Folha de S. Paulo


Dez anos depois, filme "Uma Verdade Inconveniente" é atual

RESUMO Em 2006, o político e ativista ambiental Al Gore lançou luz sobre a causa do aquecimento global com o documentário "Uma Verdade Inconveniente". Comparando as previsões do filme com os fatos verificados e com o panorama atual dos estudos, é possível concluir que Gore errou no varejo, mas acertou no atacado.

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Al Gore em cena do documentário
Al Gore em cena do documentário "Uma Verdade Inconveniente"

Em 2006, seis anos após sua tentativa de tornar-se presidente dos EUA ter fracassado, Al Gore lançou o documentário "Uma Verdade Inconveniente". O filme foi destaque em jornais no mundo inteiro e venceu dois Oscar, incluindo o de melhor documentário.

Sua missão era alertar a população mundial sobre os perigos do aquecimento global, o aumento inexorável da temperatura do nosso planeta devido ao acúmulo de gases poluentes na atmosfera.

Como efeito colateral do sucesso do filme, a questão do aquecimento global, em particular o papel da humanidade nele, tornou-se tão ou mais aquecida politicamente do que a atmosfera. Sua mensagem, baseada nos estudos de centenas de cientistas, é ao mesmo tempo simples e preocupante –para alguns aterrorizante: se nada for feito para atenuar a emissão de gás carbônico e outros gases responsáveis pelo efeito estufa, a temperatura global continuará a subir, as calotas polares irão descongelar, o nível dos oceanos se elevará, e os padrões climáticos do planeta sofrerão mudanças profundas, muitas delas devastadoras.

Passados dez anos, e apesar do ceticismo insistente de muitos –que chegam a chamar o aquecimento global de uma farsa dos liberais–, essas verdades continuam absolutamente válidas. O planeta continua aquecendo, e a razão principal é a poluição gerada por gases produzidos pela queima de combustíveis fósseis. Em sua essência, o filme acertou.

URGÊNCIA

Em artigo recente publicado na revista "Science News", o jornalista Thomas Sumner reanalisa as previsões de Gore –o que mudou nos últimos dez anos, no que o filme acerta e no que erra. Uso o artigo de Sumner como ponto de partida para traçar comentários sobre essa questão, de urgência global e imediata.

O filme previa que, em dez anos, as neves do Kilimanjaro não existiriam mais. Felizmente, não é o caso, mesmo que o volume das geleiras tenha diminuído criticamente.

Talvez o maior equívoco do filme seja sua retórica cataclísmica, atribuindo certos desastres climáticos ao aquecimento global. Por exemplo, o terrível furacão Katrina, que atingiu os EUA em agosto de 2005, matando 1.245 pessoas.

Dado que os estudos sobre o aquecimento global são de natureza estatística, é um tanto arriscado atribuir um evento específico ao aumento global de temperatura. Mais correto é observar tendências que vão se acumulando, enquanto dados vão sendo coletados.

Mesmo assim, o filme acerta bem mais do que erra. É fácil entender o porquê do exagero retórico. O perigo existe e está mudando nosso planeta. Sem fazer barulho, ninguém escuta nada.

Lonnie Thomson, o climatologista mundialmente famoso cujos estudos do degelo acelerado das geleiras andinas foi inspiração para o filme, reafirma sua posição: "Estamos confirmando que a física e química dos últimos 200 anos [usadas nas previsões de mudanças climáticas] está correta. Aprendemos muito nos últimos dez anos, mas o fato é que a rápida mudança climática que presenciamos nos últimos 40 anos está sendo causada pelo aumento de gás carbônico na atmosfera".

Em 2006, a previsão era de que a frequência e intensidade dos furacões aumentaria devido ao aquecimento dos oceanos. Passados dez anos, a frequência dos furacões caiu um pouco, e sua intensidade não mudou muito. Ainda.

Um estudo publicado em 2010 na revista "Science" prevê que o número de furacões de categoria 4 e 5 (o nível do Katrina) poderá dobrar até 2100, mesmo se o seu número total não aumentar. Ou seja, aumenta a intensidade dos furacões, e não o seu número. Para piorar, com a subida prevista do nível do mar, os furacões penetrarão mais terra adentro, aumentando os danos. Portanto hoje vemos que a ameaça dos furacões é ainda mais séria do que previa o filme.

Em 2006, uma previsão importante afirmava que o degelo nas regiões árticas iria inundar o Atlântico Norte com água doce fria, interrompendo o fluxo de água morna dos trópicos até a Europa.

Hoje, não parece que essa interrupção venha a ocorrer. Por outro lado, foi detectada uma desaceleração gradual das correntes oceânicas, que impactará principalmente o clima ao longo do Atlântico. Ainda não é claro o impacto a longo prazo dessa desaceleração sem precedentes nos últimos mil anos –também aqui o prognóstico é potencialmente pior do que o mostrado no filme.

POLÍTICA

Mesmo que seja arriscado relacionar mudança climática e instabilidade política, o período de 1998 a 2012 foi o mais seco no leste do Mediterrâneo desde o ano de 1100. Pessoas com sede e fome partem em busca de água e comida. Secas severas interrompem a produção e distribuição de alimentos, causando migrações para áreas urbanas. Essas migrações, por sua vez, causam instabilidade social e crises de refugiados.

Alguns comentaristas atribuem, ao menos parcialmente, a guerra de Darfur em 2003 e, agora, a guerra na Síria, à escassez de alimentos na região. Previsões recentes indicam o aumento das secas em diversas regiões espalhadas pelo mundo, incluindo partes da África e na Califórnia, que, desde 2011, vem atravessando a pior seca desde que dados começaram a ser coletados em 1895. Mais uma vez, a situação é ainda mais grave do que foi previsto no filme.

Dez anos atrás, a previsão era que o Ártico veria seu primeiro verão sem gelo no mar nos 50 ou 70 anos seguintes. Agora, estima-se que isso ocorra até 2052, nove anos antes. Quando o gelo –que reflete o sol– derrete, os oceanos, escuros, absorvem mais calor, aquecendo mais rapidamente. Em 2002, a geleira Larsen B, na Antártica, com 3.250 quilômetros quadrados de extensão e 220 metros de espessura, colapsou após 12 mil anos de estabilidade (go.nasa.gov/1Fb0mIp).

A água aquecida penetra mais profundamente nas geleiras, acelerando o processo. O degelo do lado oeste da Antártica aumentaria o nível do mar em três metros, com efeitos catastróficos para a regiões costeiras do Brasil e do mundo.

Felizmente, a região leste continua estável, mais do que o previsto dez anos atrás. Se derreter, o aumento do nível do mar seria de 60 metros. Cerca de 200 milhões de pessoas vivem em zonas até cinco metros acima do nível do mar. Para onde iriam? Para o interior, numa migração sem precedentes. Imagine 10 milhões de cariocas invadindo São Paulo.

O mar está subindo a uma taxa atual de três milímetros por ano, e chegará a um total de um metro até 2100, se nada for feito para reduzir a emissão de gases que causam o efeito estufa. Ao menos desde a fundação do Império Romano não se vê isso. O colapso das geleiras na Antártica aceleraria em dez vezes essa taxa.

Investigando fósseis de corais no Taiti datados de 150 mil anos, cientistas ficaram alarmados com o aumento do nível do mar durante a última era glacial (cerca de 14.650 anos atrás). O mar subiu 14 metros, a uma taxa de 14 milímetros por ano. Ao menos metade desse aumento foi causado pelo degelo parcial da Antártica.

A previsão anterior dizia que o aquecimento global intensificaria tanto períodos mais quentes quanto mais frios. Essa intensificação vem ocorrendo apenas com os períodos mais quentes. Quando a umidade sobe, você sua mais, e seu coração bate mais rápido, de modo a regular a temperatura do seu corpo. (Se você é corredor, sabe o que ocorre durante uma corrida em umidade alta). Em um determinado momento, esse mecanismo natural de refrigeração começa a falhar, causando desidratação severa.

No ano passado, ondas de calor na Índia e no Paquistão mataram milhares de pessoas. Ethan Coffel, da Universidade Columbia, nos EUA, prevê que, até 2060, 250 milhões de pessoas estarão expostos a níveis letais de calor e umidade. Por outro lado, as frentes frias serão cada vez mais raras.

CAUSA E EFEITO

Passados dez anos desde o lançamento do filme, a situação é ainda mais grave. A maior dificuldade para a aceitação dessas previsões pelo público reside no fato de que elas não são imediatas ou relacionadas a um evento específico. É bem mais conveniente não se preocupar com uma previsão –a menos que haja urgência ou um mecanismo transparente de causa e efeito.

Se os cientistas pudessem afirmar, com certeza absoluta, que no dia 23 de janeiro de 2025, o mar invadiria o Rio de Janeiro, alagando 50% da cidade, a coisa seria diferente. Mas não funciona assim.

Para fazer previsões, cientistas se baseiam na análise detalhada de dados, trocando informações em conferências e publicações especializadas. O processo não é perfeito, mas tem a enorme vantagem de se autocorrigir. Quanto mais estudamos um determinado assunto, mais aprendemos sobre ele. É o único método que temos para saber o que poderá ocorrer no mundo natural com uma margem respeitável de certeza.

Pondo esses dez anos em perspectiva, não há dúvida de que o aquecimento global é uma realidade e que está já afetando padrões climáticos. É perfeitamente consistente com o funcionamento da ciência que a taxa dessa mudança não seja exatamente a prevista dez anos atrás. Mesmo assim, o que sabemos hoje é mais do que suficiente para determinar as causas do que está ocorrendo. Deveria, também, ser mais do que suficiente para gerar uma mudança de perspectiva global, tanto em nível individual quanto em nível corporativo e político.

Os dados existem e são acessíveis aos que querem entender o que de fato está ocorrendo. A verdade do aquecimento global pode ser inconveniente, mas é a nossa verdade, que dividimos coletivamente nesse planeta de recursos finitos. Se existe uma lição da história a aplicar aqui, é aquela que diz que a recusa em confrontar uma crise inevitável nunca é boa estratégia.

MARCELO GLEISER, 57, é professor de física e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é "A Ilha do Conhecimento" (Record).


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