Folha de S. Paulo


Leia trecho do romance "Um Carretel de Linha Azul", de Anne Tyler

ANNE TYLER
tradução ADRIANA LISBOA
ilustração ESTELA MIAZZI

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre "Um Carretel de Linha Azul", que sai pela Tusquets, novo selo da editora Planeta, no próximo mês. Indicado ao prêmio Man Booker, o livro é o vigésimo da escritora americana e narra décadas da vida da família Whitshank a partir do casal Abby e Red e de seus quatro filhos.

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Numa noite de julho de 1994, já bem tarde, Red e Abby Whitshank receberam um telefonema de seu filho Denny. Àquela hora, se preparavam para dormir. Abby estava parada diante da cômoda, vestindo uma combinação, tirando um a um os grampos de seu coque frouxo cor de areia. Red, um homem moreno e muito magro, usava uma calça de pijama listrada e uma camiseta branca, e tinha acabado de se sentar na beira da cama para tirar as meias; por isso, quando o telefone tocou na mesa de cabeceira ao seu lado, foi ele quem atendeu.

– Residência dos Whitshank – disse ele.

Em seguida:

– Ah, oi.

Abby se virou do espelho, as duas mãos ainda na cabeça.

– O que é – ele continuou, sem ponto de interrogação. – Hã? – disse. – Ah, mas que diabo, Denny!

Abby deixou cair os braços.

– Alô? – disse ele. – Espere. Alô? Alô?

Ficou em silêncio por um momento, e então desligou o telefone.

– O que foi? – perguntou Abby.

– Diz ele que é gay.

– O quê?

– Disse que precisava me contar uma coisa: ele é gay.

– E você desligou na cara dele!

– Não, Abby. Ele desligou na minha cara. Tudo o que eu disse foi "mas que diabo", e ele desligou na minha cara. Pá! Sem mais nem menos.

– Ah, Red, como você pôde fazer uma coisa dessas? – reclamou Abby, afastando-se para pegar o roupão, uma peça descolorida de chenile que em algum momento tinha sido rosa. Embrulhou-se nele e amarrou a faixa bem apertada. – O que deu em você para dizer isso? – perguntou a ele.

– Eu não estava dando opinião! Se alguém atirar alguma coisa em cima de você, você vai dizer "mas que diabo", não vai?

Abby pegou uma mecha de cabelo que caíra sobre sua testa.

– O que eu quis dizer – explicou Red – foi "que diabo vem agora, Denny? O que você vai inventar para nos deixar preocupados?". E ele sabia que era isso o que eu queria dizer. Acredite, ele sabia. Mas agora pode dizer que tudo isso foi minha culpa, minha mente fechada, ou minha caretice, ou seja lá o que for. Ele ficou feliz por eu ter dito isso. Deu para perceber pela rapidez com que desligou na minha cara; estava desde o início esperando que eu fosse dizer a coisa errada.

– Tudo bem – disse Abby, buscando ser pragmática. – De onde ele ligou?

– Como posso saber? Ele não tem endereço fixo, não entrou em contato o verão todo, já mudou de emprego duas vezes até onde nós sabemos, e provavelmente mais vezes, das quais não tomamos conhecimento"¦ Um rapaz de dezenove anos e não temos a menor ideia de em qual parte do planeta ele está! Não dá para evitar imaginar que há algo de errado.

– Parecia interurbano? Dava para ouvir aquele ruído no fundo? Pense. Seria possível que ele estivesse aqui mesmo em Baltimore?

– Não sei, Abby.

Ela se sentou ao lado dele. O colchão se inclinou um pouco em sua direção; Abby era uma mulher grande, robusta.

– Temos de encontrá-lo – disse ela. – Devíamos ter um... Como é o nome? Um identificador de chamadas. – Ela se inclinou para afrente e lançou um olhar furioso ao telefone. – Ah, céus, quero um identificador de chamadas neste exato instante!

– Para quê? Para ligar de volta e ele deixar o telefone tocando?

– Ele não faria isso. Saberia que era eu. Atenderia, se soubesse que era eu.

Ela pulou da cama e andou de um lado para o outro no tapete persa, desbotado a ponto de ficar quase branco no meio, por causa de todas as vezes em que pisara ali andando em círculos. Era um quarto agradável, espaçoso e bem projetado, mas tinha o ar confortavelmente desleixado de um lugar cujos habitantes haviam deixado de vê-lo fazia muito tempo.

– Como é que estava a voz dele? – perguntou ela. – Estava nervoso? Chateado?

– Estava bem.

– Isso é o que você diz. Acha que ele parecia bêbado?

– Não deu para perceber.

– Havia outras pessoas com ele?

– Não deu para perceber, Abby.

– Ou talvez uma outra pessoa?

Ele lançou-lhe um olhar ácido.

– Você não pode estar pensando que ele falou sério – disse Red.

– É claro que ele falou sério! Por que outro motivo teria dito isso?

– O garoto não é gay, Abby.

– Como é que você sabe?

– Apenas sei. Escreva o que estou dizendo. Você aos poucos vai se dar conta da sua tolice e pensar: "Puxa, tive uma reação exagerada".

– Bem, com certeza é nisso que você quer acreditar.

– Sua intuição feminina não lhe diz nada? Estamos falando de um menino que criou problemas para uma garota antes de terminar o ensino médio!

– E daí? Isso não quer dizer nada. Pode até ter sido um sintoma.

– Como assim?

– Nós nunca podemos ter certeza de como é a vida sexual de outra pessoa.

– Não, graças a Deus – disse Red.

ANNE TYLER, 74, escritora e crítica americana, é autora de "Lições de Vida" (Conceito), vencedor do prêmio Pulitzer de 1989.

ADRIANA LISBOA, 46, escritora e tradutora, é autora de "Sinfonia em Branco" (Objetiva), vencedor do prêmio José Saramago de 2003.

ESTELA MIAZZI, 27, é ilustradora.


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