e do pujante heroísmo lusíada, robustecidos em prosa e poesia desde a era das Descobertas, mas deteriorados nos anos 1970 pelas onerosas e fracassadas guerras para manter o domínio sobre Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

O ensaísmo de Eduardo Lourenço enreda literatura, história e filosofia, firmando um projeto crítico sem afetações acadêmicas, em que os mergulhos na lírica lusitana se equilibram com um olhar externo questionador da imagem irrealista que os portugueses têm de si mesmos. Os escritores Luís de Camões, Almeida Garrett, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes ressurgem entre a consciência individual e o destino coletivo da pátria. A liberdade de seu estilo tem fragrância de Montaigne.

Segundo o filósofo, a saudade colou-se à identidade portuguesa, que se curvou a um passado heroico e sonhado, numa descida ao coração do tempo. "A saudade (que mais podia ser?) é apenas isto: a consciência da temporalidade essencial da nossa existência. Consciência carnal, por assim dizer, e não abstracta, acompanhada do sentimento subtil de sua irrealidade", constatou no ensaio "Da Saudade como Melancolia Feliz".

A palavra é recorrente nas suas conversas. Na hora de falar da "mestra das mestras", não se esquece de pedir: "Se encontrar Cleonice Berardinelli, diga que ando com saudades". Lourenço pausa e observa: "O conteúdo real da saudade não é outro que esse momento a nenhum outro comparável como o da nossa infância. Portanto, a nossa infância não é passado, é o passado-futuro. Essa é a verdadeira etiologia do que nós chamamos 'a saudade'. Ultimamente, essa temática sofreu uma espécie de universalização de outro gênero devido a Amália Rodrigues. Há o fado antes da Amália e depois da Amália".

BRASIL

Na aldeia São Pedro de Rio Seco, distrito da Guarda, onde nasceu em 1923, Eduardo Lourenço de Faria descobriu o Brasil dentro da arca de livros do pai militar. Nessa biblioteca de sótão, perdido entre as obras do francês Júlio Verne e do português Júlio Dinis, encontrou um romance do brasileiro Coelho Neto. Em outra dependência, atravessava a "Encyclopédie par l'Image": "Meu fascínio, como todo maluco, era por Napoleão Bonaparte".

Mais de uma década depois de licenciar-se em ciências histórico-filosóficas na Universidade de Coimbra, Lourenço realizou a primeira viagem ao Brasil, onde viveria entre 1958 e 1959, como convidado da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia.

Antes desse desembarque, estagiara na França e lecionara na Alemanha, e não podia sentir-se mais alienígena do que em Salvador, a ex-capital de um país que pensava ser "um Portugal maior". Os fragmentos de seus diários sugerem decepção e melancolia nessa temporada.

"É o engano de um português normal", reconhece Lourenço. "Eu já não era muito português, era muito europeu, no sentido banal da palavra. Era muito colonizado. De resto, considero que nós somos filhos dos romanos, somos colonizados romanos. São nossos fundamentos."

A lição suprema caiu do céu. Com os alunos, acertou uma tolerância de 15 minutos para os atrasos, não demorando a ver as aulas de fenomenologia começarem ainda mais tarde. Carrancudo, reclamou do abuso, mas logo foi repreendido por uma estudante: "Professor! Estava chovendo...".

"Aquela frase foi um desarme total. Era outro mundo, outra sensibilidade, outra maneira de ser, uma doçura que já não existe em países que a gente julga mais racionais que os outros. O Brasil!", Lourenço se enternece.

Levado por Jorge Amado, completou o doutorado informal em brasilidade no Ilê Axé Opô Afonjá, o terreiro de Mãe Senhora, de cujo ritual se afastou quando sentiu um torpor. Amolecido pelos atabaques, diz ter pensado: "Não vou entrar em transe. Sou um leitor de Descartes!".

Conviveu na Bahia, brevemente, com o filósofo e ensaísta português Agostinho da Silva, que disseminou entre os alunos uma versão sofisticada do sebastianismo, sob influência de Fernando Pessoa. "O Brasil não precisa de 'dons sebastiões'. É ele próprio o dom Sebastião. É sebástico. Há alguma coisa que teve que se autoinventar", acredita Lourenço.

"Enquanto língua e cultura, o Brasil não nos põe nenhuma espécie de problema. É porque ele é mesmo brasileiro, não é nosso [português]. É uma criação particular da gente que foi para outro sítio e foi criando uma cultura própria, uma experiência própria, com um território próprio, que é já uma linguagem fabulosa, sem leitura imediata, mas que se impõe quase como uma coisa cósmica. Nem os Estados Unidos têm um espaço tão fabuloso."

Há entusiasmo em seus comentários sobre a formação da autonomia literária brasileira e o surgimento do "maior milagre cultural", chamado Machado de Assis.

Em Salvador, o jovem Glauber Rocha apresentou-lhe "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. "Não fazia nem ideia de que espécie de livro podia ser esse de que ele falava com tanto entusiasmo. É um livro único na história moderna do Brasil. Não é mais conhecido pela dificuldade da língua. Os próprios brasileiros têm dificuldades", ressalta, acrescentando que Guimarães Rosa e Clarice Lispector teriam merecido o Nobel de Literatura.

Na adolescência, aproximou-se da obra de Erico Verissimo e, desde os anos 40, Jorge Amado merece seu afeto de leitor. Glauber foi uma descoberta igualmente precoce. "Deus e o Diabo na Terra Sol", dirigido por aquele garoto de prosa diluviana, não deixou de espantá-lo: "A força do filme parecia vir do nada".

Deseja retornar ao país. Desconfia que a saúde não permitirá um voo longo. Pelos jornais, inteirou-se com tristeza sobre a crise política e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. "As pessoas ficam muito assustadas quando acontecem coisas no Brasil que não correspondem a essa imagem mítica que nós cultivamos. A gente nem entende. Não é o que aconteceu, é a maneira."

FREYRE

O sociólogo Gilberto Freyre (1900-87) permanece como uma questão delicada. Em 1961, Eduardo Lourenço escreveu "A Propósito de Freyre", uma resenha de "A Propósito de Frades" na linha de ataque ao "sociologismo polêmico e apologético" do lusotropicalismo e à "pouca ou nenhuma seriedade objectiva e o falso brilho de fórmulas feitas". Convidado a reavaliar seus reparos ao autor de "Casa-Grande & Senzala", o crítico levanta os braços: "Pois é! O raio deste artigo!". As velhas opiniões ganham nuances.

"Ele tinha vindo a Coimbra, eu assisti. Os portugueses estavam todos contentes porque o que ele estava ali a fazer era a apologia do exotismo ibérico ou brasileiro. Ótimo, por que não? Não era esse o problema. O problema era que o Estado Novo [de Salazar] queria servir-se dele", sustenta o opositor do salazarismo e da guerra colonial (1961-74). "Portugal tornou-se, rapidamente, muito isolado no mundo. O nosso ponto de vista mítico de séculos atrás não precisava ser defendido." Apesar das distâncias políticas, Lourenço reconhece a originalidade de Freyre: "De fato, tem um papel de muita importância na autoconsciência que os brasileiros tomam das suas formas de vida novas, que aparecem ali devido a esses cruzamentos todos de que o Brasil foi palco. Foi importante, não desconheço isso, mas, naquela altura, objetivamente, era o único aliado importante de que o regime se podia prevalecer. Ajudava a prolongar uma coisa que já estava errada".

Nada complacente com a direita e a esquerda –problematizou há tempos o "marxismo afetivo" alastrado em Portugal–, Lourenço resiste a qualquer definição ideológica: "Ninguém sabe. Nem eu!". Três semanas se passam até um novo encontro, e ele afasta com uma gargalhada a hipótese de ser um "cristão existencialista". "Não sei se eu mereço. Nasci cristão, naturalmente, como quase toda a gente do meu tempo. Ser cristão não é dificuldade. Eu sou aquilo que as pessoas leem", enfim proclama.

Nonagenário, tampouco se enquadra em disciplinas de escritor. Impôs-se uma só regra nos últimos anos: "É perder mais alegremente possível o meu tempo. Sou muito disperso. Faço tudo e não faço nada". As colunas no "Jornal de Letras" são escritas a mão, e assim criou sua obra ensaística, pois jamais concedeu intimidade às máquinas de escrever e aos computadores.

A quantidade de livros recém-lançados, em suas mesas, atesta que o radar de crítico segue ligado. "Alguns me interessam, outros me interessam menos. Mas continuo a acompanhar. Se a pessoa deixar de ter interesses, já morreu."

Depois de analisar as saudades míticas, o crítico aceita dizer qual é a que vivencia em silêncio. Lourenço respira, reflete e regressa ao amor pela hispanista Annie Salomon, sua mulher e tradutora, morta em 1º de dezembro de 2013.

"Quase todas as vivências se concentram numa só experiência humana: a relação particular que nós tivemos com alguém. Nós chamamos 'amor'. Sobretudo se essa experiência já não é mais possível. Essa é a vivência capital: a ausência daquilo que nunca mais volta. A ausência absoluta", confessa Lourenço, com os olhos saudosos e avermelhados. Fixado em definitivo em Lisboa, consola-se nas visitas ao filho, Gil, aos dois netos e aos três bisnetos.

No verão português, passeia no jardim da Gulbenkian. O sol bate duro no corpo. "Temos um desastre da natureza. Aquela árvore vai morrer sem água. Há pouca terra. O estacionamento está aqui embaixo. Não é possível salvá-la", diz, com a melancolia de quem testemunha a agonia do tronco e o ressecamento dos galhos. Perto de caminhar sobre a grama, solta: "A árvore morta sou eu".

Um homem transfigurado, invadido por alegria fulminante, avista um arbusto florido, intensamente rosa e transbordante, uma cascata de pétalas. "É espantoso o mar de excesso, como se tudo isso fosse Brasil. Que coisa! É uma rosinha. Fico encantado. Não sei qual é o nome", ele vibra e se vai.

CLAUDIO LEAL, 34, é jornalista.


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