Folha de S. Paulo


A guerra de Drummond contra um épico dos militares

RESUMO Uma epopeia sobre a Retirada da Laguna, durante a Guerra do Paraguai, motiva um dos raros momentos de hostilidade na correspondência de Drummond. Como pano de fundo da desavença pessoal com um autor esquecido estão a Segunda Guerra Mundial, a ditadura Vargas e a guinada do poeta à esquerda.

Eurico Dantas/Agência O Globo
Drummond na livraria Leonardo da Vinci, em foto de 1982
Drummond na livraria Leonardo da Vinci, em foto de 1982

Em 1867, na Guerra do Paraguai, um pelotão do Exército brasileiro liderado por um coronel audacioso invadiu o território do país vizinho. O ataque mostrou-se um grande erro estratégico, e os militares tiveram de recuar às pressas, numa fuga na qual mais de um terço dos soldados morreu, vítima de doenças como a cólera e das investidas da cavalaria paraguaia.

O episódio ficou conhecido como a Retirada da Laguna. Desde então, o Exército trata a debandada como ato heroico, em uma comparação exagerada com a Retirada dos Dez Mil da Pérsia, evento descrito em livro pelo grego Xenofonte.

Durante a ditadura do Estado Novo (1937-45), Getúlio Vargas quis agradar aos militares e promoveu uma série de homenagens à gloriosa fuga. Uma delas foi a construção de um memorial aos soldados mortos, que permanece até hoje quase ignorado na Urca, na zona sul do Rio.

Alguns civis também tomaram parte nessa louvação. Entre eles o escritor mineiro Martins de Oliveira (1896-1975), que escreveu um poema épico narrando os pormenores do evento e o lançou em livro batizado de "A Retirada da Laguna". Oliveira era um escritor de relativa fama. Foi desembargador e secretário de Justiça em Minas Gerais e deixou mais de 30 livros publicados. Em sua epopeia, ele evoca Camões e Virgílio e se esforça na produção de uma peça à altura do gênero, com todo o arcadismo e o espírito heroico a ele natural.

O escritor publicou o livro em 1941, com grande expectativa de ser bem recebido pelo público e pela crítica. O lançamento foi incensado pelos generais do Exército que, talvez sem se importar muito com a fatura da obra, elogiaram a atitude patriótica do autor. A crítica especializada, no entanto, ficou em silêncio. Um único comentário apareceu, em nota maldosa do "Correio da Manhã", na qual o crítico Álvaro Lins, ironizando o esforço do colega, chamava sua epopeia de "a mais prosaica das descrições da Retirada da Laguna".

Martins de Oliveira também enviou o livro a amigos escritores, aguardando os comentários elogiosos de praxe. Nenhum deles respondeu, segundo relatou em carta. Ficaram em silêncio Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Afonso Pena Júnior, Abgar Renault, Cyro dos Anjos, Afonso Arinos e Mário Casasanta.

INCENTIVO

Como o escritor, na juventude, fora companheiro de Drummond em Belo Horizonte, considerou que poderia insistir com este com uma mensagem de incentivo, em nome dos velhos tempos. Começou a bombardear o poeta com cartas cobrando sua opinião sobre a obra. "Negam-lhe exame os maiores críticos do Brasil contemporâneo", lamentou. As mensagens de Oliveira, inicialmente cordiais, foram ganhando um tom de intimação.

Drummond não teve como se esquivar de emitir um juízo. E procurou ser bastante claro na sua resposta: "O silêncio sobre a 'Retirada da Laguna' significa, realmente, que essa obra não me comoveu nem me agradou. Achei frustrada a sua tentativa", escreveu. Ele completava afirmando que não respondera antes "não por timidez, mas por um sentimento cordial de confrade que, não podendo aplaudir, preferiu calar-se".

Oliveira poderia ter encerrado o caso aí, aceitando o fracasso e deixando o gênero épico para vates de maior inspiração que a sua. Mas decidiu exercer o direito sagrado de espernear. Escreveu longas cartas a Drummond, chamando-o para o debate e pedindo que ele justificasse sua opinião.

"Abrange a sua afirmação o livro na totalidade? [...] Não há no trabalho algum trecho que se salve?", escrevia. Ao mesmo tempo, Álvaro Lins começou a receber cartas ofensivas de um certo Luciano Barca, remetente de Minas Gerais que diminuía o trabalho do crítico no "Correio da Manhã" e também falava mal de Drummond.

Passadas algumas semanas, Álvaro Lins encontrou-se com Drummond por acaso no centro do Rio de Janeiro. Durante a conversa o assunto da correspondência veio à tona. Desconfiados, decidiram cotejar as cartas recebidas por cada um, de onde concluíram que Martins de Oliveira e Luciano Barca eram a mesma pessoa.

Como Luciano Barca, ele escrevia a Álvaro Lins falando mal do poeta: "Carlos Drummond de Andrade é homem que se vale da posição proeminente que desfruta nos meios governamentais para se fazer lido". Como Martins de Oliveira, ainda esperando uma posição favorável ao livro, escrevia a Drummond subserviente, dizendo que o poeta havia alcançado um "triunfo merecido", "não pela posição que desfruta nos meios intelectuais e oficiais do país, nem pelos amigos, mas exclusivamente tão só pela sua inteligência".

O documento que mostra o cotejo das cartas, que data de outubro de 1942, está arquivado no acervo de Carlos Drummond de Andrade, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. Ele aponta várias outras situações do gênero.

Num texto de introdução ao trabalho, o poeta explica como surgiu a ideia de comparar as cartas, a metodologia empregada e os resultados. Lê-se num dos trechos: "Pelo confronto, ficou materialmente provado que Martins de Oliveira e Luciano Barca usavam o mesmo papel, possuíam a mesma máquina de escrever e assinavam com a mesma tinta. Outras semelhanças, de vocabulário e de estilo, acentuaram a identificação dos missivistas, completada com o confronto de circunstâncias, fatos e julgamentos, mencionados nas duas séries de cartas".

O texto também fala da solução que foi adotada pelos dois escritores: "Positivada a individualidade única dos dois missivistas literários –identificados pelo ódio comum a Álvaro Lins, que não louvara a literatura de Martins de Oliveira– Carlos Drummond e Álvaro Lins fizeram um ligeiro cotejo escrito dos textos, remetendo-o, sem comentário, a Martins de Oliveira".

O autor de "A Retirada da Laguna" recebeu esse documento, mas não aceitou o teor das acusações que se fazia contra ele. Em missiva ao poeta, escreveu: "Peço vênia para lhe devolver a carta que me enviou e que, em absoluto, não pode ficar, e não ficará, em mãos de homem de honra e muito menos nas de mineiro".

PERSEGUIÇÃO

O turbulento episódio é uma ocorrência rara em toda a vasta correspondência de Drummond. O poeta sempre foi gentil em suas cartas, nas quais sobram elogios mesmo a autores menores e iniciantes. Nesse caso, além da falta de qualidade da obra e da impertinência do autor, a perseguição comezinha a que o poeta se dedicou deixa entrever um elemento político envolvido.

A Retirada da Laguna era um fato histórico muito caro aos militares. A série de homenagens prestadas pelo Estado Novo colocou o evento novamente em evidência. E o livro de Martins de Oliveira estava intimamente ligado ao interesse do Exército em promover o heroísmo dos soldados em fuga.

Drummond, àquela altura trabalhando no Ministério da Educação, mas nutrindo sérias incompatibilidades ideológicas com a ditadura de Vargas, estava em rota de colisão com os militares.

Nesse exato período, em 1942, submarinos alemães bombardeavam navios brasileiros na costa americana, o que precipitou a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Era justamente uma parcela dos militares, capitaneada por Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra, e Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior, declarados simpatizantes do regime nazista, que pressionava o governo a não se aliar aos americanos.

Drummond era um partidário entusiasta da entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados. A medida era apoiada pelo Partido Comunista, ao qual ele se ligaria mais tarde. Essa foi a fase de maior radicalização política e ideológica do poeta, que ficaria bastante clara nos poemas do seu livro "A Rosa do Povo", publicado em 1945. Nesse contexto explosivo, surge Oliveira com sua "Retirada da Laguna", celebrando um feito militar.

Oliveira jamais recebeu os elogios que aguardava e acabou perdendo o amigo. Dois dias antes de enviar a carta decisiva, Drummond escreveu ao colega: "Nada mais tenho a dizer-lhe senão que fico com Álvaro Lins. E peço-lhe interromper uma correspondência já agora inútil".

Martins de Oliveira morreu em 1975, sem deixar um grande legado. Em sua homenagem foi batizada uma avenida na periferia de Belo Horizonte e uma escola na cidade de Ubá, interior mineiro. Na história da literatura brasileira, seu nome ficou esquecido. Sobre a Retirada da Laguna, o único livro que passou à posteridade foi o que Visconde de Taunay escreveu, ainda no século 19.

MARCELO BORTOLOTI, 41, jornalista, é doutorando em literatura brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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