Folha de S. Paulo


Consuelo de Castro leva consigo a arte de fazer grandes diálogos

RESUMO Amiga de Consuelo de Castro, a autora rememora a carreira dela e as cartas que trocou com a dramaturga, morta no último mês de junho, aos 70 anos. A jovem apaixonada que se destacou no cenário teatral no final dos anos 1960 e teve sua peça censurada, tornou-se uma das profissionais mais premiadas de seu meio.

A década de 1960 estava se acabando. Havia por toda parte um medo brutal de esquerdas e comunismos. Governos militares surgiam e permaneciam. Como consequência, parecia mesmo que o golpe de 1964 viera para ficar.

Claro que havia evidentes confrontos de opinião, vozes e grupos que tentavam expressar seu inconformismo, principalmente entre os mais jovens e mais politizados, estudantes universitários, na maioria das vezes. Falava-se, agia-se e logo vinham prisão, castigos, desterro.

A ação se apresentava, faltavam apenas as vozes que a representassem. Por que não o teatro?

Junto com a repressão, veio a censura aos movimentos artísticos. E justamente o teatro era a modalidade mais atingida naquela época em que a televisão era ainda só um projeto interessante.

O teatro, de fato, se apresenta ao vivo, quente, diante de plateia concreta e possivelmente atuante. O público está lá, reage, e reage escolhendo a maneira mais efetiva, que vai da palavra aos atos.

O Teatro de Arena, em São Paulo, por exemplo, não ignorava essa realidade, e estava procurando mudá-la. Ele, entre outros, com novos autores, novos diretores e, principalmente, novas ideias.

A cena teatral que se apresentara até então, entre São Paulo e Rio de Janeiro, já esgotara um modelo repetido e inócuo, dividido entre a revista festiva, que se permitia pôr em cena o próprio ditador, ou o drama repetido, literário e sem maiores ambições.

Já haviam aparecido Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, mas havia aparecido também, como ficou dito, a Censura Federal, constituída por funcionários públicos especialmente preparados para cercear e dominar a livre expressão do pensamento.

Faltavam as mulheres, que se projetavam em outros campos, na poesia, na narrativa ou em tentativas quase sempre frustradas no espaço do teatro.

MULHERES

Os primeiros anos da década não foram, nesse campo, apagados. Surgiam Edy Lima, Hilda Hilst e, modestamente, a que vos fala. Mas não tivemos muita repercussão, embora o protesto estivesse sempre fervendo em nós.

Faltavam mais mulheres.

Corria o ano de 1968. Uma mocinha de 19 anos, chegada pouco antes de Araguari, em Minas Gerais, estava matriculada na USP, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), mais especificamente em ciências sociais. A FFCL da USP e a Universidade Mackenzie dividiam livrarias e bares da rua Maria Antônia, mas, claro, os pensamentos eram diferentes. A Universidade Mackenzie, de origem presbiteriana, tinha de ser, naturalmente, conservadora.

A USP, claro, era de outra linha, com seu corpo docente já configurado, predominantemente de esquerda. E a garota Consuelo de Castro, 19 anos, liberal, no mínimo, e apaixonada por um líder combativo e heroico da filosofia, queria escrever.

Escreveu, e muito bem.

"À Prova de Fogo", com o tratamento dramático que, com extraordinária competência, apresentava os problemas épicos e líricos de nossa situação, foi, na altura, como era obrigatório, levado à Censura Federal. Com a maior presteza, contrariando a burocracia então vigente, vetou-se totalmente a apresentação e publicação da peça.

Como explica muito bem Elza Cunha de Vincenzo, no livro "Um Teatro da Mulher":

"Dentro da luta mais abrangente –o conflito entre os estudantes e a repressão– mergulhados no clima de expectativa criado pela invasão iminente da polícia, armam-se os conflitos internos: divergência de posições dos estudantes entre si, em relação à possível resistência, problemas existenciais, mágoas amorosas, rivalidades entre rapazes e moças."

DIÁLOGO

Em declaração recente, uma contemporânea e amiga, Leilah Assunção, declara, de modo insuspeito: "foi-se com Consuelo de Castro o melhor diálogo dos nossos tempos".

Muito bom diálogo, sem dúvida. Mas como se poderia fazer bom diálogo sem boas situações dramáticas, sem grandes personagens?

A criação dramática de modo geral encontrara, em Consuelo de Castro, a portadora ideal: imaginação, sutileza, mas, também, destemor no tocante ao conteúdo.

A Consuelo que conheci, mais ou menos nessa época, era uma moça bonita, corajosa, atrevida, porém cheia de grandeza e carinho. Carinho com seus personagens, inclusive, que casavam generosidade e valor, nas palavras e nos atos.

A voz da censura não a fez calar; no ano seguinte a autora apresenta novo trabalho: "À Flor da Pele", dois personagens apenas, um homem e uma mulher: Marcelo e Verônica, amantes, um professor que representava a visão constante e estática de um mundo, supostamente sábio e dominante, e ela, a aluna –rebelde, amorosa, mas obstada pelo bom senso alheio, que propõe tréguas, adiamentos, receitas de vida dupla, escondida.

Verônica não se deixa enganar:

"Verônica – Eu...TENHO PRESSA! Eu não suporto andar devagarinho...Não sou andor de procissão... Revolução é todo dia, toda hora, uma vida, muitas vidas, um processo..."

Para Verônica, mas também para Consuelo, era isso a vida: todo dia, toda hora, um processo. Uma existência em processo.

Está aqui exposta a jovem combatente sem tréguas, a que espera um filho, perde o filho, volta à luta, por si, pela sua geração, pelas gerações vindouras.

Consuelo não para, porém, depois do sucesso, de público e crítica, de "À Flor da Pele". Ela retorna, em 1974, com "Caminho de Volta", peça que recebe três prêmios importantes da cena teatral: o Molière, à época talvez o mais prestigioso, o de melhor autor teatral pela APCA e, finalmente, o Governador do Estado. Entrementes, escrevera e encenara "O Porco Ensanguentado", que ela mesma resume como "a história de quatro mulheres, de alta e média burguesia, teoricamente muito amigas, muito ligadas entre si, mas que, na verdade, se odeiam loucamente, competem entre si e têm uma vida desnutrida de sentido".

Aparece aqui, novamente, a Consuelo realista, até em demasia, talvez pessimista no momento, que reage e se expressa através de sua melhor arma: o diálogo contundente, sucinto e expressivo, que demonstra, com o apoio da cena, a sua visão de mundo.

A artista da palavra segue em sua luta pela realização humana e feminina. Mas "não, não tenho nada de feminista. Acho o feminismo um desvio ideológico, um falso problema", diz ela, em entrevista ao "Globo", na época.

Corriam os anos 1980. Consuelo já estava em sua sétima ou oitava criação dramática quando nos demos conta (ela e eu) de que nos agradava muito escrever cartas.

Tenho, dessa época, nove ou dez longas cartas da minha amiga, em geral sem data, em geral datilografadas e muito, muito interessantes.

Numa delas, talvez a primeira do grupo, ela comenta um incidente na Febem que, como sempre, redundara em violência contra os reclusos: "como é bom existir você, como é bom que existam poetas quando as portas da Febem explodem em desprezo. Chorei tanto quando aconteceu aquilo. Me senti desamparada, carente, violada...assistir de camarote ao espetáculo da mais absurda violência humana, homens extirpando a infância do caminho, úteros impotentes gerando filhos em porões escuros, no meio das ruas e depois atirando-os à morte. Não podem foder Maria e João sem que o resultado dessa foda vá parar à porta da Febem, humilhado?"

É terrível e comovente ver como essa explosão se realiza em literatura, e é das mais impressionantes peças de sinceridade da escritora.

Outra vez, ainda em 1986: "No ano dos meus 40 tinha uma ventania rebentando a minha avenca...eu pensava fazer 40 numa praia quente, com o arco-íris brilhando no horizonte..."

De repente, vida íntima, confissões, sempre da época: "quando conversamos sobre o nosso amigo ambíguo e charmoso, eu me senti assim como quem esconde um segredo e de você não posso, não devo, minha querida, amada, esconder nada".

A fala sincera, sempre, não escondia nada além de um bem querer mais puro. E ainda daquele ano. "E eu te mando alguma coisa que eu também quero salvar: o orgulho pelo meu trabalho, e esse feliz começo, quando eu passeava pela Barão de Itapetininga ao lado de Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia e de outros imensos pais luminosos que a vida me deu. Salvar de que? Da humilhação de hoje: a editora mandando dizer que não está, como se, por ser dramaturga essencialmente eu não pudesse me arremessar em outro pedaço."

Adiante:

"Não, claro que não vou ser nunca Beckett, e nem poderia ser Beckett ninguém a não ser ele mesmo. Mas eu posso ser uma Consuelinha, oras, por que não? Se não fosse a cara de pau eu não teria escrito 'Prova de Fogo' aos 19 anos."

E, finalmente:

"Você tem medo que eu sofra, minha doce irmã? Mas a gente tá aí prá isso!"

Adeus, minha doce irmã. Adeus, ou até logo. Sempre lutando, gozando ou sofrendo, que para isso viemos ao mundo, mulheres, artistas.

RENATA PALLOTINI, 85, escritora e dramaturga, é autora de "Um Calafrio Diário" (Perspectiva).


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