Folha de S. Paulo


Celebração de obra mostra miséria de nosso debate, diz Jessé Souza

Para Jessé Souza, cientista político e ex-presidente do Ipea, a celebração contínua do livro "Raízes do Brasil" contribui para esconder discussões mais importantes sobre a história do país.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.

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Folha - Como o sr. avalia o legado de Sergio Buarque de Holanda, nesse aniversário de 80 anos de "Raízes do Brasil"?

Jessé Souza - Sérgio Buarque construiu a interpretação do Brasil mais influente até hoje. Em grande medida, ela advém de Gilberto Freyre (1900-87), como a noção de identidade nacional baseada nos afetos e nos sentimentos supostamente trazida de Portugal. Cientificamente, a validade dessa interpretação é, no entanto, nula. E sua celebração até hoje mostra apenas a miséria de nosso debate acadêmico e, por consequência, de nosso debate público.

Por quê? O sr. contesta também a questão do legado ibérico exposta no livro, poderia explicar?

Primeiro, o Brasil não vem de Portugal. Essa é uma leitura de senso comum, é como alguém se imaginar italiano porque o avô o era. Se as condições sociais forem outras, ele não tem nada de italiano, a não ser o código genético.

Humanos são construídos por influência de instituições. Pensemos na família, na escola, no mercado de trabalho. Disposições fundamentais para o comportamento, como a disposição à disciplina, ao autocontrole, ao pensamento prospectivo são ensinadas por meio de prêmios e castigos não necessariamente físicos. É assim que somos construídos.

No Brasil, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família, de economia, de política, de justiça foi toda baseada na escravidão. Aliás, como a herança da escravidão nunca foi criticada entre nós –por culpa dos Buarque da vida, que a tornaram invisível– ela continua até hoje. Por conta disso temos uma elite econômica da rapina de curto prazo, sem projeto de país, como acontece com toda elite escravocrata.

Uma porção expressiva da classe média que odeia pobres e os relega ao abandono também faz parte dessa herança. Aceita-se que haja "sub-gente", sem chances e sem direitos como os escravos de todas as cores, o que ainda é o nosso único real problema social e econômico.

Por que acredita que a teoria da cordialidade não se sustenta?

A interpretação de Sérgio Buarque torna todos os nossos conflitos reais invisíveis ao construir o "homem cordial" –o homem emotivo e, portanto, potencialmente corrupto– como "singularidade brasileira", já que dividiria o mundo entre amigos e inimigos, e não do modo impessoal que ele imagina, em uma idealização descabida e infantil, existir em algum lugar.

O Estado "patrimonialista" seria a principal herança do homem cordial e principal problema nacional. Está criada a ideologia do "vira-lata" brasileiro. Inferior, posto que percebido como "afeto" e, portanto, como "corpo", opondo-se ao "espírito" do americano e europeu idealizado, como se não houvesse personalismo e relações pessoais fundando todo tipo de privilégio também nos EUA e na Europa.

Também esconde a nossa hierarquia social, já que quem tem acesso a relações pessoais importantes é quem já tem capital econômico ou cultural anterior. Sua explicação nega, portanto, a origem de toda desigualdade que separa classes com acesso privilegiado aos capitais econômico e cultural de classes que foram excluídas de todo acesso a esses capitais.

E ainda cria a "Geni" brasileira, que seria o Estado sempre corrupto. O mercado é "divinizado" e sua corrupção tanto "legal" –quando "compra" o Legislativo para passar leis de seu interesse, impor juros altos a toda a população e privatizar o orçamento e as empresas estatais– ou "ilegal" –quando manda para o exterior valores de evasão fiscal que superam em muito a soma de toda a corrupção estatal da história– tornada invisível.

Ou seja, a cordialidade seria um argumento conservador?

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Sim. É a ideologia perfeita da elite econômica. O 1% que não precisa dos serviços do Estado, mas que quer "privatizar", ou seja, enfiar no próprio bolso, a riqueza de todos. Foi a leitura de Buarque que foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país –como acontece até hoje– que tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite à elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo.

E isso tudo ainda "tirando uma onda" de crítico, apontando o dedo moralizador sempre que o Estado possa ser usado, um pouquinho que seja, também para aliviar a enorme miséria da maioria.

SYLVIA COLOMBO, 44, é repórter especial da Folha.


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