Folha de S. Paulo


Donald Trump pode conseguir implodir o Partido Republicano

RESUMO A candidatura do empresário Donald Trump divide o Partido Republicano e faz com que alguns de seus membros mais importantes declarem apoio à candidata democrata, Hillary Clinton. A vitória ou derrota dos republicanos para a Presidência e no Congresso determinará o futuro do partido e do conservadorismo.

"Trump precisa decidir se quer se comportar como alguém que quer ser presidente, ou entregar a candidatura para [seu vice] Mike Pence", sugeriu, em tom de ultimato, o "Wall Street Journal" em seu principal editorial da última segunda (15). Maior jornal em circulação paga dos EUA e o mais lido entre o empresariado local, ele pertence a Rupert Murdoch, dono da rede de notícias Fox News, voz-chave do Partido Republicano.

"Trump alienou o seu partido e não dirige uma campanha competente", prossegue o texto. "Hillary é a segunda candidata menos popular da história, depois de Trump. A tragédia é que, neste ano, os republicanos deveriam ganhar."

Pesquisas divulgadas recentemente mostram que a candidata democrata à sucessão de Barack Obama, Hillary Clinton, abriu vantagem de ao menos dez pontos à frente de Donald Trump em seis dos Estados mais disputados (nem obviamente republicanos, nem democratas): Michigan, New Hampshire, Virginia, Colorado, Pennsylvania e Wisconsin. O Partido Republicano perdeu cinco das últimas seis eleições presidenciais no voto popular –a reeleição de George W. Bush em 2004 foi a exceção.

A esta altura da campanha em eleições passadas, Mitt Romney (2012) e John McCain (2008) já contavam com líderes partidários percorrendo o país, já tinham feito as pazes com seus adversários das primárias e recebiam apoio de governadores e deputados em nome da "unidade". Isso está longe da trincheira de Trump, que trocou na quarta-feira, mais uma vez, o comando de sua campanha.

A bilionária republicana Meg Whitman, presidente da gigante de tecnologia Hewlett Packard (e concorrente ao governo da Califórnia em 2010), anunciou na semana passada que faria campanha para Hillary. Como ela, mais de 40 figurões do partido, ex-presidenciáveis, ex-ministros e governadores, já declinaram do apoio a Trump.

O conservadorismo tradicional se sente encurralado. "O eleitor americano que defende o livre comércio, o liberalismo econômico, um Estado menor, com menos impostos e regulamentações está órfão nesta eleição", disse à Folha o cientista político Robert Erikson, professor da Universidade Columbia. "Para Trump e a base que o elegeu, trata-se muito mais de nacionalismo versus globalização, de xenofobia e racismo contra multiculturalismo, de cercear ou não o uso de armas do que de direita ou esquerda na economia."

Para seu colega Arthur Lupia, professor da Universidade de Michigan, "Hillary é menos pior para o eleitor conservador, mesmo estando mais à esquerda de quando concorreu em 2008. Em temas comerciais, Trump é mais protecionista do que ela".

Os líderes republicanos já procuram culpados, independentemente do resultado que vier em novembro. Em longo ensaio na revista "The Atlantic", David Frum, autor de alguns dos principais discursos do ex-presidente George W. Bush, culpa a "luta de classes no partido" pelo racha. "As pessoas mais enfezadas e pessimistas da América não são os ativistas do Occupy Wall Street nem o movimento negro contra a violência policial. São os brancos sem diploma superior. As maiores taxas de suicídio e de uso de drogas pesadas atingem esse grupo", escreve Frum.

A América branca operária tem perdido a confiança nas grandes empresas, sindicatos, na mídia e até no partido em que tem votado. "Esses eleitores veem os líderes republicanos como fracotes e vendidos. Nem são necessariamente superconservadores. Mas acham que a vida costumava ser muito melhor para gente como eles e querem essa vida de volta", segue Frum.

Os chefões do partido e seus principais doadores mantiveram sua agenda: corte de impostos e de orçamento do governo, livre comércio, desregulamentação, com alguns brindes para os conservadores religiosos, como discursos contra o direito ao aborto e à igualdade para casais gays.

"Por 40 anos, os republicanos concorreram dizendo que o governo é o problema, enfatizando temas sociais. Mas aborto e gays mal aparecem nos discursos de Trump. Essa fórmula não funciona mais", diz o professor Lupia, de Michigan, que dirige o Conselho Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais.

Diversas estatísticas desafiam os clichês associados ao perfil dos seguidores do partido: um terço dos republicanos defende impostos "pesados" para os mais ricos, segundo o instituto Gallup; apenas um em cinco defende cortes no sistema de saúde público, e uma fração ainda menor, 17%, aceita cortes na previdência americana, a Social Security, de acordo com pesquisa do instituto Pew. Essas visões se chocam com as do maior líder do partido no Congresso, o deputado Paul Ryan, presidente da Câmara, que sugere cortes em todos os programas sociais federais.

O empresariado republicano tem defendido projetos para legalizar imigrantes no país (que Jeb Bush, candidato do establishment, defendia). Entretanto, menos de um terço dos republicanos apoia a legalização de imigrantes sem papéis. A maioria defende a deportação acelerada, e 63% dos eleitores de Trump defendem o fim da concessão de cidadania americana a bebês nascidos de imigrantes ilegais (no partido como um todo, o número cai para 51%).

O contraste com a elite republicana é grande. "Investidores, empresários que empregam trabalhadores pouco qualificados ou profissionais liberais tendem a se beneficiar de mais imigração", escreve Frum. "Aproveitam os resultados sociais e culturais, como culinária mais interessante, e não levam os fardos, como o aumento nas escolas públicas do número de crianças que não dominam inglês."

DOGMAS

No passado, líderes moderados que traíam os dogmas de seus partidos eram acusados de "vendidos", como Tony Blair no Reino Unido e Eisenhower e Bill Clinton nos EUA. Nos três casos, as concessões serviram para vencer nas urnas, e os puristas partidários aceitaram uma versão suavizada da plataforma original. No caso de Trump, o medo republicano é jogar as regras partidárias pela janela e ainda assim perder novamente as eleições.

A bronca com a imigração e a globalização, a defesa de programas de bem-estar social e a denúncia do capitalismo global e da corrupção da política tornaram-se ingredientes do populismo de novatos na política tradicional, da Itália à França, do Reino Unido aos EUA –o socialista Bernie Sanders compartilhava o discurso protecionista de Donald Trump quando disputou com Hillary Clinton a indicação democrata.

Nos EUA, o componente racial não é secundário. Esses brancos empobrecidos defendem os bilionários programas de pensões e de saúde de que são beneficiários, mas atacam programas percebidos como "gastos" com hispânicos e negros.

Trump começou a ensaiar sua campanha presidencial ainda no primeiro mandato de Obama, quando desafiava repetidamente o primeiro presidente negro a ocupar a Casa Branca a mostrar sua certidão de nascimento e a provar "que não era estrangeiro nem muçulmano". Ao lançar sua campanha, no ano passado, acusou imigrantes mexicanos de estupradores e prometeu proibir a imigração de muçulmanos ao país.

O partido, oficialmente criado em 1854 sob a promessa de evitar a expansão dos Estados escravocratas, liderado depois por Abraham Lincoln, que lutou uma guerra civil para promover a abolição, tornou-se a sigla escolhida por racistas a partir dos anos 1960, quando o presidente democrata Lyndon Johnson aprovou o fim da segregação racial.

"O Partido Republicano perdeu de vez o Nordeste americano [onde ficam Nova York e Boston] e a Costa Oeste [onde fica a Califórnia], as duas áreas mais populosas do país. Ficou com o Sul e ainda foi se afastando de grupos demográficos cada vez mais importantes nas urnas", diz o professor Erikson.

Um desses grupos, fundamental, é o feminino. Em 308 distritos eleitorais que tiveram primárias republicanas para escolher o candidato a deputado, só 26 tinham alguma candidata mulher. Só 9% dos deputados republicanos são mulheres (entre os democratas, elas são 33%). Entre as eleitoras, esse distanciamento foi medido pelo instituto Pew: 54% das mulheres dizem simpatizar com o Partido Democrata (entre os homens, o número é de 42%).

Na sua reeleição, em 2012, Obama teve, entre as eleitoras, uma vantagem de 11 pontos sobre o candidato republicano Mitt Romney (55% contra 44%). Entre minorias como hispânicos, negros, gays e asiáticos americanos, a preferência pelos democratas tem sido maioritária nas últimas duas eleições. "Não sei como uma mulher poderia votar em Trump", declarou Barbara Bush, esposa e mãe de ex-presidentes, em fevereiro.

Tensões entre establishment e base tampouco são estranhas aos democratas, ainda que, por enquanto, tenham sido resolvidas portas para dentro da agremiação.

"Há um inimigo comum nos dois partidos: as elites de direita ou de esquerda são acusadas de ter perdido o contato com o 'homem comum'", diz o professor Lupia.

Trump e Sanders representam essa frustração. A extrema esquerda e a centro-esquerda democratas têm cada vez mais atritos, segundo Lupia, em discussões cada vez mais ruidosas. A primeira defende "espaços seguros" de debate, em que não se ofendam as minorias, apelando à autocensura, enquanto os centristas insistem na liberdade de expressão. "A ideia de que moderados como Hillary e Obama deveriam ser mais duros com o grande capital é forte na extrema esquerda do partido. Bernie Sanders foi apenas o começo."

Nos dois meses e meio até as eleições, tudo pode acontecer –disputas à Casa Branca já foram decididas por performances desastradas em debates na TV ou por crises internacionais, como o resgate desastroso a reféns americanos na embaixada do país no Irã.

Mas, para os analistas políticos, ganhando ou perdendo em novembro, o Partido Republicano será o alvo das maiores transformações. "Se Trump vencer, o partido começará a se parecer mais com seu discurso. Se perder por pouco e mantiver o Senado, o establishment fará as reformas. Mas, se perder de forma humilhante, e ainda perder o controle do Congresso, haverá um motim", prevê o professor Lupia. Para o cientista político Erikson, "partidos se adaptam para sobreviver e precisam aprender com as derrotas. Os conservadores na América precisam se questionar a respeito do que têm errado."

RAUL JUSTE LORES, 40, é repórter especial da Folha.


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