Folha de S. Paulo


Leia tradução de Barbara Heliodora de "Eduardo 3º", de Shakespeare

SOBRE O TEXTO "Eduardo 3º" foi uma das últimas peças a entrarem para o cânone shakespeariano, no fim dos anos 1990, após longa controvérsia sobre sua autoria. Embora se pense que o dramaturgo inglês possa ter sido só um dos autores da obra, o consenso geral é que certas partes, como a cena 2 do ato 1, da qual se extraiu este trecho, são da pena dele. Entre as fontes usadas para a peça, que trata do início da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), está "O Palácio dos Prazeres" (1567), de William Painter, base para as cenas da paixão do rei pela Condessa de Salisbury, que aqui têm seu primeiro encontro. A peça foi a última tradução feita por Barbara Heliodora (1923-2015) e sai no terceiro volume do "Teatro Completo" de Shakespeare, que a Nova Aguilar lança em outubro.

(Entra a Condessa de Salibsury.)

Rei Eduardo Essa é a condessa, Warwick, não é mesmo?

Warwick É; cuja beleza assusta os tiranos,
Ou como o vento mau a rosa, em maio,
Suja, seca, sombreia, e assim destrói.

Rei Eduardo Já foi mais bela, Warwick, do que é?

Warwick Senhor, ela não seria nada bela
Se ela estivesse aqui, pra manchá"'la,
Como eu a vi no tempo em que era ela.

Rei Eduardo Que estranho encanto teriam seus olhos
Quando excediam o excelso de agora,
Se em seu declínio podem atrair
Quais súditos meus olhos majestosos,
Que os olham com excessiva admiração?

Condessa Com humilde dever eu me ajoelho
E com os joelhos curvo o coração,
Símbolo de obediência a sua alteza,
Com milhões de gratidão de súdita,
Pela sua presença só por próxima
Expulsou meu perigo dos portões.

Rei Eduardo Levante-se, senhora; trago a paz,
Mesmo que seja comprada com a guerra.

Condessa Não sua; os escoceses já se foram;
Galopam pra Escócia com seu ódio.

Rei Eduardo Pra não ceder aqui a vil amor,
Vamos nós persegui-los. Venha, Artois.

Condessa Bom soberano, detenha-se um pouco;
Deixe o poder de um grande soberano
Honrar nossa casa; o conde, na guerra,
Ao sabê-lo há de sentir-se triunfante.
Então, senhor, não poupe sua condição
De estando aí não cruzar o portão.

Rei Eduardo Perdão, condessa; não chego mais perto
Sonhei com traição, e sentir medo é certo.

Condessa Traição daqui não vai se aproximar.

Rei Eduardo (À parte.)
Não mais que esse fascinante olhar,
Que me envenena assim o coração,
Sem cura por ciência ou por razão.
Ele não está ao sol só, afinal,
E sua lua tira a luz de olho mortal;
Duas estrelas diurnas posso ver
Que mais que o sol fazem"'me luz perder.
Desejo contemplativo é desejar
Que possa a contemplação dominar.
Warwick, Artois, montem; vamos embora.

Condessa Que mais posso dizer ao soberano agora?

Rei Eduardo (À parte.)
Pra que língua, se os olhos falam tanto,
Falando mais que da oratória o encanto?

Condessa Não seja sua presença sol de abril
Que alegra a terra e logo vai, sutil;
Não deixe mais alegre o muro externo
Do que seria a honra ao lar interno.
Nossa casa, senhor, qual camponês,
De forma rude e simples é cortês.
Sem pretensão, por dentro é adornada
Co'a riqueza do campo, que é ocultada.
Onde do ouro a riqueza está deitada,
Não tem flores o chão da natureza;
É infrutífero, estéril, tem dureza;
E onde a relva faz reconhecido
O seu perfume multicolorido,
Cave e veja que o produto cantado
No esterco e no que é podre foi plantado.
Pra limitar essa comparação,
Em que estado os muros 'stão:
Bem melhor do que o que digo é, assim,
Convencer-se por si, e não por mim.

Rei Eduardo (À parte.)
Sábia e bela; que paixão pode ouvir
Se uma à outra de guarda vem servir?
Condessa, meu labor me chama embora,
Mas o adio, pra servir a senhora. -
Senhores, hoje à noite aqui sou hóspede.

(Saem.)

WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616) poeta, dramaturgo e ator inglês.

BARBARA HELIODORA (1923-2015), nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, crítica, ensaísta, professora e tradutora carioca.

DEA LELLIS, 32, é ilustradora e tem uma loja de biscoitos artesanais, a Cias. do Chá.


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