Folha de S. Paulo


A música clássica é instrumento para fazer diplomacia

Chang W. Lee - 2008/The New York Times
Orquestra Filarmônica de Nova York se apresenta em Pyongyang, na Coreia do Norte, em 2008
Orquestra Filarmônica de Nova York se apresenta em Pyongyang, na Coreia do Norte, em 2008

RESUMO O diretor global de artes do British Council e ex-diretor artístico do Barbican Centre escreve sobre o papel das orquestras nas relações culturais entre países. Ele defende um modelo que vá além de turnês para tocar em teatros e crie raízes por onde as formações passem, com trocas profundas entre músicos e com o público.

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Orquestras são um meio estranho para estabelecer relações culturais internacionais. Elas são enormes, seu transporte é oneroso; seu protocolo, seu comportamento e sua vestimenta nos remetem aos séculos 19 e 20; o repertório é em geral clássico, padrão de países desconectados da própria orquestra, e também dissociado da vida da comunidade à qual pertencem.

Frequentemente são usadas como "instrumentos contundentes", em gestos políticos não ambíguos e, na maioria das vezes, totalmente ineficazes. Sempre lembramos do mais estranho de todos eles: a viagem da Orquestra Filarmônica de Nova York a Pyongyang, Coreia do Norte, em 2008. Era esperado que novas portas se abrissem, inaugurando uma nova era na relação com os Estados Unidos.

O governo norte-coreano permitiu acesso nunca antes visto ao país a mais de 300 estrangeiros. Era a primeira visita cultural significativa dos Estados Unidos ao país desde a Guerra da Coreia, nos anos 1950.

Infelizmente, a realidade é que as relações da Coreia do Norte com o resto do mundo estão piores agora do que há décadas. E ter tocado Wagner, Dvorák e Gershwin em Pyongyang foi, talvez, mais do que um ato fútil, foi quixotesco e desorientado.

Mas isso significa que as orquestras não têm um papel nas relações culturais? Eu acho que elas têm, mas é necessário analisar de perto o raciocínio, o modelo, o repertório e a metodologia, assim como o legado potencial de tal trabalho.

Um bom exemplo foi dado pela BBC em parceria com o British Council, por ocasião do Commonwealth Games, em Glasgow, em 2014, e dos Jogos de Déli, em 2010. A BBC Scottish Symphony Orchestra e seu diretor, Gavin Reid, planejaram uma turnê em Chennai, Nova Déli e Mumbai. Desde o início, havia a ideia de uma verdadeira troca cultural entre músicos de ambas as tradições (clássico ocidental e clássico indiano). Alunos do KM Music Conservatory, em Chennai, se envolveram, assim como seu fundador, o compositor de Bollywood A. R. Rahman. Os alunos do Royal Conservatory da Escócia participaram da turnê.

Havia os governos e diversos parceiros envolvidos e era, portanto, uma tentativa de compartilhar tradições do leste e do oeste. Gavin Reed relata que seus músicos consideraram a experiência estimulante e inspiradora, os alunos acharam transformador e todos gostariam de repetir a experiência.

"Negócio essencial" é como Kathryn McDowell, da London Symphony Orchestra (LSO), classifica as turnês internacionais. Mas imperativos comerciais não impedem a orquestra de ser altamente empreendedora: ela se vê como uma parte integrante do "blue chip" (ações das empresas mais bem cotadas) do Reino Unido, assim como a galeria Tate ou o museu Victoria and Albert.

Um dos focos da LSO está no Japão, pois a longa experiência das orquestras britânicas em matéria de educação e trabalho comunitário é vital para mudar a ultra conservadora mentalidade de gestão das orquestras japonesas. Há questões cruciais a serem enfrentadas, é preciso criar novos modelos de negócio, modernizando gestão e operações.

Experiências levadas a cabo, por exemplo, pela Manchester Camerata e pela Universidade de Manchester, que se envolvem em programas de bem-estar social para pacientes com demência e idosos, podem ser inspiradoras para os músicos japoneses.

BRASIL

E por que as orquestras brasileiras não podem ser líderes em inovação nas Américas e em suas próprias fronteiras?

Olho para o Brasil e penso em quanto intercâmbio cultural está ocorrendo dentro do país, pois a troca doméstica também é importante para qualquer nação. Não sou especialista em assuntos brasileiros, mas é muito claro que este país é um mosaico de regiões menores, cada uma com sua própria cultura e herança musical. E, é claro que observando o mapa, as distâncias podem intimidar qualquer gestor de turnê. Mas o país tem grandes vantagens: há uma língua em comum e, muito importante, uma musicalidade inata que conecta pessoas naturalmente.

Muito do que é feito no Brasil em termos de engajamento social por meio das artes e da música chega à Europa como contribuição importante. O Brasil lidera o caminho da criação de novas práticas culturais para o desenvolvimento social e tem conseguido abraçar o modelo venezuelano e transformá-lo em algo além das metas da inclusão social. Diversas de suas orquestras jovens, como a do Estado de São Paulo, os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia, e a Sinfônica Heliópolis impressionaram o público na Europa e nos EUA por sua qualidade musical e energia artística.

Mas eu me pergunto até onde vão as turnês das orquestras brasileiras, não em termos de milhas aéreas, mas no que diz respeito ao engajamento com o público local para além dos teatros. Em outras palavras, quão profundas são essas turnês? Nenhum gestor deve subestimar seu público doméstico, é preciso alcançá-lo e tratá-lo com sinceridade. A resposta virá rapidamente.

Em sintonia com a diplomacia cultural está a Orquestra Jovem da União Europeia (EUYO), que carrega o papel diplomático em seu nome. Ela e a West-East Divan Orchestra –com músicos de países do Oriente Médio e da Espanha– são multiculturais e ultrapassam fronteiras, podem manter pontes abertas com a Rússia, por exemplo, e são ainda capazes de acomodar músicos da Armênia e do Azerbaijão lado a lado, apesar da história traumática entre as duas nações.

INOVADOR

A Philharmonia é, provavelmente, o mais inovador conjunto do Reino Unido, graças à inclusão do digital em seu programa central. David Whelton, diretor da orquestra, diz que as turnês mudaram nos últimos 30 anos. Depois da recessão dos anos 1990, os promotores queriam mais, e as orquestras começaram a repensar a turnê para além do salto de paraquedas noturno e a partida de manhã cedo. A Philharmonia começou a desenvolver "centros de gravidade", como Dortmund, na Alemanha, ou o Châtelet em Paris, com educação e formação de público.

Ela foi capaz de provar que poderia prosperar em um novo modelo de negócio, muito menos dependente de subsídios públicos –cerca de 20%, em oposição aos modelos alemães e franceses que usam bem mais de 70%–, que são indutores do conservadorismo e da resistência à mudança.

Com a ajuda do maestro Esa-Pekka Salonen, a Philharmonia desenvolveu uma força única ao implementar a tecnologia digital para aumentar o impacto e o alcance da orquestra tanto no Reino Unido quanto no exterior. Ela leva a música a novos públicos, em seus próprios termos (especialmente o público jovem) e para além da sala de concertos tradicional, por meio de instalações que colocam o espectador dentro de uma orquestra virtual.

A iOrchestra foi o passo seguinte: um espaço de visitação e um caminhão musical, com concertos ao vivo e uma forte estratégia de formação de público, que já atingiu mais de 120 mil pessoas, demonstrando o poder da tecnologia para alcançar novos públicos. Ela também está na vanguarda da realidade virtual e trabalha com os fabricantes de hardware para desenvolver áudio e captura de vídeo. Essas inovações têm atraído uma grande quantidade de investimento externo, tanto de fundações filantrópicas como de parceiros comerciais.

Por outro lado, com a ajuda do British Council, os convites para tocar no exterior se ampliaram.

Foi esta, aliás, a intenção do British Council ao instituir a anual Conferência MultiOrquestra no Brasil desde 2014: fazer ver que a cultura em geral, e a música em particular, podem consistir em ferramentas úteis para a construção de confiança e entendimento entre nações. Queríamos criar espaços de diálogo e intercâmbio, permitindo que os gerentes de orquestra, maestros, educadores e músicos se conectassem com uma nova postura e diferentes objetivos em mente.

E o resultado tem sido inspirador para todos os envolvidos. O retorno dos participantes do Reino Unido –mais de 30 organizações, até agora– mostra que eles têm conseguido aprender sobre o Brasil, sua música e prática musical, seus desafios e ideias, e isso tem tido um impacto significativo na sua própria prática profissional.

A Aurora Orchestra, o Scottish Ensemble e a Royal Northern Sinfonia tocaram, pela primeira vez, na América do Sul, mas não só isso, esses grupos estabeleceram um novo tipo de relacionamento com novos públicos, incluindo masterclasses, cocriação e um compromisso profundo com músicos locais.

Quem, hoje em dia, quer uma orquestra em turnê que vai só aparecer, tocar e ir embora? Não muitos... nem mesmo a Coreia do Norte. Onde quer que você more, se você está disposto a convidar uma orquestra, você quer estabelecer uma relação, para ela criar raízes, para trazer novas ideias, para ajudar a desenvolver talentos, práticas e públicos locais.

Então, se você dirige uma orquestra neste continente e tem a intenção de permanecer vivo e relevante, minha sugestão é olhar ao seu redor, levar em conta os melhores exemplos ao redor do mundo, incluindo –mas não só– o Reino Unido, e escrever em sua partitura "accelerando".

GRAHAM SHEFFIELD, 63, diretor global de artes do British Council e ex-diretor artístico do Barbican Centre, em Londres (1995-2010), esteve no Brasil em maio para a 3ª Conferência Internacional MultiOrquestra


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