Folha de S. Paulo


Leia trecho inédito de "O Processo do Tenente Ieláguin", de Ivan Búnin

SOBRE O TEXTO "O Processo do Tenente Ieláguin", do qual se extraiu este trecho, é um romance breve, escrito no exílio do autor, que, contrário aos bolcheviques, deixou a Rússia em 1918. O livro –que conta a trágica história de amor entre a bela dama Sosnóvskaia e seu assassino, o militar do título, a partir do processo do crime– foi a última tradução que Boris Schnaiderman reviu e sai no segundo semestre pela editora 34.

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Reprodução
"Olhos de Lylia" (2000), cartaz lambe-lambe de Lenora de Barros (a partir de capa de livro de Maikóvski), da série "Ping-poema para Boris"

Pois bem, eis o que sucedera na manhã de 19 de junho do ano passado.

Depois de meia hora, o conde Kochitz e o segundo-tenente Siévski já se encontravam junto ao prédio em que residia Sosnóvskaia. Agora, não estavam mais para brincadeiras.

Deixaram o cocheiro quase extenuado, saíram do fiacre às carreiras, ficaram enfiando a chave no buraco da fechadura e tocaram desesperadamente a campainha, mas a chave não entrava, e não se ouvia nenhum ruído atrás do porta. Perdendo a paciência, foram depressa para o pátio e puseram-se a procurar o zelador. Este correu para a cozinha do apartamento, pela escada de serviço, e, voltando, disse que, segundo a empregada, Sosnóvskaia não dormira em casa; ela saíra de noitinha, carregando certo embrulho. O conde e o tenente ficaram perplexos: o que fazer? Pensaram um pouco, deram de ombros, voltaram ao carro e foram à delegacia, levando consigo o zelador do prédio. Da delegacia, telefonaram ao capitão Líkhariev. O capitão gritou furioso ao telefone:

– Este idiota, que quase me faz chorar, esqueceu-se de dizer que era preciso ir não ao apartamento dela, mas ao covil de amores que eles arrumaram: Starográdskaia, número 14. Está ouvindo? Starográdskaia, 14. Uma espécie de "garçonnière" parisiense, com entrada diretamente da rua...

Foram a toda brida à Starográdskaia.

O zelador ficou na boleia, o agente de polícia acomodou-se no fiacre, em frente dos oficiais, com um ar de discrição e independência. Fazia calor, as ruas estavam barulhentas e apinhadas de gente, e custava-se a acreditar que, nessa manhã tão ensolarada, de tanto movimento na rua, alguém pudesse jazer morto em algum lugar, e ficava-se espantado ao pensar que isto fora obra das mãos de Sachka Ieláguin, de 22 anos. Como pudera decidir-se? Por que a matara, em castigo do que, e como? Não se conseguia compreender nada, as perguntas ficavam sem nenhuma resposta.

Quando, finalmente, eles pararam junto a uma velha casa de dois andares, nada acolhedora, na Starográdskaia, o conde e o tenente, segundo se expressariam depois, "perderam completamente o ânimo". Então, aquilo era ali mesmo, e seria possível que fosse necessário vê-lo? E, no entanto, sentiam-se arrastados a ver aquilo, e arrastados de modo incoercível. O agente, pelo contrário, sentiu-se, no mesmo instante, severo, animado e confiante.

– Queiram passar-me a chave – disse com secura e firmeza, e os oficiais apressaram-se a entregar-lhe a chave; o zelador não o faria com maior timidez.

No centro do prédio, havia um portão, atrás dele via-se um pequeno pátio e uma arvorezinha, cujo verde era de um vivo que parecia antinatural, talvez em virtude dos muros de pedra, de um cinza escuro. À direita do portão ficava justamente aquela porta misteriosa, que dava diretamente para a rua e que era necessário abrir. O agente de polícia franziu o cenho, enfiou a chave, a porta se abriu, e o conde e o tenente viram algo que parecia um corredor completamente às escuras. O agente como que farejou onde era preciso procurar, estendeu a mão para a frente, arrastou-a pela parede e iluminou o compartimento estreito e sombrio, no fundo do qual havia uma mesinha entre duas poltronas, e sobre ela pratos com restos de carne de caça e de frutas. No entanto, foi ainda mais sombrio aquilo que surgiu aos olhos deles, depois que avançaram mais. À direita do corredor havia uma pequena entrada para o quarto vizinho, também escuro, apenas com uma iluminação tumular, suprida por um lampiãozinho cor de opala, pendente junto ao teto, sob uma enorme umbela de seda preta. Todas as paredes do quarto estavam igualmente forradas com algo preto, o quarto não tinha nenhuma janela. Ali, também no fundo, havia um divã turco, grande e baixo, e nele jazia, branquejando, apenas de camisola, olhos e lábios entrecerrados, a cabeça pendente sobre o peito, as extremidades alongadas, as pernas ligeiramente abertas, uma mulher bem jovem, de rara beleza.

Os que tinham entrado se detiveram, imobilizados, por um momento, de espanto e medo.

IVAN BÚNIN (1870-1953) foi o primeiro russo ganhador do Nobel de Literatura, em 1933.

BORIS SCHNAIDERMAN (1917-2016), tradutor, escritor e ensaísta ucraniano radicado no Brasil.


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