Folha de S. Paulo


São Paulo, 1969

Dívidas, censura e como "Gamal" virou "Gamal, o Delírio do Sexo"

As histórias de bastidores dos sets de filmagem podem revelar bem o clima em que nós, os cineastas latino-americanos, fizemos nossos filmes sob as ditaduras militares entre os anos 1960 e 1980. Uma delas é a história da filmagem de meu primeiro longa-metragem, "Gamal", na qual improvisava muito.

Acervo pessoal
Poster do filme Gamal, de Joao Batista. Arquivo Aberto, Ilustrissima.
Paulo Cesar Pereio e Joana Fomm em cartaz do filme "Gamal" que traz o carimbo de aprovação da censura

Quando filmávamos na rua, coisa praticamente proibida, ensaiava antes com os atores (Joana Fomm, Paulo César Pereio, entre outros). Íamos para os locais e desembarcávamos todos, atores e equipe, nas locações. O fotógrafo era o Jorge Bodanzky, com sua câmera maravilhosa. Ele registrava tudo como se filmasse um documentário: corridas, diálogos, tudo.

Num certo dia, filmando na então movimentadíssima rua Sete de Abril, no centro de São Paulo, fomos presos pela Polícia Militar. Os soldados, lembro que eram uns cinco, nos empurraram para a frente do Cine Coral, uma das primeiras salas de filmes de arte da época. Ali encurralados, eles nos ameaçavam com baionetas caladas. A mim, a Pereio, a Joana, a Bodanzky e a toda a equipe. Eu tentava conversar, o chefe deles gritava comigo e ameaçava atirar. Com muito custo, consegui ir com um deles para dentro do cinema, onde telefonei para o Instituto Nacional de Cinema, cujo presidente ligou para a PM de São Paulo e conseguiu nossa liberação. A partir daí, éramos permanentemente seguidos por um mal disfarçado veículo militar.

Esse episódio da rua Sete de Abril foi em 1969. O filme foi exibido em Brasília no mesmo ano e lançado em 1970. No filme, um jornalista (Pereio) é acossado e oprimido por três estranhos personagens. Clima de perseguição e de fuga. O jornalista acaba abandonando sua profissão e se escondendo numa casa de periferia, onde vive como artesão até ser descoberto pelos três opressores. Eles destroem os objetos de seu trabalho e surram tanto o jornalista quanto sua mulher (Fomm). Entre esses personagens, manipulado pelos três demônios, um mendigo apocalíptico, justamente o Gamal do título, é usado para perseguir o jornalista e sua mulher.

Um clima bem de época, em seguida ao AI-5, num filme sem qualquer controle narrativo, caótico, carregado de desespero.

O título original era só "Gamal", mas vendi o filme para um produtor da Boca do Lixo para pagar a dívida do financiamento do banco. Para atrair o público das pornochanchadas, adicionamos um complemento mais apelativo. Assim surgiu "Gamal, o Delírio do Sexo".

Em Brasília, o longa chegou a ser proibido pela censura. Os censores diziam não entender o filme, mas pressentiam que havia ali alguma crítica política. Numa reunião no Departamento de Censura, em Brasília, eu consegui a liberação depois de afirmar que não havia nada, que o filme apenas revelava a loucura daqueles personagens, só isso. Mas quem viu o longa pode notar que havia mesmo uma certa ambiguidade, e ele acabou compondo o chamado cinema underground brasileiro (o Udigrudi), contra minha vontade.

Eu rejeitei o filme depois, por muitos anos. Mas o clima de opressão está ali, de fato. Só que travestido de puro desespero. É um filme bem interessante, ainda mais porque foi valorizado pela câmera magnífica de um Jorge Bodansky em início de carreira e pelo elenco principal maravilhoso, tendo à frente o Pereio e a Joana Fomm.

JOÃO BATISTA DE ANDRADE, 76, cineasta, é diretor de "Doramundo", vencedor dos prêmios de filme e direção do Festival de Gramado de 1978, e presidente do Memorial da América Latina.


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