Folha de S. Paulo


Karl Ove Knausgard, que vai à Flip, fala de sua obra autobiográfica

RESUMO Estrela da 14ª Flip (de 29/6 a 3/7), Karl Ove Knausgard já foi traduzido para mais de 20 idiomas. Aqui, ele fala da concepção de "Minha Luta", de como a memória se narra, de masculinidade e de outros temas que povoam os seis livros da série, que só na Noruega, país de 5 milhões de habitantes, vendeu 500 mil exemplares.

Foto Diego Padgurschi /Folhapress

De tanto em tanto, com sorte, surge um autor que amplia as fronteiras do que chamamos romance. As últimas três décadas foram ricas em escritores assim. Nos anos 1980, foi Haruki Murakami, com suas fantasias calejadas acerca de um Japão traumatizado. No início da década seguinte, o chileno Roberto Bolaño levou um vernáculo eletrizante à narrativa. No final dessa mesma década, W. G. Sebald injetou inteligência melancólica na recriação ficcional da culpa alemã do pós-Guerra e, no início dos anos 2000, uma escritora italiana reclusa e dotada de humor feroz, Elena Ferrante, criou um mundo fictício tão fértil quanto o de Jane Austen, mas dez vezes mais raivoso. E eis que estamos aqui, na segunda década do século 21, e ela é –e sem dúvida será– a década de Karl Ove Knausgard.

Aos 39 anos, sentindo o prenúncio da mortalidade e um desejo esmagador de "escrever algo excepcional", o escritor norueguês iniciou o que se tornaria um colosso. Em seis livros, "Minha Luta" é um megarromance proustiano sobre a memória e a vida familiar; uma anamnese poética das texturas e dos terrores da infância e adolescência; um olhar inclemente para os meandros da mente de um homem agora distante daquele período mágico da vida, criando seus próprios filhos; o exorcismo de um pai apavorante e controlador.

Não há outro escritor como Knausgard e desde a primeira frase do livro –"Para o coração, a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para."–, sabemos que estamos nas mãos de um mestre.

A fama conquistada com a série autobiográfica tem levado o escritor, hoje com 47 anos, a lugares distantes do vilarejo sueco onde ele vive com sua mulher, a também escritora Lisa Bostrom Knausgard, e seus quatro filhos. Entre Vancouver e Tóquio, conversamos sobre "Minha Luta", que no Brasil chega ao quarto tomo, "Uma Temporada no Escuro" [trad. Guilherme da Silva Braga, Companhia das Letras, 504 págs., R$ 59,90, em pré-venda nas principais livrarias, previsto para 27/6].

O volume, em que narra suas primeiras tentativas de se tornar escritor, o trará à Festa Literária Internacional de Paraty, onde ele fará uma das três mesas solo da programação, na sexta, 1º/7.

Foto Diego Padgurschi /Folhapress

Folha - Em "A Ilha da Infância", terceiro livro de "Minha Luta", você escreve: "[...] em nossas cabeças não apenas éramos pessoas modernas da década de 1970, mas nosso ambiente também era um ambiente moderno da década de 1970. E nossos sentimentos, os sentimentos que corriam e permaneciam dentro de cada um de nós nesses fins de tarde, eram sentimentos modernos, sem nenhuma outra história a não ser a nossa própria. E para nós, que éramos crianças, isso era o mesmo que não ter história. Tudo acontecia pela primeira vez." Dag Solstad escreveu sobre como é ser um norueguês moderno, uma vida que, com toda sua riqueza, parece desvinculada da história anterior –mas você descreve esse sentimento com clareza singular aqui. Até que ponto o desejo de registrar isso levou você a escrever essa série?

Karl Ove Knausgard - Nunca me vi como um escritor moderno, nunca. Essa é uma história muito pessoal sobre minha vida pessoal. Não sou um pensador. Não sou filósofo. Esses livros são o oposto do pensamento. Quando escrevo, quero me mostrar inteligente e quero usar meu conhecimento para construir algo, mas isso é meio comum. Minha análise social pode se sustentar por uns minutos, mas, de fato, não tem o menor valor.

Aos 20 e poucos anos, eu era um estudante tentando escrever. Então, lá pelos 26, 27, de repente vi que algo estava acontecendo com minha escrita –não sei por quê. Foi como uma espécie de percepção clara e repentina de algo que eu não tinha visto antes. Você se joga na escrita e de repente vê algo que não tinha enxergado. Não é você mesmo; é outra coisa, uma combinação do que você é e de algo anterior, da literatura. Não é algo que se possa calcular ou criar. Tem que acontecer. Então, para voltar à sua questão, se você escreve cegamente, se o faz por 3.600 páginas, aparecem muitos pontos cegos, sabe? E muitos padrões. Acho que estou interessado na identidade, pessoal e nacional. Mas, se tento analisar isso, não acontece nada.

Por acaso, o protagonista de "Minha Luta" tem seu nome, escreveu os mesmos livros que você, cresceu na mesma cidade, nasceu no mesmo ano, é casado com a mesma mulher. Ele é filho do seu pai, uma das figuras mais importantes nessa obra. Como era seu pai?

Meu pai muda de livro para livro. Ele é um no primeiro livro, quando estava morrendo, e outro totalmente diferente no terceiro, aos olhos do meu eu de dez anos. Ele foi mudando ao longo de minha vida. Quando eu era criança, ele era muito intransigente, muito autoritário, agressivo e imprevisível. Ele ter sido imprevisível é a chave desse livro. Eu vivia tentando decifrar o estado de ânimo dele para poder agradá-lo. Era como os filhos de viciados, tentando fazer as coisas ficarem ok para eles, eu fazia isso quando era criança. Eu o odiava e tinha muito medo dele. Essa foi minha infância.

Então, quando eu tinha 16 anos e ele 40, ele se separou de minha mãe, começou a beber e mudou de personalidade. Acho que foi uma espécie de projeto de liberdade para ele. Quando eu era garoto, ele não tinha amigos, era muito solitário. Então ele começou a beber e a ser sociável. E começou a beber muito. Li os diários dele, são de partir o coração. Ele tentou parar de beber e não conseguiu. Perdeu o emprego, perdeu tudo. Mudou para a casa da mãe, e foi aí, acho, que desistiu. Acho que foi um tipo de suicídio lento. Ele passou dois anos com ela, bebendo sem parar, e morreu. Esse é o primeiro livro: a morte de meu pai. Eu o odiava e queria vê-lo morto, me lembro. Esse pensamento voltou para minha vida. Eu fui até lá com meu irmão. Era uma casa linda, muito burguesa. Quando chegamos lá, o lugar onde ele cresceu não existia mais. Parecia um antro de drogados, sujo de sangue, excrementos e urina.

Ele tinha quebrado a perna, mas não tinha ido ao hospital.

Sim. Quando fomos lá, eu chorei o tempo todo, chorei desde que entramos na casa. Esse é o primeiro livro, eu chorando e limpando. Eu percebi que era muito estranho para mim, porque eu pensava que o odiava, mas não. Era outra coisa que estava acontecendo, e esse foi o ponto de partida do livro.

Ele era um enigma para mim. Por que ele fez isso? Como ele acabou assim? Quando eu era garoto, ele era um homem respeitado, um professor muito bom. Depois de eu ter publicado esses livros, recebi cartas de colegas e amigos que diziam: "Você precisa saber: ele era brilhante. Era um homem bom". As pessoas o admiravam. Ele era um demônio em casa, mas tentei deslindar quem ele era para mim. Os livros são isso. Ele é a figura com quem me relaciono o tempo todo. Aí eu mesmo me tornei pai e me vi gritando com meus filhos, ficando bravo com eles. Vi que ele deve ter sido como eu, um ser humano. Deve ter tido os mesmos sentimentos. Eu quis deixar minha família, eu era tão frustrado. Pude me identificar com ele e escrever sobre ele.

Em "A Ilha da Infância", você descreve tiques que você e seu irmão desenvolveram para indicar um ao outro o humor de seu pai. Você percebia que estava entrando nesse tipo de detalhe ao escrever o livro ou foi um daqueles padrões que surgem quando escreve sem pensar?

Muitas coisas ali foram inconscientes. Ao escrever sobre meu pai, tive uma revelação. Eu percebi que eu fui um garoto irritante. Eu era irritante. Eu não notava a dinâmica, pensava que fosse algo estático: ele era bravo, eu era sua vítima. Mas eu não era como ele queria que eu fosse. Isso só vi depois. Algumas cenas são como um balé: eu faço tal coisa, ele reage, eu reajo, ele reage. De repente estamos à beira da violência, e posso entender como chegamos àquele ponto.

De modo geral, o que a infância tem de fascinante para você?

Quando eu estava em casa, era quase como estar numa prisão. Era um ambiente cheio de regras muito rígidas, de proibições. Eu não podia preparar nenhum alimento. Não podia cortar pão. Não podia fazer nada, usar nenhuma ferramenta, correr fora de casa. E fora, fora era a liberdade completa. Eram os anos 1970. Nos bosques havia turmas de crianças correndo e nadando sem adultos por perto.

Esses dois aspectos estão no livro e são da minha infância. E me fascinam. Mas acho que, de modo geral, na infância não se reflete sobre essas coisas, não se pensa tanto. É como se a vida fosse pura existência. Eu não tinha essa apreensão direta do mundo, e vejo o mesmo nos meus filhos. Num dia longo de verão, só eu estou ansioso para que o dia acabe e eu possa dormir. E que depois venha outra dia, para administrar as coisas. Eles estão ali, e só. Quase como os animais estão no mundo. Às vezes, quando escrevo, penso que esse seja o sentido da vida. Existir.

Escrever o remete a essa existência não mediada?

Sim, ao escrever, de certo modo você anula o ego.

Mesmo que esteja escrevendo 3.600 páginas sobre você mesmo.

Seu ego não está ali, mas você está muito presente. É irônico. Ao escrever não estou na vida. Estou na escrita. É meu modo de vida.

Você menciona Proust no primeiro volume e volta a ele ao longo dos outros. Proust era obcecado pela memória, como você. Mas me parece que você lida com a memória de uma forma diferente de como ele faz. O que você diz sobre isso?

Acho que Proust foi o que me permitiu escrever meu primeiro livro. Eu o li aos 25, quando ele foi traduzido ao norueguês pela primeira vez. Nunca tinha lido nada assim. Aquele verão foi só aquilo, ler Proust, a ânsia de estar naquele mundo. Só dois anos mais tarde comecei a escrever meu próprio romance e não pensei nem um pouco em Proust. Escrevi cerca de 700 páginas. Se olho para isso agora, não é Proust. É como um plágio dele.

A ideia da memória, do que é construir um romance, o que é uma metáfora, tudo veio dele. Então tentei fazer algo muito diferente. "Minha Luta" é mais como um livro anti-Proust. A obra dele é tão elegante e sofisticada, ele compunha tudo tão bem. É muito controlado. "Minha Luta" é corrido, uma correria para pôr tudo no papel. Às vezes penso que não devia ter feito assim. É minha vida, é o livro. Passei dois anos nele, talvez devesse ter passado outros três, ou mais.

O quinto livro você escreveu muito rápido. O sexto, você jogou boa parte fora e recomeçou. Como você se sentiu quando estava chegando ao fim, física e mentalmente?

Eu escrevi o livro cinco em oito semanas. São mais de 500 páginas. Eu só pensava naquilo. Em alguns dias, escrevia 15, 20 páginas. Era quase um exercício físico. Mandei minha família viajar por uma semana e só escrevi. Na base de cigarro e café. Mas era o final de um processo longo. Não o reli, então não sei bem o que está nele. Mas acho que escrevi o livro que queria escrever aos 20 anos.

É meio inacreditável que aos 20 anos você fosse um mau escritor, como você diz no quinto livro, e como seus professores diziam quando você estudava literatura. A escrita é algo que se ensina?

Jon Fosse foi meu único professor de verdade. Ele não se deixa corromper e isso foi o que ele me ensinou, apenas sendo como é. Escrever é algo que se aprende sozinho. É preciso achar seu próprio caminho, isso não se ensina. Mas há outras coisas que se pode ensinar, como Fosse fez comigo.

Qual é a vantagem de escrever sobre a juventude quando se está deixando de ser jovem?

Eu queria que o quinto livro fosse sombrio, porque foi uma época terrível. Eu não tinha esperança alguma. Mas é de certa forma romântico, uma celebração do que é ser livre sem saber. Mas é disso que não gosto no livro, ele não é verdadeiro. Havia algo que eu ambicionava naquele momento, e essa ambição é o motor do livro, acho. O motivo de ele ter sido escrito. Escrever esse livro –esses livros, o três, o quatro e o cinco– foi como se eu fosse um ator. Eu tentei ser aquela pessoa, de verdade, e fingir que não sabia o que ia acontecer.

É um livro engraçado porque a gente percebe que as coisas tenebrosas pelas quais passamos se tornam, passados 20 anos, cômicas. O livro quatro e o cinco, de certa forma, são sobre o fracasso e têm uma estrutura similar, são bem diretos. Não parece que haja neles a mediação daquela consciência mais madura.

Por isso pude escrevê-los tão rápido. Depois do quinto, eu escrevi um livro horrível, que tive de jogar fora, e um ano depois veio o sexto. O quinto foi o último livro inocente. Eu escrevi o livro um e o dois, e quando o primeiro foi publicado, eu estava escrevendo o terceiro. Quando o terceiro saiu, eu escrevi o quarto. E o quarto estava em produção quando eu escrevi o quinto. O sexto... Eu conhecia a recepção dos livros anteriores, e queria repetir aquilo, e foi terrível, foi falso.

Você deve ter tido que se isolar bastante da recepção e de outras coisas que o pudessem distrair.

Eu fiz isso mesmo. Em parte a ideia era mesmo escrever muito rápido, em um ano. Isso ajudou muito, ter esse prazo, eu tinha de cumprir. Eu determinava um número de páginas por dia e ia. No livro cinco, como disse, chegaram a ser 20. Acho que foi o máximo que fiz. É quase fisicamente impossível fazer mais, ao menos para mim. Foi difícil, mas ainda era divertido.

Deve dar uma espécie de barato tentar recuperar as emoções do fracasso, do desejo –sentir alegria se torna mais difícil na meia-idade. Escrever sobre essas emoções é o mesmo que sentir essas emoções?

Escrever esses livros foi como fechar um ciclo. Quando eu recebi a tradução para o inglês, dei uma olhada e tinha tantas coisas de que eu já não me lembrava, eu já não sabia sobre que memórias eu havia escrito. Foi tão esquisito.

Você não acha que a memória impõe sua narrativa? À medida que envelhecemos, o que contamos sobre nós mesmos muda, há novas memórias a incorporar, contamos uma nova história que encaixe com o que somos ou queremos ser.

É inevitável. Você muda, sua infância muda ao longo de sua vida. Acho muito interessante que o passado esteja em mutação. Não só o pessoal, mas a história também. A guerra hoje nos parece diferente do que era há 20 anos. O mesmo se dá com a infância, não existe um "assim foi". Se olho para meus filhos, penso que talvez aqueles cinco momentos icônicos para eles venham a ser aqueles em que eu os sacudi, ou gritei com eles. Talvez esses momentos definam sua visão da infância. E sei que houve mil dias, um milhão deles, em que nada aconteceu.

Foto Diego Padgurschi /Folhapress

Certamente ao escrever você também faz aflorar coisas que sabia sobre sua família sem perceber.

Sobre algumas coisas eu sei que já havia pensado. Mas uma foi estranha. Eu comecei a beber aos 16 anos. Eu estava vivendo só com meu pai. Ele estava começando a beber também. Nossas vidas eram bem separadas –eu bebia, ele bebia. Às vezes eu o flagrava –sabe quando você chega de fininho e invade o espaço de outra pessoa sem que ela note? Ali estava meu pai, sentado, ouvindo música e chorando. Eu nunca o tinha visto chorar. Naquele momento eu não entendi, agora que tenho a idade que ele tinha, sim. Ele se apaixonou, começou a beber, a vida dele estava mudando. Deve ter sido muito bom e muito duro. Naquele momento, eu não me identifiquei. Eu também estava começando a beber e a me apaixonar. Mas não nos identificamos por isso. Quando eu escrevi sobre isso, reconheci.

A masculinidade é um motivo recorrente na série. Ela é uma máscara social ou é parte de sua essência?

É uma questão importantíssima da minha vida que está nos livros. Fui muito criticado por isso, especialmente na Suécia, onde se acha que valores masculinos não valem nada, que não deve haver sexismo algum. Para eles, escrever sobre masculinidade é provocação, e o homem do livro acha que é muito feminino sair com um carrinho de bebê e cuidar de um bebê, é como se perdesse sua masculinidade. Eu me senti feminizado quando minha filha nasceu e tive de cuidar dela.

No terceiro livro, eu sou um garotinho e sou muito feminino. Um garotinho que chora o tempo todo, que se interessa por roupas e por muitas coisas pelas quais não deveria se interessar. Nos anos 1970, havia regras muito claras sobre como deveria ser um garoto. Você não podia infringir aqueles códigos, não podia chorar, ser covarde. Tinha de brigar. Como as sagas islandesas dos vikings, com todas aquelas regras. Quando eu tinha 13 anos, começaram a me chamar de... em norueguês é "kvinnelig", que quer dizer feminino. Era a pior coisa que se podia dizer a um garoto naquela idade. Era terrível, mas era verdade. Eu era feminino. A chegada da puberdade, me tornar homem, foi uma crise tão grande para mim. Foi essa a luta que travei na adolescência. Procurei ser masculino. Procurei ser um homem. E venho fazendo isso desde então.

Ok, então vamos falar de algo bem de menino. No volume três você fala muito sobre ir ao banheiro. Você descreve como curtia, quando garoto, a sensação de fazer cocô, ver o tamanho que as fezes podiam chegar a ter. Você também tem um ensaio de 20 páginas sobre isso. Essa coisa do cocô é uma espécie de metáfora da criação artística?

Não, eu não penso em metáforas. O que eu queria era captar a infância. Sob qualquer ponto de vista, uma criança é um idiota. Não sabe nada sobre a vida, sobre os fatos. Então como descrever essa vida? Que cara tem a vida de um menino de oito, dez anos? É um problema escrever sobre isso.

Percebi que há muitos tópicos, todos irrelevantes. Muitas reflexões, mas sobre coisas desimportantes. E muito conhecimento sobre certas coisas, em geral, coisas sem valor. Uma delas é fazer cocô. Mas é também um momento de muita curiosidade, e de curiosidade quanto ao corpo. Por isso é uma porta de acesso perfeita para a infância. A partir daí, comecei a me lembrar de como era. Isso mais ou menos me abriu a infância inteira.

Você se pergunta por que não falamos sobre isso, por que é um tabu ou nos soa estranho?

O ensaio que você mencionou é sobre isso. Trata-se realmente do último reduto de privacidade. E foi tão divertido escrever sobre isso. Escrever sobre cagar. Eu recorro a Hannah Arendt e a filósofos e meio que converto o tema em uma outra coisa. Faz sentido, tem interesse e ainda assim é algo que não devemos mencionar. É interessante porque é indigno. É claro que ainda é um tabu. Eu, pessoalmente, sou muito tímido, não quero me expor. Tenho medo da intimidade em quase todos os sentidos.

Por isso esse projeto foi tão libertador. Coisas proibidas se tornam possíveis quando se está só, na literatura, quando se está totalmente livre. Se você parar para pensar que alguém vai ler, que isso vai ser publicado, você não consegue. Quando escrevi isso, passava a maior parte do dia sozinho. Fazia todas as coisas das quais não podia falar. Estava totalmente livre, e era terrível, mas também era uma alegria. Aí o livro foi publicado, e eu passei a estar muito exposto diante de muitas pessoas, mas ainda tenho a sensação de que, antes de tudo, trata-se de literatura. Mesmo assim, sou tímido. Mesmo assim, não falo desses assuntos. Exceto em ocasiões como esta.

Uma coisa que normalmente não se diz sobre esses livros é que eles são muito engraçados. Para você, seja em termos literários ou pessoais, o humor ajuda a achar um sentido?

Meu livro favorito em absoluto é "Morte a Crédito", de Céline. Eu ri de rolar no chão com esse livro, eu o adoro. É engraçadíssimo, mas com um humor absolutamente negro. Sou conhecido por ser muito sério, nem um pouco irônico. Sabe, já chorei na TV norueguesa. Existe essa imagem de mim. Quando escrevo, posso escrever coisas que acho divertidíssimas, mas algumas pessoas não entendem que estou tentando ser engraçado. Elas não acreditam que eu seja capaz de contar uma piada. Acho que os livros são lidos nessa chave.

Sua mulher recentemente publicou dois romances muito bem recebidos, escritos após os fatos que você descreve no volume seis de "Minha Luta". A própria exposição da vida de vocês se tornou tema do livro. Você acha que você ter exposto as vidas de vocês contribuiu para que ela pudesse escrever esses livros?

Ela era poeta quando a conheci. Eu tinha escrito um romance, e ela, uma coletânea de poemas. Ela escreve muito pouco, muito enxuto e muito, muito bem. Ao longo de todos esses anos ela vem escrevendo. Eu não falo do que estou fazendo, porque isso já está tão presente em toda parte –precisamos nos proteger, de certo modo. Ela escreve. Eu leio o que ela escreve.

Imagino que seria difícil se relacionar com ela se não a admirasse.

A escrita é totalmente integrada à vida dela. O que me surpreende é que o que ela escreve não se parece em nada com a pessoa dela. É como se viesse de outra pessoa. E me espanta porque é quando percebo que há coisas fora da vida cotidiana, às vezes tão entediante. É assim num relacionamento, nos tornamos uma coisa não muito viva para o outro. Mas aí você se depara com esse material tão rico. Parece vir de fora de tudo aquilo.

No final do volume seis, você jurou que deixaria de escrever. Estando há tanto tempo no circuito de festivais, era bem plausível que você cumprisse a promessa.

Uma Temporada No Escuro
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Essa foi a última frase do livro e era a única que eu sabia que estaria nele com certeza. A frase é: "Estou feliz por não ser mais um escritor". Deveria terminar ali. O projeto deveria se encerrar com a morte do escritor. É um livro sobre como a ambição de ser escritor pode estragar todo o resto. É um romance sobre o relacionamento entre literatura e vida. Sempre usei a literatura como uma maneira de escapar da vida. De fugir da vida, de tudo o que é complicado. E eu queria me voltar para a outra direção, da literatura à vida. E foi essa a finalidade, como um mergulho na vida. Quando escrevi isso, meu editor me disse: "Você sempre pode mudar de ideia". E eu mudei.

Nota:
Algumas questões desta entrevista haviam sido publicadas por separado, em inglês, no site Literary Hub, que tem John Freeman entre seus editores.

JOHN FREEMAN, 41, escritor e editor, organizou o livro "Histórias de Duas Cidades" (Bertrand Brasil).

CLARA ALLAIN é tradutora.

DAVID MAGILA, 37, artista plástico, vencedor do prêmio de aquisição do Salão de Arte de Ribeirão Preto, expõe no museu da cidade paulista até 9/7.


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