Folha de S. Paulo


Escritor francês Yves Bonnefoy deixa obra erudita e monumental

RESUMO Ignorado pelo Nobel, francês deixa quase uma centena de livros, entre poemas e ensaios. Formado em matemática e tendo flertado com os surrealistas na juventude, Yves Bonnefoy deixa obra transistórica, repleta de referências mitológicas e que restitui a tensão entre o sentido, a memória e a natureza.

Eric Feferberg - 9.out.2001/AFP
(FILES) This file photo taken on October 09, 2001 at the College de France in Paris shows France's most famous contemporary poet Yves Bonnefoy posing. Bonnefoy died on July 2, 2016 at the age of 93, local media reported. The author of more than 100 books translated into 30 languages was highly decorated in his native France, and his name was often mentioned as a favourite to win a Nobel Prize for Literature. / AFP PHOTO / ERIC FEFERBERG ORG XMIT: PRI31EF
O poeta Yves Bonnefoy no Collège de France, em 2001

Em 2011, aos 88 anos, o poeta francês Yves Bonnefoy, morto no último dia 1º, publicou três livros: o ensaio, "Pierres - Alberto Magnelli" (Ides et Calendes), no qual analisa a obra do pintor italiano; o calhamaço de mais 400 de páginas "Sous le Signe de Baudelaire" (sob o signo de Baudelaire; Gallimard), coletânea de ensaios sobre o poeta, e o conjunto de poemas "L'Heure Présente" (a hora presente; Gallimard).

A sucessão de lançamentos demonstrava que um dos últimos grandes poetas europeus continuava a diversificar os limites de uma obra prolífica, disseminada entre o ensaio, a tradução e a poesia, com resultado difícil de igualar.

A notícia de sua morte se propagou pelo mundo e certamente ainda veremos muitas análises, balanços e evocações sobre o poeta que, ao longo de mais de 60 anos de vida literária, publicou quase uma centena de títulos, foi traduzido em 30 idiomas, e cuja obra final ele ainda teve tempo de ver sair, em maio deste ano -uma espécie de autobiografia a partir de um poema reencontrado, "L'Écharpe Rouge" (a echarpe vermelha; Mercure de France).

Bonnefoy nasceu em Tours, em junho de 1923. Seu pai era trabalhador ferroviário e a mãe, enfermeira. Sua infância se dividiu entre a casa paterna e a dos avós maternos, onde o jovem gostava de estar, evocada remotamente décadas depois como o "verdadeiro lugar" no livro "L'Arrière-pays" (1972) -termo geográfico que designa a terra atrás de um porto ou de uma cidade, aqui, algo como "transpaís" ou "ultramundo": "a intuição de um país, de uma essência mais alta, em que poderia ter vivido e que perdi para sempre".

FORMAÇÃO

É curioso notar que sua formação inicial não acusava nada do que veio a fazer, pois estudou inicialmente matemática. Em 1944 mudou-se para Paris, onde se aproximou dos surrealistas, embora logo tenha se apartado, definindo sua independência criativa. O influxo presente em sua poesia foi dominado pelas figuras tutelares, os fundadores da moderna poesia francesa, como Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud -sobre quem escreveu um livro antológico, "Notre Besoin de Rimbaud" (nossa necessidade de Rimbaud, 2009).

Na década de 1950, dá início aos estudos sobre arte, tornando-se discípulo de um dos grandes historiadores da arte franceses, André Chastel. No campo da estética, Bonnefoy se transformou num ensaísta extraordinário, analisando autores tão distintos como Tiepolo, Edward Hopper, Giovanni Bellini, Mantegna ou Mondrian, Cartier-Bresson, Giacometti, Balthus, Miró, Goya, entre muitos outros. Seus ensaios estribam-se na percepção que se abre para a reflexão hermenêutica da arte e a interpretação dos textos literários.

Dedicou-se ainda a temas como o barroco italiano e a pintura gótica francesa. Citaria como obras decisivas os livros de ensaios "Le Nuage Rouge" (a nuvem vermelha, 1977), que, a partir de quadro homônimo de Mondrian, destrincha a obra de outros pintores, "L'Improbable" (o improvável, 1980), sobre poesia e pintura, e o ótimo "La Verité de Parole" (a verdade de palavra, 1988), dedicado a escritores como Nerval e Borges.

Mas o seu projeto mais ousado foi o "Dictionnaire des Mythologies et des Religions des Sociétés Traditionnelles et du Monde Antique" (dicionário de mitologias e religiões de sociedades tradicionais e do mundo antigo), um colosso em quatro volumes, com sua direção e coordenação, no comando de uma equipe de dezenas de especialistas. Tal dedicação foi reconhecida, em 1981, quando Bonnefoy foi convidado a assumir a cátedra de estudos comparados da função poética do Collège de France, ocupando o lugar que fora de Roland Barthes, onde permaneceu até 1993.

POÉTICA

Em 1953, Bonnefoy lança seu primeiro livro de poesias, "Du Mouvement et de l'Immobilite de Douve" (do movimento e da imobilidade de Douve). E sucedem-se, ano após ano, livros como "Hier Régnant Désert" (reinante ontem deserto, 1958), "Pierre Écrite" (pedra escrita, 1965), "Ce qui Fut sans Lumière" (aquilo que foi sem luz, 1987), "Début et Fin de la Neige" (início e fim da neve, 1995), "Les Planches Courbes" (as tábuas curvas, 2001). No Brasil, há uma edição de sua poesia, a coletânea "Obra Poética", que a editora Iluminuras lançou em 1998, com tradução e organização de Mário Laranjeira.

A pulsão ontológica que atravessa a sua poesia se manteve intacta ao longo do seu percurso, estendendo-se até o fim, como se vê no livro publicado este ano, "L'Écharpe Rouge", um poema longo com pouco mais de cem versos, em que o autor parece encetar a viagem pelo tempo, com ressonâncias sobre os pais e suas origens. O lirismo de Bonnefoy atua sob a presença da linguagem como experiência sensível, tendo como primazia a expressividade inquiridora acerca do homem, do mundo e do real, exemplarmente definida neste quase dístico: "L'obscure possible terrestre" (o obscuro possível terrestre).

A poesia de Bonnefoy singrou a densidade onírica (logo, surreal), rumo à dimensão metafísica que se arraigou com maior profusão a partir da década de 1990. Sua consciência poética restitui a tensão entre o sentido, a memória e a natureza. O seu espaço se expande, torna-se transistórico, daí as referências mitológicas que cruzam muitas de suas obras. Disso são prova o ciclo do Graal atuante em "Douve", "Hier Règnant Désert" e "Pierre Écrite"; o mito de Psiquê em "Ce qui Fut sans Lumière"; ou de Ceres, Marsias e Ulisses em "Les Planches Courbes". Este livro, em particular, é uma homenagem a "Flores do Mal", enquanto estrutura, e no qual o poeta parece dar voz ao pai, morto quando Bonnefoy tinha 13 anos.

O discurso poético é guindado ao espaço vital da inquirição sobre a existência, esquadrinhando os fundamentos do ser. A prática criadora mescla-se com o ato crítico, e o poeta fixa a essência de uma escrita filosófica, sem vedar a passagem ao leitor. O relativo sucesso na época do lançamento de "Les Planches Courbes" na França corrobora esse fato.

TRADUTOR

Como tradutor, Yves Bonnefoy revelou-se um obsessivo pela obra de Shakespeare, tendo realizado inúmeras traduções das peças e poemas do autor inglês. Os textos que antecedem as traduções são verdadeiros tratados sobre o ato de traduzir, que ele encarava como intercâmbio com o outro, e elucidado numa frase lapidar: "Traduzir é a escola do respeito". Por isso seguiu uma práxis intensa e refletiu sobre esse trabalho, segundo a visão metapoética. Mas a sua atenção não ficou por aí e ele verteu ainda autores como John Keats, William Butler Yeats, John Donne, Petrarca e Leopardi.

Durante anos seu nome foi cotado para o Nobel, mas não caiu nas graças da Academia Sueca. Descuido típico, como bem sabemos, que sempre se repete.
Apesar de todas as referências eruditas, e de uma obra gigantesca, Bonnefoy era discretíssimo, e tinha consciência do que acontecia ao seu redor. Numa passagem por Madri, em 2014, afirmou aos jornalistas: "Acredito muito na poesia, porque é a origem da consciência democrática. A poesia restitui a presença dos outros e nos faz respeitá-los. Se abandonamos a poesia, que é o que agora sucede, corremos o risco de desvalorizar o espírito democrático".

Portanto, uma obra que pode ser designada, sem qualquer dúvida, como um genuíno clássico vivo, mesmo que ele já não esteja trabalhando em seu estúdio da rua Lepic, próxima a Montmartre.


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