Folha de S. Paulo


Leia o conto "Oval com Pontas", do novo livro de Adriana Lisboa

ADRIANA LISBOA
ilustração ALEX KIDD

SOBRE O TEXTO O conto acima faz parte do livro "O Sucesso", que a escritora carioca lança pela Alfaguara no fim deste mês.

Alex Kidd/Folhapress
Colagem de Alex Kidd para a Ilustríssima de 17 de julho. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

De mãos dadas, o menino e a mãe do menino cruzam a praça. Os pombos levantam voo. O menino olha para o chão e salta sobre as rachaduras, sobre os intervalos entre as lajes do pavimento. Os pés dentro dos tênis número trinta e dois que estão um pouco largos na ponta.

Andam rápido. Ela olha constantemente para o relógio e diz que estão atrasados. A dificuldade de encontrar vaga para o carro. O trânsito ruim ainda bem que não moramos mais nesta cidade. O sinal de pedestres que custou a abrir. E as ranhuras no chão, ora retas, ora fragmentadas, ameaçando roçar a sola dos tênis número trinta e dois. Às vezes o menino precisa dar passos imensos, às vezes se deter para calcular o melhor trajeto. A mãe: para com isso, estamos atrasados. Estou com dor de cabeça, devia ter comido alguma coisa de manhã.

Quando chegam, pela porta lateral, a mãe procura um balcão, e lá dizem a ela que aguarde, o guia ainda não chegou. A mãe suspira aliviada.

Então leva o menino à porta principal e mostra a ele, lá fora, uma forma imensa. Brilhante e escura, de metal. Parece um ovo com um buraco no meio e duas pontas afiadas quase tocando uma na outra, dentro da barriga do ovo. A mãe diz: Oval com pontas. O menino responde: eu já sabia que era um oval com pontas, você não precisava me dizer, está na cara que é um oval com pontas.

A mãe ri. Parte da tensão secou no rosto dela. O menino sente alguma coisa como uma borboleta abrindo as asas no seu peito. Tem sido raro ver a mãe rir desde que houve o que houve e o menino não quer pensar nisso porque a borboleta em seu peito ameaça fechar as asas e se desmanchar, um sonho de borboleta, puf! Então, ri também, para injetar mais verdade no riso dela, e entrelaça os dedos pequenos roliços precisando cortar as unhas nos dedos compridos magros com um anel de prata.

Chega o guia. A mãe se apresenta, apresenta o filho, que cobre com os dentes o lábio inferior, como faz sempre que se sente encoberto, por sua vez, pela timidez inesperada. Chega um casal. Chega uma moça de salto alto, sozinha. Aguardam mais um pouco. Parece que somos só nós. A escada tem cordas na balaustrada, o menino gosta disso. De repente algo de afirmativo salta em seu rosto e ele sorri engraçado para o guarda sentado numa cadeira, já no segundo andar. O menino encontra um motivo de orgulho na mãe. Ela tem cabelos que dançam quando ela anda e um anel de prata no dedo.

A mãe está atenta. Antes de começar, diz o guia, quero destacar que esta é uma exposição de nível internacional, não só pela relevância das obras, mas pela maneira como estão distribuídas pelas salas, como vocês vão ver. Uma exposição que poderia muito bem estar, por exemplo, em Nova York.

Conforme as palavras ganham a primeira sala, o grupo engrossa. Vem mais gente. O menino já ouviu falar em Nova York. Não lembra exatamente quando. Nova York é uma cidade ou um país? Onde fica? O guia tem grandes olhos azuis e o menino pensa que os olhos claros deviam ser também um pouco transparentes e deixar a gente ver dentro deles. Os olhos do menino são iguaizinhos aos da mãe, escuros, da cor do Oval com pontas lá embaixo. O menino imagina como seria ter dois olhos em forma de ovais com pontas.

A mãe do menino concentra-se no que diz o guia. Olha para as obras que ele indica. Vê os desenhos roliços que mais parecem esculturas em duas dimensões. Vê a Cabeça da Virgem tão branca dentro do mármore fase inicial e o respeito ao material que pode ser a pedra a argila branca o concreto o bronze. A atenção do menino é que já se desgarrou do fio condutor. A mãe diz: você pode passear. Mas tem que ficar sempre na mesma sala em que eu estiver.

Ele se solta como a borboleta que abria as asas no seu peito, momentos antes. É uma borboleta sólida. Seria de alabastro, se o alabastro soubesse voar. Levanta os olhos para cá, para lá. E de repente pousa numa coisa que se chama Duas cabeças. Não são exatamente duas cabeças, ele pensa. Mas, ao mesmo tempo, são. Qual o nome dessa intensidade entre o que não é e o que é? No menino, um pensamento se formula sem palavras. Uma estranha comichão. Como se a visão duvidasse do que vê.

Ouve lá de longe o guia falando qualquer coisa sobre: a escultura brotando de dentro da pedra, feito um balão. De dentro para fora. O peso. O menino vê um peso. Uma coisa pesada. Lê Forma quadrada. Vê uns riscos e pontos. Imagina um balão soprando a pedra (de Borgonha) por dentro, um ar de pedra saindo dos pulmões de um gigante de pedra.

A escultura chamada Mãe e filho é um repuxo em pedra (de Ançã), coisa que o menino não pensa, mas vê, com seu novo olhar que duvida dos fatos concretos e abstratos: a mãe da escultura leva o filho no colo, mas aquilo também podia ser Coisa pesada e ondulada de pedra com um espaço no meio e buraquinhos que lembram olhos. O menino ri do título que deu. E aí se anima: Duas formas podia ser Bola e espécie de feijão com dois riscos largos que a gente tem a impressão de que se encaixam mas se tentasse encaixar não conseguiria. Ou então: Cabeça que descolou do corpo e rolou pelo chão.

Um universo se abriu ali. As coisas que ele reconhece e as que não. Ou, antes: tudo ele reconhece e estranha. Tudo é um pouco pela primeira vez. Parece que um gigante soprou o menino dentro do menino. Olho buraquinhos na pedra. Na escultura chamada Entalhe há três círculos fundos e uma espécie de letra l para fora. Mas há também uma cabeça virada para cima, um par de olhos, a boca arredondada, o nariz, o pescoço largo tipo o do professor de judô. Mas há também a pedra inteiramente pedra que é só volumes e traços explodindo num susto calmo de pedra.

Foram para a sala seguinte. A mãe faz um sinal. O guia dizendo alguma coisa sobre a guerra e sobre o barbante que o escultor usou naquela fase mas depois abandonou e obras que se parecem muito com –o menino deixa de ouvir. Montes de linhas se cruzam. Ele observa três pontas em garra, quase se tocando num pequenino lugar vazio que dói, e lê: ferro fundido. Isso de ferro fundido lhe dá um certo medo. Como também O elmo. Bronze. Agora há um oco dentro do peso. O peso ficou sem peso, ficou leve, cheio de buracos intervalos mistérios.

E se a escultura fosse o oco, e o bronze fosse somente a caixa que contém a obra de arte? Somente sua casca, invólucro? E se o melhor de tudo for o invisível –que ninguém sabe que existe, mas que atropela o mundo com a pressa de um elevador em queda livre? E se for isso o que chamam de alma das pessoas– o que se escava dentro delas, o lugar onde elas não estão?

Depois de provar o peso, o menino ensaia o espaço. Não a palavra que na sua escola usam para treinar a cedilha. Outra coisa. O despovoado que existe dentro dele. A vaga que o carro e o menino nunca vão ocupar. A vaga vaga. O vão.

Agora já se encaminham para outra sala. Ele vê sua mãe diante de uma escultura pequena e se aproxima. O guia diz que aquele foi um modelo para uma escultura muito, muito maior, encomendada para um festival. Na imaginação do menino, a figura reclinada vai se avolumando, apoia-se num campo aberto, tranquila e para sempre. Deve haver um vasto gramado e nuvens por cima do sol. Ele se vê galgando as pernas recurvadas de pedra e invadindo o interior do corpo, o espaço da barriga, a barriga do u no alto da cabeça. Aquela figura tem um corpo duplo, como um negativo de si mesma. O escultor usou o pretexto da pedra e também esculpiu o ar. A figura se reclina em som e em silêncio, ela tem uma fala escrita e tem o branco com que a página se protege entre uma palavra e outra.

O menino nem espera a contraordem: as outras salas contíguas estão visíveis, ele atravessa, ele se desloca e se desgruda como a Maquete para figura reclinada em duas peças, nº 1. Os corpos agora são dois pedaços. Na Figura quebrada ele vê o corpo partido e a pedra bruta se soltando lá dentro.

O menino e o escultor agora já são velhos amigos. As salas do museu, outra casa antiga de família que o menino vasculha sem medo de se perder. O escultor lhe mostra: peso-espaço, tamanho. Nas menores peças o menino vê formas gigantes competindo com edifícios e montanhas. O escultor lhe mostra: conchas, ossos, lâminas, pontos, volumes. O menino lhe devolve a avidez do olho que percorre o objeto não apenas pelos lados, por trás, mas também por dentro, e através, o olho que espreita pela janela das formas.

As pessoas se dispersam, o guia se despede –a mãe, sorriso, e o menino se esquecendo de cobrir com os dentes o lábio inferior. A sala de baixo já não requer o guia. Só um silêncio cúmplice que nem se sabe, que nem se dá conta. Diante do mármore, Figura reclinada, com panejamento, o menino e a mãe ocupam-se cada um de si mesmo. E nem se dão conta. E nem se dão conta de que seus olhares se tocam como nunca.

A mãe convida o menino, depois: vamos tomar um sorvete? O menino gruda a mão de novo na mão do anel de prata, estão agora mais quentes as duas mãos, um pouco suadas. À saída, antes de se encaminhar ao sorvete e à aventura dos tênis trinta e dois precisando outra vez vencer rachaduras e linhas do pavimento, o menino se encontra diante do Oval com pontas.

Ponta apontando para ponta. A curva que sai, a curva que se esconde, a outra que apenas se promete. A forma que puxa, a que se projeta. A luz do sol que se reflete aqui e ali, no metal. O menino para um instante e olha através do espaço do meio, bem na barriga do ovo. Lá atrás a tarde vai baixando. Alguns garotos se juntaram na praça e andam de skate.

O Sucesso
Adriana Lisboa
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É um mundo denso, um mundo espesso. Impenetrável, mas pronto para a abertura de uma forma. Isso o menino intuía antes de ser menino, quando ainda era apenas um balão que um gigante soprou dentro do corpo dela –a mulher que tem dedos compridos magros e um anel de prata. No céu, sobre suas cabeças, uma pequenina borboleta de alabastro acaba de aprender a voar.

ADRIANA LISBOA, 46, escritora, é autora de "Sinfonia em Branco" (Objetiva, vencedor do Prêmio José Saramago de 2003), entre outros.

ALEX KIDD, 30, designer da Folha, escreve no blog 120 BPM, no site do jornal.


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