Folha de S. Paulo


Marc Ferrez e o Rio de Janeiro que virou paisagem

RESUMO Autor comenta coletânea de fotos de Marc Ferrez sobre o Rio. Com arte, mas também com artifício, o fotógrafo, um entusiasta das novas tecnologias, construiu uma cidade que se confunde com a paisagem ou nela desaparece. Onde estariam seus habitantes? –perguntaria alguém que visse imagens tão belas e paradisíacas.

Algumas vistas antigas de cidades –os pomares de frutos cítricos de Los Angeles, a carroça a cavalo numa viela enlameada do centro de Buenos Aires– são intrigantes porque nos mostram lugares hoje irreconhecíveis. Velhas imagens do Rio de Janeiro, no entanto, são intrigantes justamente porque o que mostram é muito reconhecível. Isso tem a ver com a paisagem, mas, sobretudo, com a forma como ela é retratada.

Essa continuidade aparece em "Rio" [Instituto Moreira Salles/Steidl, 264 págs., R$ 195], coletânea de fotos em que Marc Ferrez registrou a cidade na "belle époque". Com suas grandes florestas cobrindo montanhas de granito, suas praias claras ao longo da baía resplandecente, o Rio de Ferrez é uma límpida capital moderna erguida num cenário que é quase uma visão religiosa do Paraíso. Essa cidade tão gloriosa parece feita para que vejamos o criador como um jardineiro benevolente.

Para os turistas olímpicos – aqueles que não tenham sido repelidos pelas ameaças de esgoto a céu aberto e de doenças transmitidas por mosquitos–, o Rio de Ferrez pode ter parecido uma cidade distante anos-luz da enorme metrópole grafitada de hoje. Mas um olhar atento revela que, apesar das mudanças ocorridas no último século, algumas semelhanças persistem, menos na cidade do que na vista altamente estetizada que aqui se expõe.

O Rio é uma cidade que, hoje como então, parece ter sido feita para ser fotografada, e Ferrez foi um dos primeiros a percebê-lo. Em sua longa carreira, ele se valeu de cada inovação que surgia para retratá-la. Ele nasceu em 1843, apenas quatro anos após a descoberta de Daguerre ter sido anunciada em Paris, e ao morrer, em 1923, era proprietário de uma cadeia de cinemas. Sua vida e obra abrangeram muitos temas, mas o principal foi sempre sua cidade natal.

Ele foi o primeiro fotógrafo a arrastar seu pesado equipamento para o alto do Corvocado e do Pão de Açúcar, a apontar sua câmera para as longas fitas da orla de Copacabana e de Ipanema. Ainda hoje, cerca de cem anos depois de sua morte, ainda vemos a cidade pelos seus olhos. Agora mesmo, exatamente onde ele se postou, turistas e cariocas se postam, sorrindo para seus celulares. O Rio, em grande parte graças a Ferrez, é uma cidade feita de vistas.

Essas vistas são magníficas, de tirar o fôlego. Com suas longas exposições e seus acetinados tons de prata, Ferrez capturou um lugar que parece mais do que simplesmente uma cidade –um lugar que parece aspirar à condição de metáfora. Iniciada um ano antes da morte do fotógrafo, a construção do gigantesco Cristo Redentor no alto do Corcovado viria reforçar a visão que ele tinha da cidade como algo sobrenatural.

Tal visão é artística e vem, como o próprio fotógrafo, de uma linhagem de artistas. Seu pai era um escultor da região do Jura, chamado Zéphyrin Ferrez, que chegou ao Brasil com a Missão Francesa de 1816 –um dos inesperados presentes que Napoleão legou à cidade.

Quando o francês invadiu Portugal em 1807, a inteira Corte portuguesa, com suas 15 mil pessoas, abandonou Lisboa e se refugiou no Rio. A capital recém-batizada precisava desesperadamente de um upgrade, e dom João 6º convocou para a tarefa uma batelada de artistas e arquitetos da Europa. Muitos permaneceram após a independência ter sido declarada.

Por estranho que pareça, a arte mais fervorosamente patriótica do Brasil independente foi produzida por estrangeiros, a serviço de uma dinastia estrangeira. Até segundo os padrões do romantismo, ela era altamente romântica; mesmo segundo os padrões de uma Europa enlevada por fantasias rousseaunianas a respeito dos trópicos, ela se destacava pela voluptuosidade. Era o Brasil feito paraíso, feito musa: feito destino turístico.

ÓRFÃO

Aos sete anos, Marc Ferrez ficou subitamente órfão e foi mandado para a França, voltando para o Brasil já como homem feito. Ao longo da vida, suas viagens frequentes ao país paterno lhe possibilitaram manter-se a par do veloz desenvolvimento da fotografia.

Em 1878, ele trouxe para o Rio uma pioneira câmera panorâmica adquirida em Paris. A partir daí, seu trabalho começaria a se aproximar das vistas mais antigas –paisagens pintadas– da cidade.

A estupenda natureza do Brasil parecia ter sido feita para os panoramas, mais ainda numa época em que eles eram concebidos como entretenimento para as massas. Já em 1827 havia sido exposta em Londres, em plena Leicester Square, uma enorme "View of the city of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro" (sic –vista da cidade de São Sebastião e da baía do Rio de Janeiro).

O panorama permitiu que Ferrez capturasse a cidade como o visitante a experimenta hoje, de pé sobre picos, estendendo o olhar por sobre as praias. Essas fotos também empregaram uma gama de convenções pictóricas: Ferrez frequentemente se valia de palmeiras como um recurso para emoldurar uma cena, um tópico da pintura tropical no Brasil que remonta aos quadros do paisagista holandês Frans Post no século 17.

As vistas panorâmicas de Ferrez também incluíam novidades modernas, como demonstra a imagem intitulada "Entrée de la Baie (Effet de Nuit)" (entrada da baía - efeito noturno). Da lua coruscante na baía às escuras nuvens de tempestade que se acumulam em torno ao Pão de Açúcar, a imagem é um tratado das possibilidades da fotografia em branco e preto; exibe efeitos tão dramáticos que todo fotógrafo amador se pergunta como, exatamente, foi produzida.

Mas, se o Rio parece feito para a câmera, isso se deve ao fato de que, em larga medida, foi mesmo. Olhar essas fotos é se perguntar quanto são arte, e quanto artifício. É uma velha questão: a pintura europeia sempre fez a distinção entre a terra conformada –a paisagem– e a natureza bruta. Uma paisagem era um arranjo humano, a não confundir com a natureza.

Na França, a "nature brute" era decididamente menos desejável que uma paisagem bem arranjada. Mas as coisas eram mais complexas no Novo Mundo, cujo apelo romântico derivava de seu estado intocado, selvagem. É esse estado que as fotos de Ferrez mostram. Luxuriantes com suas orquídeas, ruidosas com suas palmeiras, as matas ancestrais das montanhas cariocas sugerem um mundo anterior à queda do Paraíso, imperturbado pela mão do homem.

Nada nessas fotografias sugere que essa edênica maravilha, a floresta da Tijuca, não alcançava nem 20 anos em 1880, quando a maioria delas foi tomada. Ela era a floresta mais moderna do mundo; mais nova até do que o Bois de Boulogne, construído entre 1852 e 1858 –ano em que teve início a construção do Central Park.

Os trabalhos para a floresta da Tijuca começariam quatro anos mais tarde, em 1862. Era uma tarefa hercúlea, realizada por um decreto imperial (e por escravos). Ela se destinava a resolver uma questão ambiental que ameaçava a existência da própria cidade: as florestas originais haviam sido destruídas, principalmente para dar lugar a plantios de café e cana-de-açúcar, e esse desflorestamento estava extinguindo as nascentes dos rios dos quais dependia o abastecimento de água da cidade.

Há, nessas imagens, alguns sinais da presença humana: um minúsculo aqueduto, uma humilde represa, mulheres refinadas posando ao pé de uma cachoeira. Mas as plantas crescem rápido no Rio de Janeiro. Em poucos anos, a floresta retomou a velha aparência que aproxima essas fotos das vistas andinas de Frederic Edwin Church, ou das Montanhas Rochosas segundo Albert Bierstadt. Era o Novo Mundo em seu virginal esplendor; "voilà"!

CIDADE VAZIA

Uma coisa é fotografar uma floresta, por mais recente que seja, como uma paisagem. Outra é fotografar uma cidade dessa maneira. Quando Ferrez se volta para o que é inequivocamente feito pelo homem é que o efeito se torna mais perturbador. Apesar de toda pompa e beleza, a capital do Império do Brasil, uma das maiores nações do mundo, se mostra estranhamente vazia.

Em parte isso se deve ao emprego do panorama. Na cidade vista desde um promontório, ressaltam florestas e montanhas e oceanos e cumes, mas não se registram as pessoas. No entanto, ao se deparar com essa paisagem maravilhosa, o espectador curioso se pergunta quem seriam seus habitantes. O que faziam essas pessoas? Como eram? De onde vinham? Essa curiosidade não será satisfeita, pois as pessoas raramente aparecem.

A cidade ideal do Renascimento era muitas vezes retratada vazia. Quando muito, um punhado de cidadãos bem-vestidos fazia as vezes de acessório para ilustrar a escala da arquitetura. Nas fotografias de Ferrez, umas poucas pessoas em trajes elegantes passeando diante da lente cumprem com a mesma função. E mesmo quando vemos essas pessoas, raramente vemos seus rostos: as estranhas fotos de multidão revelam pouco mais que um mar de chapéus.

Nunca antes –e certamente nunca mais depois– o Rio foi tão imaculado como nas imagens de Marc Ferrez. A metrópole caótica, fedorenta e fervilhante descrita em romances brasileiros do século 19 cedeu lugar à capital reluzente, em que nenhuma praça ou parque fica sem varrer, nenhuma fachada sem pintar, na qual vastas avenidas vazias nos conduzem suavemente de uma maravilha "natural" a outra.

Em suas imagens caminhamos –completamente sozinhos– para cima e para baixo por vias suntuosas, admirando um edifício pomposo atrás do outro. Aqui, à esquerda, o Theatro Municipal. À direita, cruzando a rua, a Academia de Belas Artes. Bancos, depois prédios de jornais e logo sedes de ministérios surgem. Eis a avenida Central, e Ferrez nos mostra cada detalhe das cariátides e volutas que decoram o bulevar. Sua construção começou em 1904, sob a batuta de um prefeito não eleito, Francisco Pereira Passos, que havia estudado em Paris e sonhava refazer o Rio seguindo as diretrizes de Haussmann.

O custo, no Rio como em Paris, foi gigantesco. Para a construção da avenida Central, quase três séculos de patrimônio arquitetônico foram ao chão e quase 4.000 pessoas ficaram sem teto. Algumas foram mortas. Essa catástrofe, que gerou rebeliões sangrentas e desencadeou a formação das favelas, se justificou por uma ideologia que tinha como conceito principal a "modernização".

Misteriosamente, essa sublevação não dá as caras nas fotos de Ferrez. Quando recordamos o preço da reforma que deu origem à avenida, a ausência das pessoas ao longo dela ganha inadvertidos contornos simbólicos. É aqui que Ferrez se distancia de seus contemporâneos parisienses, aos quais é tantas vezes comparado. Não é preciso se perguntar como Charles Marville ou Eugène Atget registrariam a destruição de uma tamanha faixa de sua cidade, porque eles o fizeram. Ferrez, por sua parte, fotografou a avenida da mesma forma como fotografou a floresta da Tijuca: como uma ocorrência natural, fora da história.

É claro que –exceto quando sua arquitetura foi arrasada e seus habitantes empurrados para fora do quadro– o sujo Rio antigo nunca teve essa aparência. Porém, como sugerem palavras como "Entrée de la Baie (Effet de Nuit)", essas imagens não se destinavam aos brasileiros. Esse não é o Brasil tal como era, ou como o viam seus habitantes, mas o Brasil-feito-paisagem: o Brasil tal qual um segmento da elite brasileira queria que fosse visto pelos estrangeiros.

Em Ferrez, com suas conexões internacionais, essa fração da elite encontrou um representante perfeito. O país, deve-se dizer, tinha uma reputação terrível: "Por muito tempo tudo que a Europa conheceu do Brasil foi o imperador dom Pedro e a febre amarela", escreveu um brasileiro –em francês– no ano de 1891. Tão famosa era a insalubridade do Rio que, em sua publicidade, os navios para Buenos Aires deixavam claro que não faziam escala ali.

Nesse cenário, as imagens de limpeza e modernidade de Ferrez, com suas legendas em francês, eram extremamente políticas –propagandísticas até. O sucesso que alcançaram atesta a genialidade do fotógrafo. Em 1923, ano em que ele morreu, o Copacabana Palace foi inaugurado na mesma praia que Ferrez havia retratado como desabitada, a não ser por algumas cabanas de pescadores. Agora, o esquálido porto de escravos tinha sua Croisette, sua Promenade des Anglais.

Exatamente 200 anos após a chegada da Missão Francesa ao Rio, a cidade se preparou para receber a maior delegação estrangeira de sua história. Alguns entre as centenas de milhares de turistas que visitaram a cidade na Olimpíada certamente terão comprado esse belo livro de fotografias e olhado as imagens de um paraíso que foi transformado a ponto de se tornar irreconhecível.

Eles terão visto, por exemplo, o idílio rústico da lagoa Rodrigo de Freitas. Hoje a lagoa encontra-se poluidíssima, cercada de enormes edifícios de apartamento e estrangulada por um anel viário constantemente congestionado. Como as pinturas de arcádias perdidas, tais fotos nos fazem refletir sobre a natureza do progresso; sobre quão longe chegamos, e a que preço.

Mas é mesmo irreconhecível esse Rio? A cidade mais uma vez foi lustrada para o consumo internacional. A avenida Central, hoje avenida Rio Branco, foi refeita. Seu ponto inicial, a praça Mauá, ao lado do porto onde os escravos eram desembarcados, recebeu um edifício futurista e assustadoramente caro, concebido pelo "starchitect" Santiago Calatrava, o Museu do Amanhã.

Sua localização, seus custos, sua pretensiosa arquitetura estrangeira fazem do prédio uma contribuição digna da avenida. Mas ele é apenas uma parte dessa cidade olímpica que se redesenhou como um vasto Museu do Ontem. Esse amanhã é, de fato, o ontem de Pereira Passos, fotografado por Ferrez, pensado para eliminar da foto a população e, assim, apresentar uma bem escanhoada face ao público estrangeiro.

O prefeito atual, Eduardo Paes, acolheu as comparações ao "bota-abaixo" do século passado. Ele chegou a posar em eventos ao lado de um ator fantasiado de Pereira Passos, mas o paralelo lhe fica a dever. Mais de 20 mil famílias perderam suas casas nessa preparação, dando a Paes uma medalha de ouro todinha sua: a de prefeito que mais pobres removeu.

Políticos brasileiros de todos os partidos se uniram em torno do desejo de remover populações, em particular as negras e pobres. "O Rio de Janeiro passou, em cerca de meio século, de maior capital africana fora da África a metrópole meio portuguesa", escreve Angela Alonso no posfácio do livro. "Os dois regimes convergiram nessa inclinação, nunca satisfeitos com o povo que já tinham."

Exatamente porque são tão belas, as fotos de Ferrez merecem um tratamento além do "coffee table book", e seu tema, algo mais do que um luxuoso infomercial. Se as fachadas encouraçadas ao longo da avenida Central parecem um sonho aos nossos olhos, é porque são uma representação da cidade semelhante a que a "Architectural Digest" faria do apartamento de uma celebridade: o nome disso é pornografia arquitetônica.

E ainda assim, fica uma lição fundamental. Como nos tempos do imperador, a cidade continua ameaçada por águas contaminadas. Toneladas de esgoto correm, sem tratamento, para a baía e lagoas e praias onde competiram os esportistas. Na era de Ferrez, a cidade foi salva por um projeto ambiental audacioso que até hoje nos impressiona. Ser uma paisagem artificial, erigida pelo homem, não faz da floresta da Tijuca menos bela ou útil, e a visão de seus idealizadores –a de uma moderna cidade em coexistência pacífica consigo mesma e seu ambiente– é hoje mais urgente do que nunca.

BENJAMIN MOSER, 39, é escritor e crítico, autor de "Autoimperialismo" (Crítica).

FRANCESCA ANGIOLILLO, 44, é editora-adjunta da "Ilustríssima".

MARC FERREZ (1843-1923) fotógrafo franco-brasileiro.


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