Folha de S. Paulo


A criança de Odessa

São Paulo, 2003

Boris Schnaiderman foi uma das pessoas mais adoráveis que já conheci. Era bem humorado, culto, gostava de conversar e de generosamente compartilhar seus conhecimentos.

Eu o encontrava nos anos 1970 na casa de Augusto de Campos, com quem colaborava nas belas traduções de poemas russos modernos, feitas em parceria, também, com Haroldo. Nessa época, Boris era casado com a psicanalista Regina Schnaiderman.

Depois, a partir dos anos 1990, quando ele já estava casado com a ensaísta e professora de literatura Jerusa Pires Ferreira, comecei a frequentar eventualmente a alegre e receptiva casa deles com minha mulher, Lídia.

É claro que nessa época já havia, também, algumas das excepcionais traduções que ele fez dos clássicos escritores russos, notadamente Dostoiévski e Tolstói, de que nós desfrutávamos.

Numa dessas visitas, ele nos contou que, aos oito anos, presenciou as filmagens de uma sequência de "O Encouraçado Potemkin" (1925), de Serguei Eisenstein. E justamente aquela mais famosa, feita na escadaria de Odessa, cidade da Ucrânia (na época, parte da União Soviética), onde Boris morava com sua família, num prédio quase em frente à escadaria na qual, além do mais, costumava brincar.

E ele ainda se lembrava muito bem daquela cena com as pessoas jogando seus chapéus para cima.

Assim que terminou de contar, Lídia e eu imediatamente pensamos que seria interessante ter aquela experiência contada por ele próprio num documentário em forma de entrevista.

Foi assim que, em 2003, surgiu "Um Espelho Russo" (disponível aqui ) para o qual Boris, com toda sua rica história pessoal e muitos conhecimentos do cinema russo, contribuiu ainda mais com informações e comentários. Seu pai, além do mais, foi distribuidor de filmes russos depois que sua família se mudou para o Brasil.

Reprodução/Video
Boris Schnaiderman e Péricles Cavalcanti em entrevista para o documentário
Boris Schnaiderman e Péricles Cavalcanti em entrevista para o documentário "Um Espelho Russo", de 2003

Nessa entrevista ele nos contou ainda outra coincidência surpreendente: aconteceu que ele, enquanto um jovem pracinha a caminho do embarque das tropas para a Itália, no Rio de Janeiro, passou por uma das filmagens de "It's All True" (É tudo verdade), o filme que Orson Welles estava rodando aqui em 1942.

Portanto, de maneira casual e em épocas e países diferentes, ele foi afortunadamente testemunha ocular de dois momentos singulares e grandiosos da história do cinema mundial.

Vale acrescentar que Boris participou de "Um Espelho Russo" com muita disposição, paciência e bom humor, e que todos nós da equipe de filmagem o acompanhamos com prazer.

E, quanto a mim, também fiquei contente de ter composto a trilha musical –uma das de que mais gosto entre as que já fiz– pensando em algumas ideias presentes nas palavras ditas pelo mestre nesse documentário. Salve!

PÉRICLES CAVALCANTI, 68, é compositor e cantor.


Endereço da página: