Folha de S. Paulo


Simone Campos escreve sobre utopia especialmente para o caderno

"Não é possível que todas as coisas sejam feitas de modo bom, a não ser que todos os homens sejam bons"
Thomas Morus, "Utopia"

zé vicente

Mas nada serve pra você, minha filha? Você já viveu na Noruega, você já viveu em Lisboa, você já viveu em Nova York. Não dá vontade de parar, não? Sossegar um pouco?

Essa vida marinheira, um amor em cada porto. Você não sabe que já te olham com desconfiança? Você foi ser gay na Rússia, andar de blusa de alcinha nos Emirados, flanar pela Tailândia. Parece que gosta de dificuldade!

Por que a vida não pode ser fácil? Hein? Por que não arruma um emprego fixo? Ah, não é do seu "temperamento"? Isso te deixaria "infeliz"? Sim, você é bem isso: uma infeliz.

Ganha tanto dinheiro e não tem casa própria. Nunca pensou em comprar uma, você diz. Prefere torrar tudo sem nenhum planejamento. E agora que seu dinheiro acabou – surpresa! você corre para mim. Que nunca aprovei suas escolhas. Ah, você precisa ir ao médico. E no país que você está é caro. Em qual país você está mesmo? Pois esqueci. Equador? Bolívia? Em que buraco você se meteu desta vez? Foi por praia ou por homem?

Ahaha, a Bolívia não tem praia; que engraçadinha, você.

Olha, eu vou fazer o seguinte. Estou comprando agora mesmo sua passagem para cá. É isso mesmo. Você precisa de uma intervenção. Outro dia eu estava vendo um programa sobre acumuladores, sabe? Gente que enfia tanta coisa dentro de casa que fica sem espaço pra elas lá dentro. Uns acumulam revistas. Outros, resto de comida. Outros, gatos. Você acumula países. E não consegue jogar nenhum fora. Precisa ficar voltando e voltando, não é? Pra rever seus "amigos" estrangeiros. Ver um por um, todos eles, todo ano, que eles são sua "casa".

E eu? Eu, não.

Eu fico pensando se os acumuladores acham que o espaço deles é infinito. Que cabe tudo lá dentro, só pode caber. E você, pensa que seu coração é elástico? Que seu dinheiro é infinito? Que vai ter espaço pra tudo o que você quiser botar lá dentro? Que tudo vai dar certo no final?

Eu não sou um banco. Sou um ser humano. Que por acaso calhou de ser sua mãe.

Para com esse maldito pensamento positivo e vem pra casa.

*

Quando estiver satisfeita juro que paro de viajar. Juro.

Falta só me deixar satisfeita.

Nenhum lugar tem tudo. Aqui tem praias, porém machismo. Lá tem emprego, mas a comida é horrível. E você aí querendo que eu pense em dinheiro.

Você desvia do assunto. Essa conversa não tem que ser sobre dinheiro. Nós, mamãe querida, não temos que nos preocupar com dinheiro –e você sabe. Estamos bem pra vida inteira.

Você quer que eu finja me importar com dinheiro, e que te dê um neto. E sossegue.

Gastar dinheiro de forma decente é crucial. Não queremos parecer perdulárias. Não queremos parecer encostadas. Não queremos que desconfiem –que mulher sozinha tem assim tanto dinheiro?

A verdade é que faço programas. Meu principal cliente é... uma start-up suíça de nuvem, seus bobos. Mas faço isso num quarto fechado e quem é que vê? Alguém do outro lado do oceano, só.

Sempre fecho as cortinas porque não gosto de trabalhar olhando para a praia –que tipo de tortura bizarra não seria essa!

Sim, sim, é irônico que o único jeito de poder não pensar em dinheiro seja ter dinheiro. Eu sei, eu sei... mas não é por isso que vou me condenar a fazer exatamente o que não quero, cristãmente.

*

Minha andorinha.

Venha e tudo ficará bem. Venha, venha, venha.

*

A sereia está cantando de novo. Sei que, assim que eu me aproximar, ela vai virar harpia e me puxar pro fundo.

Mas vou assim mesmo.

Quando a metamorfose começar, fujo de novo.

Estou acostumada a me reinventar. Por enquanto. Um dia vou querer reinventar até isto e contemporizar. Mas fico curiosa: se flexibilizo esses meus princípios, paro no lugar que acho menos pior, ou em qualquer lugar, porque qualquer um serve?

Está vendo? Não dá pra jogar fora toda a história como quem puxa uma descarga. Sempre temos que hierarquizar, de chamar de "vulgar", de "desonesto", de "baixo" –ou de "alto". "Alto" é melhor do que "baixo", e "melhor" é melhor que "pior": os pressupostos estão escondidos, e os pressupostos sempre estão no nosso umbigo –a régua do mundo. Uma régua toda encaracolada e amarfanhada e feita de carne.

Por esse argumento, faria todo sentido eu ter um filho –um novo umbigo-régua que continuasse o que chamo de eu. Mas quem foi que disse que eu preciso fazer sentido?

SIMONE CAMPOS, 33, é escritora, autora de "A Vez de Morrer" (Companhia das Letras).

ZÉ VICENTE, 38, é artista plástico e criou todas as ilustrações da edição de 28/8.

zé vicente

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