Folha de S. Paulo


Leia trecho de livro de Antonio Risério, alvo de polêmica entre editora e autor

SOBRE O TEXTO O trecho aqui publicado foi extraído do novo romance do antropólogo baiano –que, como seu protagonista, Daniel Kertzman, trabalhou com marketing político. A obra, que pretende ser uma história da geração de Risério, sai em julho pela editora Record, após ter sido inicialmente recusada pela editora 34, num episódio que o autor classificou como censura devido à sua visão crítica da esquerda. Na ocasião, a 34, que lançou três livros de ensaios do autor, disse ter "declinado da publicação" porque "certas passagens do livro soavam mais como um desabafo pessoal do que uma construção literária de peso", o que fez com que os editores temessem "a possível instrumentalização dessas passagens".

Marcus Garuti

1. O mal dos políticos é que eles acham que são o povo eleito.

A frase trocadilhesca apareceu numa revista, em artigo assinado por um respeitado romancista brasileiro, Marcos Pompeia, e era citada em tudo quanto era canto e nos mais variados meios e ambientes. Pompeia era homem culto e ético, concentrado no seu fazer romanesco, mas que de tempos em tempos escrevia artigos, fazendo leituras muito pessoais e precisas –sempre bastante lúcidas– a respeito da vida política, social e cultural do país. E era sempre muito citado, em outros textos e inúmeras conversas. Algumas de suas frases ficavam gravadas para sempre no objeto a que se referiam. E os poderosos chefões da publicidade e do marketing não o suportavam. Por conta de uma definição do "métier", que dera durante entrevista num longo e badalado programa de televisão sobre a sua vida-e-obra.

– O marketing eleitoral é a hipertrofia da mentira sistêmica da publicidade.

2. Falência da ditadura. Redemocratização. Anistia. Diretas-Já. Todo mundo já falou demais disso –e, ainda hoje, a toda hora aparecem mostras e leituras retrospectivas na televisão. Daniel e seus amigos participaram de tudo. Assim como tinham deixado as organizações comunistas para trás, também para trás ficou o desbunde, a maré do neorromantismo contracultural. Do comunismo e do underground, tinham preservado apenas o que julgavam ser as suas melhores coisas.

– É como você faz com a cana-de-açúcar: toma o caldo e joga o bagaço fora.

3. A estrela do PT surgia então com a força de um ponto riscado da umbanda. A feitiçaria política empolgava. E eles passavam do androginismo difuso da contracultura à luta pelos direitos de lésbicas e bichas, com recurso sistemático ao proselitismo e a raciocínios de base jurídica. O ecologismo se foi politizando gradualmente e se empenhando em discussões técnicas. O elogio lírico da aldeia indígena se convertendo em movimentos objetivos de demarcações territoriais. O fascínio distante pelo black power refazendo-se em combate ao racismo. A defesa e celebração da igualdade entre os sexos dando lugar à nova onda feminista.

Como disse um dos gurus da época, aquele foi o instante da passagem da homeopatia ao antibiótico.

– O ambiente foi ficando mais vivo. A sociedade recuperou seu grau de informação sobre a vida brasileira. É verdade que, com a saída dos militares, a violência do tráfico de drogas veio com tudo. Mas o que clareou de bom foi muito maior e mais importante do que isso.

Começava ali, com o fim da ditadura, um novo período da história nacional, que se estenderia da volta dos exilados à imensa e depressiva frustração com o PT, onde muitos tinham depositado as suas mais generosas esperanças de afirmação de uma nova política, de vitória da ética e da solidariedade, avançando na construção de um Brasil novo de verdade. Mas o PT naufragou na corrupção, traiu a confiança da sociedade e se entregou aos domínios pantanosos das mandraquices marqueteiras.

4. – Este é o doutor Sinval Soledade, o filósofo do marketing. Um homem realmente de princípios: mal começa a foder, goza.

Kertzman não esqueceria. Na paisagem do marketing, a vegetação era toda de plantas de plástico. E estas palavras de Carlos Alberto Torres Ribeiro, o marqueteiro-mor do país, bem diziam do espírito que presidia ao nosso marketing eleitoral. Sim: eleitoral –era a palavra. Não tivemos, nessas últimas décadas no Brasil, um marketing realmente político –assim como não tivemos partidos políticos, mas partidos eleitorais. O que se tem visto são truques, falácias e falcatruas que se aproveitam da ignorância e da falta de memória da população, jogando ainda friamente com os temores, as ansiedades e as esperanças dos mais pobres. Com um único objetivo: ganhar eleições: custe o que custar –em todos os sentidos da expressão.

Aqui, como nas palavras de Carlos Torres Ribeiro apresentando Daniel Kertzman ao intelectual da agência Léxis, tudo era cinismo com revestimento de um verniz pretensamente espirituoso. Um meio profissional que caminhou da amoralidade para a imoralidade. A passos largos –e em linha reta. A história é conhecida. O marketing tradicional das agências de publicidade, voltado para a venda de produtos da indústria, de gomas de mascar e refrigerantes a roupas íntimas e máquinas de lavar, foi transplantado, com toda a sua lógica e a sua mesma moral, para o campo das artes do poder. Das apostas e disputas pela dominação pessoal e partidária da vida política e dos espaços públicos da sociedade. Por esse caminho, políticos viraram mercadorias. E num sentido nada superficial.

Eternamente curioso com tudo em que se envolvia, Kertzman estudara relativamente bem o assunto, desde os seus primeiros dias a serviço de agências de publicidade. Historicamente secundária em outras épocas, a campanha publicitária tomou, na segunda metade do século 20, a frente toda da cena. Mas as coisas já vinham desde um pouco antes. Marx já falava dos olhares amorosos que as mercadorias lançavam em direção aos seus possíveis compradores. Havia começado então esta espécie contemporânea de uso mercadológico das táticas atrativas do amor. As mercadorias passaram a se enfeitar e a se perfumar, a se maquiar, com o propósito de se fazerem belas e amáveis. Elas tomaram de empréstimo a linguagem estética da conquista amorosa. Convenceram. Seduziram. E, adiante, foi o ser humano que procurou consumir mercadorias saturadas de estímulos sensuais.

A ideologia do lucro passou a operar no campo da sensualidade, criando laços entre estímulo estético, valor de troca e energia erótica. Inicialmente, com sedas, especiarias, objetos raros e caros. Em seguida, passou do grande negócio do luxo para o grande negócio das mercadorias de massa. Investiu-se na aparência do produto padronizado. As mercadorias passaram a ter "marcas", que são o atestado de sua suposta qualidade. Na verdade, a mercadoria se transformou em marca. Em "marcadoria".

Foi também aí que se começou a forçar o consumo, que teve início a produção social da necessidade de comprar e comprar sempre mais. Pela redução do tempo de vida útil do produto e pela redução do seu tempo de consumo. No primeiro caso, a mercadoria é fraudada, para que não dure em demasia e seu proprietário logo tenha de comprar outra em seu lugar. No segundo, a mercadoria está sempre se renovando. É o "novo modelo" que aparece no palco. E a inovação incita o indivíduo a trocar sua máquina antiga por uma nova, mesmo que a antiga esteja funcionando perfeitamente bem.

Com isso tudo, dissertava Kertzman, a forma e a superfície do objeto ganharam autonomia, se descolaram do corpo da mercadoria, que então virou pura aparência que seduz, estranho espelho que adivinha, condensa e exibe os segredos e desejos da pessoa, acenando-lhe ainda com a promessa da satisfação. E assim se impuseram o emprego da aparência sexual e a sexualização generalizada das mercadorias no mundo do consumo. O desenho industrial e a publicidade foram e são peças centrais na produção desse mundo de aparências, regido pelo lucro.

– Uma aparência é acrescentada ao valor de uso da mercadoria. Temos a forma-objeto da mercadoria, a forma-aura a ela acrescentada, a embalagem e a campanha de venda. Todo um mundo de aparência e manipulação simbólica, que se materializa no plano estético, em termos plásticos, sonoros e linguísticos. E isso foi levado para o âmbito da política. O político tratado como mercadoria, com sua embalagem, seu discurso de sedução, seu slogan, sua trilha sonora, sua marca –para não falar do Photoshop e de barris de botox. Com o intuito último, o propósito final de transformar clientes macabros em príncipes encantados. E o pior hipócrita, num espaço dessa natureza, era o intelectual, sempre meio filosofante, querendo explicar e justificar o facilmente explicável, mas dificilmente justificável.

– Você, Kertzman, é antigo. Ainda faz aquele tipo do homem que tem convicções. Não é o meu caso. Minha relação com o marketing é essencialmente pragmática.

– Sei. Nada a ver com os problemas do país –tudo a ver com as soluções para o seu bolso.

ANTONIO RISÉRIO, 62, antropólogo, poeta e ensaísta, é autor de "Mulher, Casa e Cidade" (ed. 34)

MARCOS GARUTI, 46, é ilustrador de revistas e livros, como "A Inacreditável História do Diminuto Senhor Minúsculo" (SM Editora), de Marcílio Godoi


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