Folha de S. Paulo


Edição crítica celebra 80 anos de "Raízes do Brasil"

RESUMO Edição crítica de 80 anos de "Raízes do Brasil" expõe mudanças feitas por Sérgio Buarque de Holanda na obra e permite ampliar debate sobre ela. Clássico da historiografia tem entusiastas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e críticos, como o cientista social Jessé Souza.

"Era no mínimo estranho que um livro tido como um dos principais da historiografia brasileira não tivesse sua história esmiuçada", diz à Folha o professor de literatura da Universidade de Princeton Pedro Meira Monteiro.

O pesquisador organizou, com a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, professora da USP e também da universidade norte-americana, a edição crítica de "Raízes do Brasil" [Companhia das Letras, 520 págs., R$ 94,90, R$ 44,90 em e-book], de Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), lançada agora em comemoração aos 80 anos da publicação original da obra.

O volume, que traz nova introdução e novos posfácios à obra, será lançado em São Paulo com evento nesta segunda-feira (8), às 19h, no teatro Eva Herz, da Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 11-3170-4033). O lançamento do volume inaugura as comemorações de 30 anos da Companhia das Letras.

A edição traz o texto atual de "Raízes do Brasil", ou seja, a última edição que o historiador aprovou em vida, publicada em 1969, mas também mostra as alterações pelas quais passou através das quatro edições que a precederam. O comovente caderno de imagens –veja galeria– é um exemplo. Expõe o modo como o autor insere, corta e retifica títulos e trechos inteiros do texto, em algumas partes com rabiscos ou apontamentos à mão, noutras batendo à máquina parágrafos colados nas páginas em que deveriam ser inseridos.

"As mudanças que Sérgio Buarque fez não foram nada cosméticas, ele foi realizando uma varredura no livro. É um livro vivo, consideravelmente alterado por três décadas", diz Schwarcz.

A alteração mais marcante se dá entre a edição original, de 1936, e a segunda, de 1948.

"Quando foi publicado, 'Raízes' continha uma dose importante de desconfiança em relação às grandes teses liberais", explicam, na introdução, os organizadores. Essa desconfiança fundamentava-se no contexto histórico que a região vivia. Sérgio Buarque sentia um "desconforto" com os "caudilhismos" latino-americanos e não acreditava que uma visão mais impessoal da política pudesse derrotar o personalismo que então predominava na América Latina.

Essa visão, porém, alterou-se profundamente no cenário da segunda edição do livro, em 1948, quando o autor, nas palavras de Monteiro, "exorciza a desconfiança que tinha do pacto liberal da década de 30". "E a razão é clara, já não se podia mais manter o texto daquela forma num contexto pós-Segunda Guerra."

As mudanças dessa versão mostram que Sérgio Buarque não quis deixar nenhum indício que justificasse uma acusação de que fosse um "antiliberal". "Raízes", a partir de então, penderia de forma decidida, e radical, para o lado da democracia.

DEBATE AMPLIADO

Essa é uma das novas discussões que a edição crítica propõe, ampliando o debate sobre a obra, que nos últimos anos se reduziu ao que Sérgio Buarque, afinal, teria querido dizer ao conceber o brasileiro como "homem cordial".

O conceito rendeu uma polêmica que se prolongou por décadas, mas que pode ser resumida assim: na edição original, o historiador paulistano justificava que a cordialidade, como herança de nosso passado rural e ibérico, significaria a prevalência da importância das relações pessoais e afetivas sobre os modos mais impessoais de regras de funcionamento da sociedade. Dessa forma, favorecia o surgimento dos compadrios e da força do "pistolão". Sugeria que, à medida que o país se urbanizasse, o "homem cordial" morreria.

Foi então que o poeta Cassiano Ricardo abriu fogo contra a ideia, interpretando a cordialidade como uma "técnica da bondade", relacionando-a a uma ideia de polidez.

Sérgio Buarque respondeu, em carta incorporada às edições seguintes, a partir da terceira (1956). Explicou que a cordialidade tinha tanto a ver com a bondade como com a inimizade e que o homem cordial era o contrário do homem polido, por ser avesso a rituais públicos e por cultivar grande intimidade na atividade política.

Diante da seriedade que a contenda tomou, não se imaginaria que o historiador a enfrentaria com tal bom humor, tentando baixar seu nível de estridência: "Confesso sem vergonha, e também sem vanglória, que não me sinto muito à vontade em esgrimas literárias". E acrescentava: "Não me agarro com unhas e dentes à expressão cordial, que mereceu objeções. Se dela me apropriei foi à falta de melhor".

Para Monteiro, falta ainda fazer uma genealogia da questão da cordialidade a partir de um ponto de vista latino-americano. Ele lembra que o próprio Sérgio Buarque usou a expressão lida na correspondência entre Ribeiro Couto e o mexicano Alfonso Reyes (1889-1959), mas que já havia sido identificada em outros escritos. O nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), por exemplo, havia se referido ao "homem cordial" latino-americano, em artigo para o jornal argentino "La Nación", ao comentar as repercussões da tomada de Cuba e Porto Rico por parte dos EUA em 1898.

"Entendo que existam críticos da cordialidade que dizem que é uma generalização, mas, como se vê, é uma generalização feita há muito tempo e que segue presente. E as generalizações, ainda que sejam de certo modo uma ficção, têm a função de criar um parâmetro para iluminar a realidade", diz Monteiro.

RADICALISMOS

A edição traz ainda o famoso prefácio de Antonio Candido, incorporado à quinta edição, em 1969, e escrito dois anos antes. Para Schwarcz, o autor de "Formação da Literatura Brasileira" estava "delineando nessa época sua interpretação sobre a importância dos 'radicalismos' na produção intelectual brasileira".

"O termo vinha de raiz e supunha que, mais do que um pensamento conservador, essa era uma forma de os intelectuais nacionais assumirem sempre soluções de compromisso, tendo o Estado para mediar os conflitos. E foi assim que ele definiu o livro de Sérgio Buarque, transformando esse prefácio em um capítulo essencial do livro."

Raízes do Brasil
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"Raízes" foi publicado inicialmente pela José Olympio, dentro da coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Gilberto Freyre (1900-87). Passou para a Companhia das Letras em 1995 e, desde então, vendeu mais de 250 mil exemplares. No fim da vida, Sérgio Buarque chegou a lamentar que "Raízes" ficasse conhecido como sua principal obra, em vez de trabalhos de fases mais maduras, como "Visão do Paraíso" e "História Geral da Civilização Brasileira".

Para Schwarcz, uma explicação possível viria do fato de que "'Raízes' ainda nos assombra, assim como assombrou seu autor, porque vemos até hoje essas ideias de algum modo vivas na nossa sociedade" –"por exemplo no modo como a esfera pública é vista como uma extensão da privacidade e das relações de intimidade".

SYLVIA COLOMBO, 44, é repórter especial da Folha.


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