Folha de S. Paulo


Carlos Eduardo Berriel escreve sobre a "Utopia", que faz 500 anos

RESUMO A utopia é uma construção imaginária refém de sua própria perfeição. Uma vez que é uma sociedade perfeita, isso significa que não pode ser aperfeiçoada ou se degradar. Assim, a utopia implica uma estática social. Conectada a seu chão histórico, a ilha de Morus simulava uma espécie de de "Inglaterra invertida".

Zé Vicente

"Sejamos realistas; peçamos o impossível"
DIVISA DO MAIO DE 68

"A Utopia parece hoje muito mais realizável do que jamais o foi; o problema agora é como nos defenderemos de sua realização"
ALDOUS HUXLEY

zé vicente

Há exatamente meio milênio, em 1516, saiu em Amsterdã um livrinho destinado a ter um papel central na vida dos debates políticos e da ética: conta a história de um navegante português que descobriu uma ilha desconhecida, chamada Utopia, cujo nome não consta de nenhum mapa geográfico. Seu autor, o londrino Thomas Morus, inventou o neologismo "ou-topia", "não-lugar", articulando as palavras gregas "où", "não", e "tópos", lugar. Portanto, utopia quer dizer, literalmente, "o que está em nenhum lugar". Na pronúncia inglesa é formada uma homofonia de ou-topia (não-lugar) e eu-topia (terra de felicidade), o que gerou uma ambiguidade intencional e contribuiu –querendo ou não– para as ambiguidades que o uso do termo conheceu, e conhece, em sua história.

Desde então o pensamento moderno pulula de cidades hipotéticas e de mundos ideais, situados em um além imaginário, países que não existem de fato, mas que são dotados, pela mente de seu inventor, de realidade impactante sobre nossas vidas.

São cidades hiper-racionais, geométricas, ou mundos exóticos, trazidos pelos relatos dos viajantes. Podem ser países da Cocanha, abundantes e justos; podem ser mundos de ponta-cabeça, onde os servos são senhores e vice-versa. Ou então realidades situadas em um não tempo, em uma "u- cronia", onde as leis universais da história já concluíram seu périplo e encontramos então um admirável mundo novo.

Tudo isso se inscreve na imaginação, numa transversal do tempo, quando o pensamento e a imaginação utópica conseguem equilibrar a esperança de um mundo melhor. Mas a esperança pode se transformar em angústia, e o sonho pode desandar pois, como disse a antropóloga Margaret Mead, "O sonho de um é o pesadelo de outro".

A utopia é uma forma de pensamento basicamente moderna, para onde convergiram numerosas outras formas tradicionais de pensamento político, principalmente vindas dos gregos –da República de Platão e das viagens imaginárias de Luciano de Samósata. Plutarco, Cícero, os epicuristas também habitam essa ilha, assim como o messianismo judaico-cristão, que fazia esperar a regeneração do homem e a volta ao Paraíso Terrestre.

CONTRADIÇÃO

A utopia, porém, nasce trazendo uma contradição congênita: sendo filha do desenvolvimento das forças produtivas próprias do Renascimento, funda virtualmente uma sociedade tão perfeita em seus fundamentos que termina por impedir toda forma de desenvolvimento. É uma construção imaginária refém de sua própria perfeição. É o que levou Marx a dizer: "Quem compõe um projeto para o futuro é um reacionário".

Se a utopia é uma sociedade perfeita, isto significa em decorrência que não pode ser aperfeiçoada e nem se degradar, porque ambas as coisas pressupõem a imperfeição. Na prática, a utopia significaria uma estática social, um mundo parado e eternizado em si mesmo. Isto é, a "u-cronia", ou ausência de tempo –uma impossibilidade.

Mas podemos ir além: uma sociedade utópica real, para garantir sua existência estática, precisaria recorrer à eterna vigilância e a todas as formas de violência: "A utopia prática é indissociável da violência", já disse Karl Popper.

Quem projeta uma sociedade crê que os seres humanos estejam inteiramente à sua disposição, num consenso incondicionado, aceitando implicitamente que serão controlados e dispostos conforme o desenho lógico do engenheiro social –aquele que crê que sua lógica particular deve se tornar universal. Estamos, obviamente, falando daqueles personagens de tão turva memória, tais como o Grande Inquisidor, o Condutor, o Grande Irmão, o Guia Genial.

Conectada ao chão histórico do qual surge, a utopia sempre corresponde aos desejos e às esperanças coletivas de seu tempo pois, partindo de elementos reais, constrói virtualmente todas as histórias possíveis, todos os cenários que a história não realizou. A raiz desta ideia vem da "Poética" de Aristóteles, que diz ser a poesia mais ampla que a história, pois realiza até o fim aquilo que a história apenas esboçou.

A utopia está aí: é uma tendência da realidade, operante e efetiva, mas que não se materializa enquanto Estado –existe numa dimensão própria, entre o mundo das ideias e a dura poesia concreta do mundo material.

Para a disciplina do utopista, o mundo não é apenas aquilo que se nos apresenta, mas é também aquilo que está oculto. Para o bem e para o mal. A utopia não parte de um ponto fora do sujeito histórico (de Deus, por ex.), mas do próprio sujeito. Isto quer dizer que toda utopia, mesmo falando de um futuro fictício, está na verdade falando dos problemas da época em que foi escrita. A utopia possui a sua própria história, que de certa maneira é a história do inconformismo intelectual diante das formas do mundo estabelecido.

VIDA COLETIVA

O quinto centenário da publicação da obra de Thomas Morus traz de volta aquele eterno exercício político: os homens poderiam construir livremente uma forma de vida coletiva, que fugisse da costumeira estupidez, da eterna luta do homem contra o homem? Seremos governados pelo cérebro ou pelo baixo-ventre? Cada época oferece respostas diferentes, e essa pergunta teve na "Utopia" o seu grande momento.

Poucos gêneros literários nasceram com um registro mais claro: com data e autor conhecidos, a "Utopia" moreana forneceu, já no berço, os parâmetros, os procedimentos e o nome desse gênero, que se multiplicou em dezenas de obras em vários países ainda no século 16, tendo um bibliotecário contado mais de 2.000 utopias em meados do século 20.

Embora terminada em 1515 e publicada no ano seguinte, a "Utopia" começou a ser escrita bem antes, em 1509, e deveria ser publicada em conjunto com "O Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdã, formando um díptico ético-político.

Erasmo passava naquele ano um longo período como hóspede de Morus, em Londres, quando conceberam esta sátira conjunta: enquanto Erasmo com ironia elogiaria a demência dos poderosos e a corrupção do clero, Morus faria o elogio do bom senso ou da razão –essa é a gênese da "Utopia".

Entretanto, premido pelos compromissos dos quais Erasmo era isento, Morus não a terminou –no máximo deve ter escrito uma parte desse elogio naquilo que veio a ser o livro dois, que descreve a ilha sensata e feliz, não encontrável nos mapas realmente existentes. Quando retoma o "livrinho de ouro", num inesperado momento de ócio em 1515, a realidade europeia já estava bastante alterada –estava-se às vésperas da Reforma, que incendiaria o continente e mudaria profundamente o quadro político, moral, religioso e ético.

A Reforma em andamento muito se alimentara das ideias erasmianas, inclusive das noções contidas no livro escrito na casa de Morus, com suas críticas radicais à corrupção do clero católico. As notícias das descobertas do Novo Mundo através de relatos estavam na ordem do dia. Tudo mudava, e os sintomas do desabamento das antigas instituições preocupava a muitos, e a Morus em particular. Disso trata a "Utopia".

Pôs-se então o futuro lorde chanceler da Inglaterra a terminar a obra compondo o que viria a ser o livro um: uma reflexão, na forma de um diálogo platônico, conduzida por Rafael Hitlodeu –Rafael é o anjo que anuncia as grandes transformações, e Hitlodeu pode significar aquele que combate notícias falsas, ou conhecimentos errôneos.

Do que ele fala? Essencialmente, do sofrimento trazido pelo fim da comunidade feudal. O processo dos cercamentos, em que os direitos tradicionais dos camponeses foram anulados diante da voragem das manufaturas de tecidos, ávidas de lã, conduzia a Inglaterra a um período de caos, de marginalidade e de violência. Era a acumulação primitiva de capital: saía de cena a comunidade regida pela Igreja, entrava a lei selvagem, anticristã e desumana do mercado, da modernidade burguesa.

O livro dois, que é a parte utópica propriamente dita, traz a solução: existe uma ilha feliz, fora do âmbito de nossa história, onde impera uma racionalidade administrativa e política, em tudo condizente com o espírito de um cristianismo ético, erasmiano –em que a tradição é associada harmonicamente à contemporaneidade.

Há um comunismo econômico na base de tudo, o trabalho é dignificado e universal: todos trabalham, não há classes sociais, há abundância e lazer em completo equilíbrio. O sistema político, parlamentar, tem por base a família patriarcal. Não há comércio nem moeda para uso interno, só externo. Adoram a um Deus que se confunde com o próprio Estado, e são quase cristãos –faltam-lhes apenas os sacramentos. O direito nasce do sentido da comunidade, em que a cidadania plena é dada pelo nascimento, não pela posse dos meios de produção, que são coletivos. Negam, portanto, a condição da sociedade moderna, burguesa, em tudo avessa ao éthos comunitário. São, portanto, uma Inglaterra invertida.

FUNDADOR

O regime de Utopia não nasceu da experiência acumulada ou da história de seu povo, mas da mente iluminada de um legislador arquetípico, o Rei Utopos, que surgiu do nada e com tudo pronto. Nada fica entregue ao acaso, tudo já foi previsto e as decisões já foram anteriormente tomadas com base na sabedoria insuperável do fundador.

A Utopia não está apenas em um não lugar, está também em tempo nenhum, pois jaz congelada numa perfeição estática –e justamente por isso não aparecem indivíduos concretos no relato, mas apenas estereótipos de cidadãos perfeitos, disciplinados, com a ordem introjetada em si pela onipotente pedagogia utópica.

Antes de nos precipitarmos numa condenação da Utopia, pensemos na sua extraordinária representação da nossa condição histórica: ou estamos num caos genocida promovido pela acumulação primitiva do capital, ou mergulhamos no presídio de vidro da engenharia social. Não que isto seja o destino eterno do homem, mas até agora tem sido assim. Confere?

DESTINO

A utopia nasceu sob uma estrela promissora: representou, com o "O Príncipe" de Maquiavel, um ponto de chegada do humanismo renascentista, e talvez seu limite: a concepção de que o homem poderia tomar para si, em suas mãos, seu próprio destino pessoal e coletivo, o homem como autor de si mesmo.

A existência individual e a vida associada –anima e polis– foram compreendidos como históricos –humanos– e, portanto, disponíveis para o livre-arbítrio, uma obra em aberto. Embora criaturas de Deus, disse Pico della Mirandola, nosso destino só a nós concerne. No campo da imaginação política, a Utopia abre as asas sobre nós. A perfeição do viver associado, da cidade, do Estado, do príncipe e do povo: esta ambição caracterizou a Utopia.

Desde o começo o gênero utópico se aproximou das viagens de descobertas: a imaginação das ilhas desconhecidas, do país remoto no qual prospera a cidade ideal, a notícia de povos estranhos que exigem a ampliação do conceito de humanidade: a "Utopia" nasceu refletindo o leque histórico da descoberta do Novo Mundo, da constituição dos impérios coloniais, da afirmação das monarquias absolutas.

A viagem na literatura utópica, simbolicamente, constata a crise dos antigos valores, postos em termos de comparação com valores novos, e assume a feição de proposta social ou de reforma do Estado. Sendo tipicamente uma aventura heroica e um itinerário cultural, a viagem permite ao narrador instituir um ponto de vista desde fora. Utopia e viagem, indissociáveis entre si, são sempre a descoberta do outro, que se torna fulcro para a descoberta de si enquanto entidade política. Paira sobre as obras o clima cultural das descobertas, o espírito geral das navegações, mas o que se conta, no fundo, é a vida europeia transfigurada: como já disse, a "Utopia" de Morus é, na verdade, a Inglaterra invertida.

DILUIÇÃO

O que aconteceu com a palavra utopia é similar ao que aconteceu com a palavra filosofia: chegamos a um uso semântico distendido desses termos, de forma que muitas vezes não sabemos mais o que exprimimos quando dizemos utopia ou filosofia. O maior inimigo das utopias não está no campo aberto das disputas políticas, mas na diluição indeterminada e sentimental, no relativismo, no "kitsch new age", no "Ersatz" dos epigramas morais baratos das teologias liberadoras. John Lennon cantando "Imagine" num emoliente piano branco.

Em outras palavras, na substituição da matéria dura das utopias pela substancia viscosa do utopismo. Já foi dito que o utopismo dilata excessivamente seus confins até transformá-lo em tudologia. Enquanto a utopia é o conceito em seu rigor, "stricto sensu", o utopismo é a tomada de qualquer localidade ou sociedade imaginária como utópica –em "lato sensu", portanto.

Com o utopismo a disciplina crítica se esvai, falamos por analogias, não podemos, por exemplo, distinguir a Cidade do Sol de Campanella do Sítio do Picapau Amarelo, ou a República de Platão do Planeta Mongo de Flash Gordon. Enquanto o utopismo evoca o abrigo, o refúgio, a demissão frente ao real, a utopia em "stricto sensu" recusa a submissão à transcendência e propõe uma elevação da condição humana pela sua própria ação –política à vera, de bem com o realismo de Maquiavel. À procura de uma felicidade ativa, ela visa dar uma finalidade terrestre à aventura humana e mostra uma vigorosa consciência social.

REALIDADES

As utopias sempre foram criticadas por terem uma atitude cega para com as "realidades humanas", tais como as ambições, o desejo de poder etc., pois é fácil imaginar uma sociedade ideal quando as realidades concretas não são levadas em consideração. Também é dito que o espírito revolucionário utópico se dissolve por si mesmo, já que numa sociedade perfeita não caberiam revoluções nem, portanto, mudanças e progresso.

Desde o século 19 a utopia é criticada tanto pela direita como pela esquerda. A partir das revoluções de 1848 o termo "utopia" se tornou uma injúria explícita dirigida ao socialismo e ao comunismo pelo pensamento burguês, mas seu descrédito também deve ser atribuído a Engels, que denunciou nas diferentes correntes do socialismo anterior a 1848 –em Saint-Simon, Fourier e Owen– um "socialismo utópico" e sentimentalmente pequeno-burguês. Marx e Engels se consideravam herdeiros dos utopistas mas também seus liquidadores. Engels, após a morte de Marx, julgava que o "socialismo científico" mandara definitivamente a utopia para a lata de lixo da história.

Hoje é possível dizer que a história mandou para a metafórica lata de lixo inclusive o chamado socialismo real, que se inspirou e ao mesmo tempo traiu o pensamento de Marx e Engels.

Esse socialismo compartilhou com a direita a adesão ao pragmatismo, uma filosofia constituída por uma visão redutora da história, e para a qual apenas os fenômenos hegemônicos são reais –cancelando em decorrência todas as alternativas de desenvolvimento social em estado virtual.

Isso desqualifica a utopia, que se distingue pela dignificação do real não manifesto. No século 20, com a hegemonia dessas ideologias, pareceu que a utopia seria removida para o plano da completa irrelevância. Mas nada disso aconteceu. Surgiu a distopia.

DISTOPIA

A distopia é igual à utopia, mas com sinal trocado: se a utopia é o "sonho impossível", a distopia é o pesadelo que se realizou. Na distopia a realidade presente é assumida tal como é, e suas práticas e tendências destruidoras, desenvolvidas e ampliadas ficcionalmente, revelam a crueldade de um mundo grotesco que poderia parecer normal. Sem a distopia ("Admirável Mundo Novo", "1984", "A Revolução dos Bichos", "Blade Runner") estaríamos desarmados para compreender o mundo atual.

Se compreendermos o que significa o duplipensar- duplifalar, que estão no "1984" de George Orwell, seremos um cordeiro a menos no abatedouro das ditaduras. Se sabemos quem é o Grande Irmão, seremos prudentes com relação às fraudes criadas pela "mass media". A distopia pode ser vista como a autocrítica da utopia: o pensamento utópico que se deu conta da vocação totalitária existente nas versões mais claramente patológicas da utopia decide torná-la explícita, mostrando um mundo que realizou uma utopia, mas em seu pior sentido, o da engenharia social. É quando o sonho se torna pesadelo.

SANTO

Thomas Morus é um santo da Igreja Católica, canonizado como mártir pelo papa Pio 11 em 1935 –e em 2000 foi declarado patrono dos políticos pelo papa João Paulo 2º. Desde 1980 é santo da Igreja Anglicana, cujo fundador mandou decapitá-lo. Em 1898, entretanto, Karl Kautsky o definira como o "primeiro socialista moderno" e no muro do Kremlin existe um cenotáfio em sua homenagem. Quem está com a razão, afinal?

O seu destino é tão paradoxal quanto a fortuna de sua principal obra. Pois então: a utopia veio para o bem ou para o mal? Oferece caminhos para a justiça social ou para o despotismo?

A utopia não é uma solução necessária, efetiva, para os problemas sociais, mas sim uma extraordinária metáfora da sociedade burguesa: nascida da crueldade do processo de desmantelamento da comunidade feudal, ao mesmo tempo planeja e lança os princípios ideais da sociedade totalitária moderna. A utopia possui os mesmos parâmetros e limites da vida política burguesa, com suas positividades e negatividades. A sua mais completa tradução.

Utopia
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Mas isso não é tudo. Se a utopia for julgada apenas pelo seu significado mais negativo, de "sonho impossível", um passatempo para mentes enfermas, então cairemos na aridez do conformismo insone. O utopista é alguém que pensa em algo que pode ser realizado, talvez não agora, mas que pode orientar a práxis, dar um sentido para a ação. Por mais problemática que seja, a utopia indica a possibilidade de transcender o horizonte, o puro dado; é sempre uma tentativa de não aderir com prostração ao mundo existente, de ir além –o que é próprio do homem, da ontologia humana atual, ou seja, "negar o existente" pensando em algo que se coloca além do próprio existente.

Se por utopia entendemos tudo isso, se a aceitamos como uma força positiva, enquanto propensão natural do homem a ultrapassar a si mesmo e os seus limites, então somos todos utopistas.

CARLOS EDUARDO BERRIEL, 64, professor livre-docente de teoria literária da Unicamp, é fundador e editor da revista "Morus - Utopia Renascimento".

ZÉ VICENTE, 38, é artista plástico e criou as ilustrações desta edição.


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