Folha de S. Paulo


Leia trecho de "Graziella", romance romântico de Alphonse de Lamartine

SOBRE O TEXTO Em "Graziella", o autor francês se debruça sobre o tema romântico do artista expatriado, no caso, o jovem narrador, aprendiz de poeta, que parte da França para a Itália, onde conhece Graziella, filha de uma família de pescadores. O romance –conforme esclarece no posfácio a tradutora da obra, que sai em julho pela Carambaia–, nasce de experiências juvenis do escritor. Enviado à Itália pelos pais, aos 21, a fim de curar-se de um caso amoroso, conheceu a jovem que lhe daria o modelo de Graziella. Lamartine só elaboraria literariamente a aventura aos 59 anos. O texto saiu primeiro como parte de "Les Confidences", em 1849, e ganhou edição independente em 1852.

Fernando Vilela

I

Nosso retorno a Nápoles, margeando o fundo do golfo de Baia e as encostas sinuosas do Posilippo, foi uma verdadeira festa para a jovem, para as crianças, para nós, e um triunfo para Andrea. Chegamos a La Margellina à noite fechada e cantando. Os velhos amigos e os vizinhos do pescador não se cansavam de admirar sua nova barca. Ajudaram a descarregar e a puxá-la para a terra. Como nós lhe tínhamos proibido de dizer a quem ele a devia, não nos deram atenção.

Depois de termos puxado a embarcação para a areia e posto os cestos de figos e de uvas embaixo da casa de Andrea, perto da soleira de três quartos baixos habitados pela velha mãe, as criancinhas e Graziella, nós nos retiramos despercebidos. Atravessamos, não sem ficar com o coração apertado, o tumulto barulhento das ruas populosas de Nápoles e voltamos para nossos albergues.

II

Nós nos propusemos, depois de alguns dias de descanso em Nápoles, a retomar a mesma vida com o pescador sempre que o mar permitisse. Estávamos tão bem acostumados à simplicidade de nossos hábitos e à nudez da barca depois de três meses que a cama, os móveis de nossos quartos e nossas roupas de cidade pareciam um luxo vergonhoso e fastidioso. Esperávamos não retomá-los senão por poucos dias. Mas no dia seguinte, indo procurar no correio nossas cartas atrasadas, meu amigo encontrou uma de sua mãe. Ela chamava seu filho sem demora para a França a fim de assistir ao casamento de sua irmã. Seu cunhado devia chegar antes dele em Roma. Segundo as datas, ele já devia ter chegado lá. Não havia como demorar: era preciso partir. Eu deveria ter partido com ele. Não sei que tentação pelo isolamento e pela aventura me retinha: a vida de marinheiro, a cabana do pescador, a imagem de Graziella talvez fizessem parte disso, mas confusamente. A vertigem da liberdade, o orgulho de me manter sozinho a 300 léguas de meu país, a paixão pelo vago e desconhecido, essa perspectiva aérea das imaginações jovens correspondiam à maior parte.

Nós nos separamos com um enternecimento masculino. Ele prometeu voltar e me reencontrar assim que tivesse satisfeito seus deveres de filho e de irmão. Emprestou-me 50 luíses para preencher o vazio que aqueles seis meses tinham feito em meu bolso e partiu.

III

Essa partida, a ausência de meu amigo, que era para mim o que um irmão mais velho é para um irmão quase criança, me deixaram em um isolamento que todas as horas aprofundavam ainda mais e no qual eu me sentia afundar como em um abismo. Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos, todas as minhas palavras que antes se evaporavam na troca com ele ficavam em minha alma, corrompiam-se ali, entristeciam-se e caíam novamente no coração como um peso que eu não poderia mais levantar. Esse barulho em que nada me interessava; essa multidão em que ninguém sabia meu nome; esse quarto onde nenhum olhar me respondia; essa vida de albergue onde esbarramos todo o tempo em desconhecidos, onde nos sentamos à mesa mudos ao lado de homens sempre novos e sempre diferentes; esses livros que lemos cem vezes, e cujos caracteres imóveis forneciam sempre as mesmas palavras na mesma frase e no mesmo lugar; tudo isso que tinha me parecido delicioso em Roma e em Nápoles, antes de nossas excursões e de nossa vida vagabunda e errante do verão, agora parecia uma morte lenta. Meu coração se afogava em melancolia.

Alguns dias eu levava essa tristeza de rua em rua, de teatro em teatro, de leitura em leitura, sem poder me livrar dela; depois, enfim, ela acabou por me vencer. Fiquei doente com o que chamam de tristeza do exílio. Minha cabeça estava pesada, minhas pernas não suportavam meu peso. Estava pálido e esgotado. Não comia mais. O silêncio me entristecia, o barulho me fazia mal, eu passava as noites sem sono e os dias deitado em minha cama, sem ter nem vontade nem mesmo força para me levantar. O velho parente de minha mãe, o único que poderia se interessar por mim, tinha ido passar alguns meses a 30 léguas de Nápoles, nos Abruzzi, onde queria estabelecer umas manufaturas. Eu pedi um médico; ele veio, me olhou, tateou meu pulso e disse que eu não tinha doença nenhuma. A verdade era que eu tinha um mal para o qual a medicina não tinha remédio, um mal da alma e da imaginação. Ele se foi. Não o revi mais.

IV

Entretanto, me senti tão mal no dia seguinte que procurei na memória quem poderia me dar algum socorro e alguma piedade, se não conseguisse mais me levantar. A imagem da pobre família do pescador de La Margellina, junto à qual eu ainda vivia em lembrança, me veio naturalmente ao espírito. Mandei uma criança que me servia procurar Andrea e dizer-lhe que o mais jovem dos dois estrangeiros estava doente e pedia para vê-lo.

Quando a criança levou minha mensagem, Andrea estava no mar com Beppino; a avó estava ocupada vendendo peixes nos cais de Chiaia. Só Graziella estava em casa com seus irmãozinhos. Ela mal teve o tempo de confiá-los a uma vizinha, vestir-se com suas roupas mais novas de procidana e seguiu a criança que lhe mostrava a rua, o velho convento, e a precedeu na escadaria.

Ouvi baterem docemente à porta de meu quarto. A porta se abriu como se empurrada por uma mão invisível: vi Graziella. Ela soltou um grito de piedade quando me viu. Deu alguns passos em direção de minha cama; depois, retendo-se e parando, em pé, as mãos entrelaçadas e pendendo sobre seu avental, a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo em pose de Pietá: "Como ele está pálido", disse baixinho; "e como tão poucos dias puderam lhe mudar assim a aparência! E onde está o outro?", ela perguntou, voltando-se e procurando com os olhos pelo quarto meu companheiro de sempre.

– Ele partiu – eu lhe disse –, e estou sozinho e sem conhecidos em Nápoles.

– Partiu? – ela perguntou. – Deixando-o só e doente assim? Então ele não gosta do senhor! Ah! se estivesse em seu lugar, eu não teria partido; e, no entanto, não sou seu irmão, só o conheço desde o dia da tempestade!

V

Eu expliquei que não estava doente quando meu amigo me deixou.

– Mas como? – ela retomou vivamente e com um tom de reprimenda meio tenso, meio calmo –, o senhor não pensou que tinha outros amigos em La Margellina? Ah! Eu sei – ela acrescentou tristemente e, olhando as mangas e a bainha de seu vestido –, é que somos pobres e teríamos lhe dado vergonha entrando nessa bela casa. Tanto faz – ela continuou enxugando os olhos, que não tinha desviado de meu rosto e de meus braços abatidos –, mesmo se fôssemos desprezados, teríamos vindo de qualquer maneira.

– Pobre Graziella – respondi sorrindo –, Deus me guarde do dia em que tiver vergonha daqueles que me amam!

ALPHONSE DE LAMARTINE (1790-1869) escritor francês, um dos grandes nomes do romantismo em seu país.

SANDRA M. STROPARO, 46, é professora de literatura brasileira e teoria literária na Universidade Federal do Paraná.

FERNANDO VILELA, 42, é artista plástico, designer e autor de, entre outros, "Lampião e Lancelote" (Cosac Naify).


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