Folha de S. Paulo


O trabalho de Boulos

São Paulo, 1999

Estudávamos no Equipe. Ali, algo parecia estranhamente nos unir. Era uma sensação difusa de estar em um colégio que tinha sido um dos principais focos de resistência da classe média de esquerda durante a ditadura. Nós nos sentíamos parte disso que, ao mesmo tempo, já era quase nada. Disse quase. Não poucas vezes escutei colegas, adolescentes, excitados e perdidos como eu, talvez menos informados, dizerem que gostariam de ter nascido na década de 1960. Eu já dizia que não, que era absurdo: não se podia ter saudades de nada que se pudesse ligar ao golpe. E eu estava certo.

Mas no fundo do meu peito eu entendia o que esses colegas sentiam. Enquanto escutava Caetano Veloso no "walkman" e caminhava na Marginal Pinheiros fumando um baseado eu sabia. Esses colegas aí obviamente não sentiam falta da ditadura em si. Eles sentiam falta de ser contra a ditadura; de fazer realmente parte de algo que, para nós, era só um tipo de memória, da qual restava somente uma herança algo triste e fora de lugar, que sentíamos sem saber direito, enquanto tomávamos sol no pátio do colégio, deitados pelos bancos, naquela época estranha em que os restos dos hippies ainda não tinham se transformado no ultralucrativo mundo hipster. Sim, sentíamos falta de alguma coisa.

Foi nesse contexto que conheci Guilherme Boulos. Ele não era um de nós. Definitivamente. Ele não sentia aquela falta. Ele já tinha toda a clareza, que em parte nós também intuíamos, de que a desgraça de hoje bastava. A primeira memória clara que tenho dele é já na sede do PCB, em agosto de 1999, na rua do Carmo, em uma reunião da UJC (União da Juventude Comunista), em que eu balbuciava algo mal estruturado e estranho sobre as minhas dúvidas quanto à possibilidade de me filiar ao partido.

Acervo Pessoal
frente de comunicado de desfiliação partidária do PCB assinado por Guilherme Boulos e Alexandre Dal Farra em 2000
frente de comunicado de desfiliação partidária do PCB assinado por Guilherme Boulos e Alexandre Dal Farra em 2000
Acervo Pessoal
verso de comunicado de desfiliação partidária do PCB assinado por Guilherme Boulos e Alexandre Dal Farra em 2000
verso de comunicado de desfiliação partidária do PCB assinado por Guilherme Boulos e Alexandre Dal Farra em 2000

Ele me observava indiferente, esperava que eu terminasse rápido de falar para colocar os pontos importantes da pauta, as ações que havia pela frente, junto aos movimentos sociais, enquanto assoava o nariz constantemente e segurava um rolo de papel higiênico. Ele passava as noites lendo, se preparando. Enquanto nós líamos até bastante, uns mais, outros menos, ao mesmo tempo em que cantávamos, andávamos por aí, usávamos diversas drogas, desorganizávamos as nossas cabeças propositalmente, o Boulos se preparava.

Nós também nos preparávamos, provavelmente, de outras formas, sem tanto método talvez, e para outras coisas. Mas algo nele era diferente. Ele dava sempre muito pouca importância a si mesmo. Enquanto eu sentia o tempo inteiro muita culpa pelos meus privilégios (ao mesmo tempo em que os vivia intensamente de maneira autodestrutiva e extrema), ele simplesmente os tornava úteis.

Em um tipo de metáfora involuntária, meio inconsciente e estranha, que foi como essa fala curiosa sempre me soou, Dilma Rousseff disse, há algum tempo, que por trás de toda criança tem uma figura oculta, que é a de um cachorro. No caso, sempre imaginei um cão raivoso, rosnando baixinho, procurando se conter. Esse cachorro agora, ao que parece, saiu da sombra e podemos olhá-lo de frente, encarar os seus dentes, as gengivas que ele nos mostra.

É diante desse cão que podemos nos perguntar novamente e talvez suspeitar que, naquela época em que fantasiávamos sobre a vida na ditadura, não sentíamos falta de algo, mas sim, justamente, sentíamos a presença de algo, escondido. Esse algo veio à tona. É nesse contexto, quando tudo está claro e terrível, que precisamos todos urgentemente aprender a nos tornarmos úteis.

ALEXANDRE DAL FARRA, 34, é dramaturgo e diretor. Sua peça "Teorema 21", com o Grupo XIX, está em cartaz na Vila Maria Zélia até 3/7 e a sua Trilogia Abnegação, no Sesc Ipiranga, até 17/7.


Endereço da página: